14º IndieLisboa | La idea de un lago, em análise

Os traumas coletivos de um país tornam-se nos dolorosos espectros que assombram a memória de uma família em La idea de un lago.

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La idea de un lago centra-se à volta de Inés, uma fotógrafa argentina que está a aproximar-se do fim da sua primeira gravidez. Ao mesmo tempo, vai dando os toques finais num livro sobre as suas memórias de infância, nomeadamente sobre os verões passados em família num lago no sul da Argentina. A associação destas duas situações suscita, como seria de esperar, a reflexão sobre a memória e a história familiar que, no caso de Inés, toma a forma de uma tragédia terrivelmente comum entre os seus compatriotas. Em 1977, o pai da fotógrafa foi uma das vítimas da Guerra suja, tendo desaparecido quando Inés ainda era muito pequena. Como tal, as únicas lembranças que ela tem do patriarca são esbatidos ecos de momentos meio esquecidos e as fotos de família, onde a sua imagem perdura, eternamente congelado ao lado de uma versão infantil de Inés.

No que diz respeito à exploração de memórias e histórias familiares, La idea de un lago é um lógico seguimento da primeira longa-metragem da realizadora suíço-argentina Milagros Mumenthaler. O seu anterior esforço, Abrir puertas Y ventanas, valeu-lhe mesmo o Leopardo de Ouro em Locarno, o festival onde este segundo projeto também marcou a sua estreia. Uma forte diferença entre os dois filmes, contudo, é o modo como La idea de un lago, uma adaptação livre de Pozo de Aire de Guadalupe Gaona, transcende os limites do retrato de família para se tornar numa exumação das dores partilhadas por todos os argentinos ainda assombrados pela sua cáustica história política.

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Não que, verdade seja dita, La idea de un lago reflita tonal ou formalmente essa sufocante seriedade. Aliás, se há algo que surpreende o espetador, é quão leve e airoso o filme de Mumenthaler se revela, não obstante as suas pesadas temáticas. Isso é parcialmente o fruto da mise-en-scène simples e elegante que tem vindo a caracterizar a filmografia da cineasta, mas também se deve muito ao modo como a estrutura do filme se recusa a seguir qualquer tipo de lógica dramática ou mesmo uma formatação argumentativa. Como as imagens sonhadas de um pai que se dissolve no éter, La idea de un lago parece existir na delicada e porosa membrana entre a mente desperta e o sonho da memória, movendo-se entre recordações em permanente estado de mutação para tableaux da objetividade atual sem qualquer tipo de lógica aparente.

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Nessa aleatoriedade, o filme sugere, não a estrutura de uma história, mas a forma de um pensamento, algo que também se vem manifestar noutras escolhas cinematográficas. Veja-se, por exemplo, o registo mais colorido, vivido, mas simultaneamente granular e esbatido das cenas passadas nas memórias de infância. Logo na nossa primeira visita ao passado, a beleza das imagens surpreende-nos, mas não tanto como o facto de que a atriz que interpreta a pequena Inés nos anos 80 está notoriamente ciente da presença da câmara, chegando mesmo a dirigir-se a ela e enevoar a sua lente com a condensação do bafo.

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Este piscar do olho ao espetador não é um mero truque ou uma afetação estilística, mas sim uma manifestação da ideia que estamos a observar o processo da lembrança e não uma simples navegação passiva pelo oceano das memórias. Estes fragmentos mentais do passado parecem cientes da sua mesma condição, o que possibilita a sua já referida natureza mutante. Um mergulho no lago pode-se mesclar com uma fantasia infantil em que o carro do pai brinca com a pequena Inés como se fosse uma pessoa afetuosa, ou a espetacular sequência em que a jovem e um grupo dos seus amigos brincam às escondidas na escuridão noturna de um arvoredo e, aos olhos de Inés, as suas inocentes investigações de lanterna em punho tornam-se em aterradoras visões dos homens que perseguiam seu pai antes de se transfigurarem em pirilampos perdidos na negrura da noite.

