Pelé, em análise
A Netflix apresenta um retrato comemorativo e muito bem produzido, não para tentar mostrar que Pelé foi ou não melhor que Maradona ou Messi, Eusébio ou Cristiano Ronaldo, mas um dos poucos indiscutíveis na história do futebol. Este documentário da dupla David Tryhorn e Ben Nicholas serve para olhar para trás, contextualizar e destacar a brilhante carreira de um homem, agora com 80 anos.
‘Pelé’, da dupla David Tryhorn e Ben Nicholas é um documentário intimista sobre a vida e a figura do grande jogador de futebol brasileiro, de seu nome Edson Arantes do Nascimento, que foi marco e uma referência para o seu país e para o seu tempo. Porém, não é apenas um documentário sobre futebol, já que o filme transporta-nos para um Brasil empobrecido de meados dos anos 50 e posteriormente para a história do jovem Pelé que evolui como jogador, sob o regime da ditadura militar e onde o futebol serviu de salvação de muitas pessoas, de válvula de escape da sua rotina diária, da repressão imposta e sustentação do regime. Se o Brasil não tinha rei, Pelé tornou-se o seu rei! O Brasil na década de 1950, não era mundialmente conhecido. Pelé, de certa forma, colocou-o no mapa.
Pelé é considerado o melhor jogador de todos os tempos, porque conseguiu conquistar para o seu país dois Campeonatos de Mundo de Futebol, quase consecutivos? Pelé ultrapassou a barreira dos 1000 golos, ao todo, no Brasil e pelo mundo com o Santos, a sua equipa e pela seleção? Ao mesmo tempo, que fazia, como se diz na linguagem futebolística, muitas ‘assistências’ ou seja criava muitas oportunidades de golo aos seus companheiros? Qual foi o melhor Pelé ou Eusébio, que aliás foram contemporâneos no futebol? A realidade é que as respostas a estas questões são relativas ou sub-menos importantes, para este filme, e para quem gosta verdadeiramente de biografias, cinema e futebol e vê tudo isto, como importantes extensões das sociedades. Este documentário, ‘Pelé’, não funciona nesse sentido de saber se foi o melhor jogador do mundo e creio mesmo que isso não interessa muito à maioria das pessoas que vê filmes. Actualmente, sobretudo no futebol — como também em outros desportos — continuamos a ser infernizados e a assistir aos eternos debates entre quem é o melhor, entre os melhores: Messi ou Cristiano Ronaldo; e chega-se mesmo ao ponto de existirem fieis da religião maradoniana, um culto ao futebolista argentino recentemente desaparecido e que é amplamente, explorado nos documentários ‘Maradona by Kusturica’ (2008) ou em ‘Diego Maradona’, do realizador britânico Asif Kapadia (‘Amy’ e ‘Senna’), estreado em 2019.
Este documentário ‘Pelé’, de David Tryhorn e Ben Nicholas — que realizaram entre outros o documentário de 5 episódios ‘Tudo ou Nada: Seleção Brasileira’, um filme narra a conquista pela ‘canarinho’ da Copa da América em 2019 — a estreia da semana da Netflix, é dirigido a todos os espectadores e não apenas aos adeptos de futebol. Está ordenado de uma forma cronológica, começa com as origens de Pelé e termina com o jogo da final, Brasil-Itália, do Campeonato do Mundo de Futebol México’70, que acabou com um resultado de 4 a 0, a favor da ‘canarinho’, sendo que o primeiro golo, foi do grande jogador. Mas, em 1970, após essa gloriosa vitória do Brasil, Pelé estranhamente afastou-se e já antes não queria estar presente, neste Mundial. Até aí Pelé foi apresentado como um verdadeiro fenómeno da nação brasileira, o salvador que o Brasil esperava, desde meados do século XIX. Pelé, aos 17 anos foi o jogador mais jovem da história a estrear-se numa final de um Mundial de Futebol, em 1958 a sua consagração na Suécia de 1958, país onde as pessoas, praticamente nunca tinha visto um negro ao vivo. E foi a partir daí e de Pelé, que o Brasil emergiu como uma potência mundial do futebol, um nível aliás, que ainda hoje mantém.
Em pouco mais de uma hora e meia de filme — num esquema semelhante ao de ‘The Last Dance’ sobre o basquetebolista norte-americano Michael Jordan — recordamos várias imagens, memórias do futebol, da política, dos sentimentos de uma nação e de um homem, tudo ligado por um elo comum: Pelé. Entre tudo isso, assistimos a uma série depoimentos — inclusive do próprio protagonista — desde a irmã de Pelé, passando pelo técnico da época, Mário Zagalo — que foi companheiro de seleção primeiro e depois seu técnico, e até mesmo pelo ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, da política Benedita da Silva, e de artistas como Gilberto Gil, que fazem uma análise da importância da figura de Pelé, na construção da identidade do povo brasileiro; mas também amigos, jornalistas desportivos, que proporcionam algumas palavras e comentários, sobre a história desse génio do futebol e da história do Brasil. Na verdade, nem tudo são elogios à figura do jogador de futebol, que de alguma forma — mesmo procurando afastar-se da política — nunca se pronunciou sobre o regime militar brasileiro. Há ainda o relato relativamente importante que se refere ao então treinador da ‘canarinho’, João Saldanha, com quem Pelé tinha uma relação péssima e que devido a várias pressões foi demitido e no último minuto, substituído pelo referido Zagallo, no Mundial de 70.
