Fátima, em análise

A história das Aparições de Fátima é recontada no grande ecrã pelo cineasta italiano Marco Pontecorvo. Esta coprodução internacional conta com um elenco cheio de estrelas, extensivas cenografias de época, e grandes ambições.

Em 1943, “A Canção de Bernadette” dramatizou a vida de Bernadette Soubirous que, em meados do século XIX, afirmou ver a Virgem Maria na sua aldeia francesa. Tratou-se de um filme insuflado de prestígio que tornou Jennifer Jones numa estrela de Hollywood e acabou por ser o filme com mais nomeações para os Óscares no mesmo ano em que “Casablanca” competiu. De facto, Jones conquistou o galardão para Melhor Atriz. O que surpreende mais na fita é quanto a sua qualidade tem sobrevivido a reconsiderações críticas, mesmo numa contemporaneidade cada vez mais divorciada do tipo de fé sentimental tipificada pela fita.

Parte dessa longevidade devém de um estilo solene, uma abordagem austera que o realizador Henry King trouxe ao projeto. Além disso, o argumento de George Seaton baseado num livro de Franz Werfel, manteve sempre um pé no ceticismo, no estudo realista sobre um milagre do outro mundo. As visões de Bernadette vivem na expressão da atriz que as observa, mantendo-se fora do alcance da audiência. Assim, depende da fé de cada um se acredita ou não na tese católica dos eventos. Existe uma ambiguidade no exercício, uma flexibilidade reticente que vai contra a espetacularidade esperada dos grandes estúdios da Velha Hollywood.

fatima critica
© Cinemundo

A disciplina austera do recontar jamais confirma as crenças de Bernadette, mas admira-a enquanto figura devota. Nesse sentido, a fita está mais próxima das dramatizações da vida de Joana D’Arc do que dos restantes filmes que Hollywood criou no rescaldo do seu sucesso comercial e crítico. O “Milagre de Fátima”, estreado em 1952, claramente tentou recriar o mesmo tom, mas faltou-lhe elegância ou sobriedade. Esquecendo-se da reticência espiritual, esse trabalho de John Brahm tentou usar o milagre como símbolo portentoso, uma celebração da cristandade que se podia ler enquanto comentário social sobre a crise e perseguição anticomunista dos EUA no pós-guerra.

“Fátima” de Marco Pontecorvo vem no seguimento desses filmes, mais um exemplo numa longa tradição de dramatizações de milagres e aparições. Infelizmente, não possui nem a sagacidade elegíaca de “Bernadette” ou o fausto vistoso patente na obra de 1952. Sem dúvida, qualquer marca de ostentação, de cor, de prazer visual, foi obliterada numa aparente procura pela estética sóbria e realista. Além disso, nenhum do classicismo da Velha Hollywood aqui sobrevive, substituída por uma gramática audiovisual que vibra com modernidade, mesmo que tente sugerir o passado nas suas imagens. Isso vê-se logo que o filme começa, quando estabelece duas linhas temporais – uma ação principal e um diálogo que serve de moldura narrativa.

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A história central é bem conhecida, pelo que o seu sumário nos parece desnecessário. Trata-se de um relato sobre os pastorinhos de Fátima e seu testemunho das aparições de Nossa Senhora. O filme conta-nos os eventos históricos através do flashback, ancorando-se numa entrevista feita entre uma Lúcia adulta e o Professor Nichols, escritor de um livro sobre os pastorinhos, as aparições e os milagres. O ceticismo académico aparece só como método de avançar o enredo. É um mecanismo frio, meio desajeitado, que nos proporciona a lembrança de Lúcia e nossa consequente chegada ao cerne da fita. Existe aqui uma tentativa de filtrar os acontecimentos pela perspetiva subjetiva da pastorinha.

Contudo, a tentativa fracassa, culpada do pecado da inconsistência. Apesar de o texto se apoiar na narração da senhora que recorda a juventude, muitas cenas desviam-se dessa linha causal e procuram encher a história com arquétipos banais. Enfim, antes de chegarmos às autoridades republicanas que veem sua dúvida erradicada pelo sol dançante, “Fátima” tem muito contexto histórico para estabelecer. Fala-se da Primeira Guerra Mundial e de um país no rescaldo da revolução onde a religião está putativamente ameaçada pelos ventos de progresso. Fala-se disso e vê-se um passado poeirento, todo em tons de âmbar deslavado, um suspiro de sépia digital que, ao invés de suscitar a nostalgia, só resulta numa plasticidade lamacenta.

fatima critica
© Cinemundo

Todo o projeto é um miasma de castanhos e beges sujos, com ar de telefilme no pior sentido desse termo.A falta de variação cromática quiçá sobrevivesse num trabalho com outras vertentes de interesse visual, mas “Fátima” não consegue superar os defeitos fotográficos. Há a pátina polida da câmara digital, os planos de drone, a fluidez sintética que sabota até o mais primoroso trabalho de cenografia e figurinos. Louvamos os esforços de Cristina Onori e Daniela Ciancio, mas o visual do filme é mesmo muito desenxabido, aborrecido até. A música, como que em gesto de compensação, explode em epítetos de expressividade lacrimosa. O compositor Paolo Buonvino não saberia definir “subtileza” se a sua vida dependesse disso.

Nem é tudo é medíocre, sendo que há muita qualidade a encontrar-se no elenco. É estranho ver esta narrativa portuguesa com diálogos em inglês, mas os atores conseguem, na sua maioria, justificar a transfiguração linguística. Alejandra Howard, Stephanie Gil, e Jorge Lamelas impressionam como Jacinta, Lúcia, e Francisco, sendo bons modelos para os tableaux icónicos que o filme tanto gosta de recriar. Os restantes intérpretes de “Fátima” não têm muito que fazer, mas apreciamos sempre a presença de nomes como Lúcia Moniz e Sônia Braga no grande ecrã. Custa criticar tão fortemente uma produção de Hollywood com os olhos postos em Portugal, mas não há como encontrar grandeza neste “Fátima”.

Fátima, em análise
Fátima

Movie title: Fatima

Date published: 10 de November de 2021

Director(s): Marco Pontecorvo

Actor(s): Stephanie Gil, Alejandra Howard, Jorge Lamelas, Sonia Braga, Harvey Keitel, Joaquim de Almeida, Goran Visnjic, Lúcia Moniz, Marco D'Almeida, João Arrais, Carla Chambel, Joana Ribeiro

Genre: Drama, Guerra, 2020, 113 min

  • Cláudio Alves - 40
40

CONCLUSÃO:

O filme de “Fátima” serve como ilustração sensabor, um drama que fala de espiritualidade transcendente, mas jamais toca no espírito do espetador. Entendemos que haverá quem se emocione com a fita, mas isso dever-se-á mais ao conteúdo da história verídica do que à habilidade artística de Pontecorvo e companhia.

O MELHOR: Os atores juvenis que dão vida aos pastorinhos. Suas caras possuem uma qualidade estoica que um melhor filme poderia ter utilizado para criar imagens poderosas. Isso e a voz de Andrea Bocelli nos créditos finais.

O PIOR: A imagem lamacenta e plasticamente polida, um pesadelo de cinema digital com ares de televisão barata.

CA

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