Pela sua estrutura meio aleatória, La idea de un lago é assim mais facilmente explorada através de cenas individuais. Permitam-nos, por isso, invocar mais alguns dos seus momentos mais marcantes como um par de aproximações à memória paternal que certamente deverão humedecer muitos olhos na audiência. No panorama claramente subjetivo das recordações de Inés, vemos a sua versão juvenil andar pela noite até se deparar com um vácuo escuro. Aí, seu pai está sentado de costas a cantar uma canção de embalar para um berço e ela, temerosa, mas desejando ter contacto com esse homem que quase já não recorda, aproxima-se, mas nunca chega a ver a cara do pai. Na contemporaneidade, Inés examina uma versão escaneada da única foto que tem do pai sozinho com a filha. Como que tentando ecoar o mesmo movimento de aproximação temerosa, ela faz zoom na cara do pai, só que, à medida que se aproxima, mais ele se desfragmenta em pixéis ilegíveis.

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Tal é a efemeridade destas lembranças que o escrutínio apenas acelera o seu processo de dissolução, ou, em alternativa, ajuda-as a deixarem de ser memórias para se tornarem numa construção a posteriori, numa ideia de um pai que, na verdade, nunca existiu fora da mente da sua filha adulta. Para ilustrar esta triste noção, Mumenthaler termina o seu filme com uma passagem de alto valor simbólico em que Inés, enquanto jovem adulta, leva uma câmara fotográfica para esse lago. Ao invés da câmara de cinema se focar na fotógrafa ou na paisagem, a sua atenção é presa ao visor da câmara fotográfica. O lago, como o título indica, já não é um lago mas meramente uma ideia de alguém acerca do lago, que foi assim congelada e materializada na representação virtual da fotografia.

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Até agora, a nossa descrição poderá ter sugerido um filme singularmente concentrado na dor de Inés, mas a verdade é que La idea de un lago permite-nos roçar nas mágoas pessoais de outros familiares da protagonista, seu irmão e mãe. Os três partilham a agonia da ausência e todos eles parecem encarar isso de modo diferente, sendo que a fotógrafa mostra notório desacordo para com a perspetiva da mãe. Milagros Mumenthaler, pelo contrário, concede à matriarca o único momento em que o filme se separa da perspetiva de Inés. Nesse instante, enquanto os filhos estão a tirar sangue para testes de ADN na esperança de se encontrar o corpo nunca identificado do pai, a mãe dos dois olha por uma janela e, na rua, perscruta a mesma figura espectral que tanto protagoniza as reflexões da filha. Só que, ao contrário do jovem que passa pelas memórias de Inés, sua mãe vê o homem envelhecido que ela nunca teve oportunidade de conhecer à medida que os dois envelheciam juntos.

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Tempo roubado e o vazio que fica depois do desaparecimento daquele que amamos tornam-se nas forças motrizes do filme, assim como nas suas raisons d’être. Mais do que uma elegia a uma vítima política ou uma narrativa convencional, La idea de un lago é uma evocação desse sentimento de perda, uma tradução cinematográfica do vazio que se vai tornando maior quando as memórias se perdem nas águas do tempo. Se entendermos o cinema como uma máquina de empatia, La idea de un lago é um triunfo do mais alto gabarito, pois consegue o milagre de nos mergulhar nessa dor alheia, de nos passar o testemunho da perda familiar. Não é uma experiência cinematográfica particularmente feliz, mas é algo mais importante, mais precioso e vital que isso.

 

La idea de un lago, em análise
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Movie title: La idea de un lago

Date published: 14 de May de 2017

Director(s): Milagros Mumenthaler

Actor(s): Rosario Bléfari, Carla Crespo, Malena Moiron, Juan Barberini, Juan Greppi

Genre: Drama, 2016, 82 min

  • Claudio Alves - 85
  • José Vieira Mendes - 80
83

CONCLUSÃO

La idea de un lago é um filme que consegue cristalizar emoções quase indiscritíveis, sem nunca recorrer a histrionias ou mecanismos dramáticos padronizados, merecendo admiração e reconhecimento por essa mesma maravilha.

O MELHOR: O par de cenas de fracassada aproximação da figura paternal em frente ao computador e na penumbra da memória.

O PIOR: Para muita gente, a falta de momentos claramente expositivos e a proposta amorfa da “narrativa” poder-se-ão provar como obstáculos de nociva inescrutabilidade.

CA

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