O agora octogenário ‘artista do futebol’ aparece sentado — com evidentes dificuldades em se locomover — numa sala vazia, tamborilando na caixa de engraxar sapatos, que usou quando antes de se tornar jogador de futebol, foi o ganha-pão, para ajudar a família; e lembra anedotas e sentimentos vagos, mas as suas palavras, não têm a riqueza, a provocação ou a profundidade das do jogador do Chicago Bulls; ou mesmo as suas ações nunca foram comparáveis às de Muhammad Ali, o pugilista e activista pelos direitos humanos e contra a descriminação racial nos EUA, contemporâneo de Pelé. Porém, em certos momentos, Pelé desaba com a emoção e chora e é difícil não sentirmos uma enorme empatia por esse homem, agora idoso. Há um momento que é muito bom quando Pelé reencontra seus antigos companheiros e aí emergem toda a amizade, respeito, camaradagem, humor e saudade típicos de quem revive bons tempos de glória. Entre os que aparecem contribuindo com suas experiências e opiniões estão Amarildo, Dorval, Edu, Jairzinho, Rivellino, Coutinho — este último, o seu principal parceiro de futebol no Santos.
O filme tem ainda a particularidade de fazer uma profunda analise da criação do mito: os media construíram-lhe um perfil quase mitológico no Brasil e no mundo, apesar de ser negro, que não é propriamente uma vantagem, numa nação como o Brasil, antes e agora. E neste documentário são reveladas imagens e excertos de reportagens, filmes, anúncios, que transmitem essa sensação e ideia de ‘divindade’ construída, que conectou Pelé com o Brasil e o Brasil com o mundo: as poucas viagens aéreas, que eram possíveis há mais de 50 anos e que permitiram por exemplo, ao jogador e sua equipa, o Santos, enfrentarem outras grandes equipas europeias, como Milan, Real Madrid e o Benfica de Eusébio, entre outras; as campanhas de publicidade, ladeado de mulheres bonitas, ao contrário da legítima, Rose desinteressante e sempre em segundo plano. Rose ou Rosemarie foi a primeira mulher de Pelé, divorciaram-se em 1978 e tiveram três filhos. Porém, enquanto Pelé jogava pela sua Seleção, no Campeonato do Mundo de Futebol, no Brasil uma junta militar de direita governava o país, reprimindo ferozmente os seus opositores.
Em 1970, o seu presidente, o militar Emílio Garrastazu Médici, — com que Pelé se encontra depois da conquista do tricampeonato — era considerado suspeito de ordenar o assassínio e tortura, de uma multidão de opositores ao governo. A Seleção Brasileira tornou-se assim, quase instrumento de propaganda e consolidação do poder anti-democrático, e este filme procura contextualizar também tudo isso. O filme é clássico na sua edição, bem produzido — há imagens de arquivo dos bastidores das diferentes seleções brasileiras e festas populares quase inéditas — e elegante no que diz respeito à narrativa e acabamentos. ‘Pelé’ é um típico documentário comemorativo sem grandes pretensões que não procura inovar, criticar ou por em causa. É um pouco de história que cumpre perfeitamente o seu objetivo: prestar homenagem em vida a um verdadeiro génio do futebol. E Pelé é uma pessoa, uma figura indiscutível da história do futebol e do mundo.
JVM
Pelé, em análise
Movie title: Pelé
Movie description: Pelé’, hoje com 80 anos, de cadeira de rodas ou andarilho, ainda é considerado o rei, e o rei, continua a emocionar-se enquanto se lembra dos tempos gloriosos, aliás como alguns dos que tiveram o privilégio de os viver com ele. De qualquer, modo e independentemente de tudo e do seu percurso, Pelé é um das maiores figuras do mudo e da história do futebol.
Date published: 25 de February de 2021
Director(s): David Tryhorn e Ben Nicholas
Actor(s): Pelé
Genre: Documentário, Biografia, Desporto, 2021, 108 min
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José Vieira Mendes - 60
CONCLUSÃO:
‘Pelé’, de David Tryhorn e Ben Nicholas é um documentário que retrata a revelação e transformação do jovem prodígio do futebol no Mundial de 1958, em um herói nacional de uma era radical e turbulenta da história brasileira e no mundo. O filme inclui algumas imagens de arquivo raras e depoimentos de lendários ex-colegas de Pelé, do seu clube, o Santos e da Selecção Brasileira, além de depoimentos inéditos de familiares, jornalistas, artistas e outras personalidades da época. Pelé é o único jogador de futebol a ter conquistado três Mundiais (Suécia-1958, Chile-1962, México-1970). Este último, campeonato com uma equipa considerada a melhor de todos os tempos, foi conquistado, durante o período mais difícil da longa ditadura militar brasileira (1964-1985).
O MELHOR: A profunda análise da criação do mito Pelé, um jovem pobre e negro brasileiro, um fenómeno para o seu país e para o mundo;
O PIOR: As declarações de Pelé não são muitas, são sinceras é um facto, mas são pouco interessantes, polémicas ou justificativas do seu percurso pessoal e profissional.