©Leopardo Filmes

O Rei do Riso, em análise

Toni Servillo a grande estrela italiana de ‘A Grande Beleza’ e ‘A Mão de Deus’, interpreta o actor e dramaturgo napolitano Eduardo Scarpetta em ‘O Rei do Riso’, de Mario Martone, estreado da competição do Festival de Veneza 2021. Trata-se de um afetuoso e teatral retrato ambientado no início do século 20, que culmina em um processo judicial histórico, sobre direitos de autor. Estreia hoje nas salas de cinema.

Sempre que nos lembramos da comédia italiana, vem-nos logo à cabeça Totò. Porém,  antes dele e seu percursor existiu outra grande figura, mas no teatro: Eduardo Scarpetta. É assim que o cineasta italiano Mario Martone (n.1959), em ‘O Rei do Riso’, (‘Qui rido io’) apresentado no Festival de Veneza do ano passado e na última Festa do Cinema Italiano, recria a figura e a vida de Eduardo Scarpetta (Toni Servillo), esse famoso actor e dramaturgo napolitano, que transformou a comédia em arte e influenciou outros tantos artistas teatrais como Eduardo De Filippo ou Ernesto Murolo e até o próprio Totò.  A carreira de Scarpetta, fez-se, entre os finais do século XIX e início do século XX e foi uma daquelas figuras consideradas ‘maiores que a vida’, nas artes do espectáculo. Foi um artista incrível no palco, exigente, histriónico e mesmo arrogante, com os actores da sua companhia residente, comprado e no renovado por si próprio: o Teatro S. Carlino; Scarpetta movimentava-se, com a maior das facilidade e descaramento, entre as suas notáveis interpretações e uma conturbada vida familiar: tinha amantes, filhos ilegítimos espalhados por Nápoles, uma grande família para sustentar e apoiar profissionalmente.

O Rei do Riso

Dir-se-ia que formou quase uma verdadeira tribo teatral, composta pela sua mulher legítima Rosa (Maria Nazionale) e os seus três filhos, um dos quais (Domenico) que nasceu ao que parece de uma ‘noite de paixão’ dela, com rei Vittorio Emanuele II; e ainda tinha outra (ou outras) família paralela, por exemplo com Anna De Filippo (Chiara Baffi), meia-irmã de Rosa, que deu à luz Eduardo (Alessandro Manna), Titina (Marzia Onorato) e Peppino (Salvatore Battista), que Scarpetta nunca reconheceu como seu filho. O actor, criou mesmo uma verdadeira dinastia teatral como Titina, Eduardo e Peppino De Filippo, nomes com grande relevância no teatro e na cultura italiana. No entanto, o seu filho Vincenzo (interpretado  neste filme, curiosamente pelo seu bisneto e homónimo do autor, Eduardo Scarpetta), que trabalha na companhia, não quiz seguir os passos do pai, desprezando mesmo o seu estilo redundante e vernacular de teatro. Foi substituído pelo jovem Eduardo De Filippo, em quem Scarpetta depositava todas as suas esperanças de continuidade da sua obra, enquanto a filha Titina já fazia parte do elenco da sua companhia.

VÊ TRAILER DE ‘O REI DO RISO’

Em O Rei do Riso, o realizador Mario Martone acompanha a incrível trajetória dessa estrela teatral incomparável, até esta atingir seu clímax de sucesso, quando sua carreira é interrompida e o filme torna-se numa espécie de thriller judiciário, tendo como pano de fundo a Belle Époque napolitana, de 1900; Scarpetta era então e sem concorrência alguma, o rei das bilheterias e dos palcos de teatro. De origens humildes, tornou-se num homem muito rico que se afirmou graças às suas comédias e às suas hilariantes interpretações de uma figura popular chamada Felice Sciosciammocca, que conseguiu suplantar outra, no seio do público napolitano: a famosa Pulcinella. No auge do seu sucesso, Scarpetta aproveitou para fazer uma paródia a partir da peça A Filha de Iorio, de Gabriele D’Annunzio, o poeta italiano e dramaturgo mais famoso da época, na Itália. Na noite de estreia, a comédia de Scarpetta foi interrompida pelos gritos, assobios e vaias de um grupo de intelectuais da nova geração, que gritavam que a peça era um verdadeiro escândalo e deturpação violenta do original. Scarpetta vai por sua vez ter de enfrentar daí para a frente, uma denúncia por plágio, colocada pelo próprio D’Annunzio. O filme conta isto tudo e muito mais sobre essa figura única, com o momentos muito divertidos de Scarpetta (Servillo) em palco e das suas trapalhadas familiares, culminando exactamente com o primeiro processo histórico sobre a questão dos direitos autorais, em Itália.

O Rei do Riso

O processo torna-se exaustivo e a vida de Scarpetta parecia então ir por água abaixo. Porém, num golpe de génio e bons aconselhamentos do seu advogado, o comediante acaba por desafiar o destino e vencer o seu último jogo teatral, com um grande número de actor e um interpretar o seu drama pessoal, em pleno tribunal. É um momento do filme, extraordinariamente interpretado por Toni Servillo, — que assume como desafio a histrionia do grande artista, incansável procriador de artistas e amante de muitas mulheres — e que é um dos maiores actores mundiais, da actualidade. Em 1909, curiosamente nos inícios e apogeu do cinema, Scarpetta retirou-se para a vida privada depois de ter protagonizado a comédia ‘La Regina del Mare’, escrita por seu filho Vincenzo. Eduardo Scarpetta morreu em Nápoles em 29 de novembro de 1925. Apesar de odiar o cinema, entre as muitas peças escritas por Scarpetta, contam-se algumas delas pela sua notoriedade e sobretudo por terem dado vários filmes famosos de Totò, entre eles: Totò Rico e Pobre, Totò no Manicómio, ‘O Turco Napolitano’, entre outros. Tal como os filmes biográficos anteriores de Mario Martone, este ‘O Rei do Riso’, apresenta-se numa abordagem clássica e linear, mas beneficia muito por seguir os tons de uma comédia leve (também no tema), mas sempre com uma narrativa muito inteligente. Destaque, também para a grande qualidade de todo o elenco, além de Servillo, pela sumptuosa e rigorosa reconstituição da direção de arte de Giancarlo Muselli e Carlo Rescigno, pelos fabulosos figurinos criados pela premiada Ursula Patzak, pelos tons dourados da fotografia do mestre suíço Renato Berta e sobretudo pelas belas e animadas canções da época.

O Rei do Riso
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‘O Rei do Riso’, trata-se efectivamente não só da história de Scarpetta, mas igualmente de um momento da história da commedia dell’arte, um importante género do espetáculo italiano realizado pelas mãos de um dos mais ‘teatrais’ — no melhor dos sentidos — realizadores europeus. Martone, nunca deixou de nos surpreender com os seus filmes inspirados ou melhor vindos directamente do teatro. Após uma esplêndida releitura do espectáculo teatral de ‘El sindaco del Rione Sanità’, apresentado em Veneza 2019, Mario Martone tem continuado a trabalhar em prol da memória da tradição teatral napolitana também com este ‘O Rei do Riso’, onde mais uma vez brilha Toni Servillo, interpretando o grande ator e dramaturgo Eduardo Scarpetta. Servillo e Martone, formam quase uma dupla, já que trabalham juntos há mais de trinta anos: da experiência nos palco do teatro, com o grupo Falso Movimento e com o Teatri Uniti, para depois se estrearem juntos no cinema com ‘Morte de um Matemático Napolitano’ (1992) e continuaram por aí fora com ‘Rasoi’, ‘I Vesuviani’, Teatro de Guerra e ‘Noi credevi’. Porém este ‘O Rei do Riso’ é um filme bastante surpreendente e um dos melhores da carreira de ambos, obviamente no contexto, desta relação do teatro com o cinema. Scarpetta é exactamente uma daquelas figuras que representa a ideia de que o Teatro é maior que a Vida!

JVM

O Rei do Riso, em análise

Movie title: Qui Rido io

Movie description: ‘O Rei do Riso’, de Mario Martone sobre o famoso comediante napolitano do início do século XX, Eduardo Scarpetta, destaca-se principalmente pela poderosa interpretação de Toni Servillo.

Date published: 4 de May de 2022

Country: Itália, Espanha 2021

Duration: 133'

Director(s): Maria Martone

Actor(s): Toni Servillo, Maria Nazionale, Cristiana Dell’Anna

Genre: Drama, Biografia

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  • José Vieira Mendes - 75
75

CONCLUSÃO

’O Rei do Riso’ (‘Qui Rido io’), do italiano Mario Martone é um filme biográfico dedicado ao comediante Eduardo Scarpetta, ambientado na Nápoles da Belle Époque. Destaca-se em primeiro lugar pela poderosa interpretação de Toni Servillo, um dos melhores actores da actualidade. Além de nos revelar uma figura incrível que o grande público — à excepção certamente dos italianos e das gentes do teatro — desconhece, trata-se de um afetuoso e teatral retrato que culmina num processo judicial histórico, sobre direitos de autor. Além disso é uma extraordinária crónica também sobre a história da commedia dell’arte, um importante género do espetáculo e da cultura italiana. Bravíssimo!

Pros

Todo o elenco, mas sobretudo do extraordionário Toni Servillo, que veste completamente a pele de Scarpetta, mas na verdade outra coisa não seria de esperar de um dos melhores actores do mundo e da actualidade

Cons

A incessante, agitado e histriónico comportamento de Scarpertta, antes do processo judicial, torna-se um pouco cansativo e leva o espectador a perder-se um pouco, associado à talvez a uma longa duração do filme, de mais de duas horas. 

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