Com Mahershala Ali como protagonista, a 3ª temporada de “True Detective” recupera a mística, os interrogatórios e a alternância temporal do primeiro ensaio, permitindo a Nic Pizzolatto recuperar o crédito perdido. A série está disponível na HBO Portugal.
Sou presente ou sou passado? Sou um crime resolvido, caído no esquecimento, ou um frustrante e complexo caso por resolver? É o medo de nada mais recordar que me compele a não desistir, ou a revolta de todos parecerem querer tudo esquecer? Sou, isso sei, um ponto de interrogação adormecido durante anos, sereno apenas no instante em que me tornar ponto final.
Em 2014, a HBO estreou a primeira temporada de “True Detective”. Protagonizada por Matthew McConaughey e Woody Harrelson, acabaria por dar o pontapé de saída para a tendência de antologias criminais (“Fargo”, “American Crime Story”, “The Sinner”), deixando os nomes de Nic Pizzolatto e Cary Fukunaga nas bocas do mundo, e construindo uma das melhores temporadas televisivas desta década, singular na sua filosofia, no inteligente uso de simbologia e na habilidade de colocar em colaboração dois agentes ideologicamente distantes. Tudo isto sem esquecer o elogio individual ao surreal desempenho de McConaughey e à incrível personagem que era, logo de raiz, o seu Rust Cohle.
True Detective
O sucesso levou a HBO a “encomendar” uma segunda temporada, então com Colin Farrell, Rachel McAdams, Vince Vaughn e Taylor Kitsch, mas a pressa (estreou logo no ano seguinte, em 2015) revelou-se inimiga da perfeição. Potencial foi desperdiçado.
Quatro anos depois, Pizzolatto faz a série regressar ao patamar que conquistou os fãs pela primeira vez. Para isso muito contribuiu a humildade do autor, consciente da sua zona de conforto, decidindo dar um passo atrás e apostar numa certa continuidade estrutural ou fórmula de sucesso – novamente uma dupla de detectives, novamente interrogatórios que convidam a mergulhar com desconfiança num passado com feridas por sarar, novamente um universo macabro, intrigante e lúgubre.
Desta vez, a ação passa-se nos Ozarks (há algum desconto para produzir séries lá ultimamente?) com o detetive e veterano do Vietname, Wayne Hays (Mahershala Ali), e o seu colega Roland West (Stephen Dorff) a investigarem o desaparecimento de duas crianças. O tempo, aquele fator que Pizzolatto teve do seu lado ao contrário da experiência falhada anterior, tem do ponto de vista narrativo crucial relevo. Primeiro, porque os acontecimentos e testemunhos navegam entre 1980, 1990 e 2015; segundo, porque em 2015, Wayne Hays é um reformado, determinado a resolver o caso de uma vez por todas, mas com frequentes perdas de memória. Assim, por espelharem e explorarem a mente do protagonista, as analepses e prolepses constantes, além de executadas através de transições subtis, são justificadas, não se tratando neste caso de mero mecanismo barato para complicar a narrativa.
True Detective
Este regresso às origens de “True Detective” dá os primeiros passos num build-up algo moroso, porém essencial para sustentar uma segunda metade (principalmente os 3 últimos episódios) muito forte. São 8 episódios, com uma coesa realização tripartida entre Jeremy Saulnier, Daniel Sackheim (que portefólio tem hoje, tendo realizado episódios por ex. de “Better Call Saul”, “The Leftovers”, “The Americans” e “Game of Thrones”) e Nic Pizzolatto. “True Detective” descobre desta vez um quarto cor-de-rosa, emociona num alpendre de confidências, e brilha tanto num escritório assombrado por um pelotão de fantasmas de guerra, como finalmente com um homem só, perdido na rua escura em que se tornou a sua mente.
Além de confirmar Mahershala Ali (2 Óscares de Melhor Ator Secundário em 3 anos) como um dos atores norte-americanos do momento, simultaneamente capaz de ser actor principal ou secundário, promove o renascimento artístico de Stephen Dorff, que novas portas terá aberto, permitindo ainda a Carmen Ejogo (escritora e professora das crianças desaparecidas, que vem a envolver-se com Wayne Hays) e Scoot McNairy (o pai das crianças) roubarem grande parte das cenas em que entram.
True Detective
O exercício de memória ou novelo com o qual Pizzolatto nos desafia, desfiado no ecrã ao longo de 35 anos, revela-se um puzzle possível e lógico (tal como outras séries mantém-se sempre um passo à frente do espectador, mas dá a este todas as pistas ou ferramentas para durante os episódios 6 e 7 começar a juntar as peças todas), corrige q.b. a dose de machismo exacerbado, traço negativo apontado aos capítulos anteriores, e resiste ao tempo – às múltiplas nuances dos desempenhos de Ali e Dorff, que lado a lado criam um verdadeiro bromance, junta-se um extraordinário trabalho de caracterização.
Na Era dos Rankings e dos Tops, por mais errado e injusto que seja avaliar por justaposição, as séries de antologia quase convidam à comparação por serem narrativas individuais e fechadas. E se a 3ª temporada de “True Detective” é uma reafirmação de Nic Pizzolatto como autor e uma aposta ganha da HBO, podendo-se inclusive afirmar que remata melhor a temporada do que a season original, não é menos verdade que como um todo a primeira vez continua num patamar acima, só seu.
True Detective
“True Detective” é hoje uma das principais referências em séries de crime (“Mindhunter” e “Fargo” apresentarão este ano e em 2020 os seus argumentos) e, antes que as temporadas finais de “Mr. Robot” e “Game of Thrones” tomem conta disto tudo, é até ver uma das grandes séries de 2019, num primeiro trimestre em que merecem destaque “Fleabag”, “Love, Death & Robots”, “Catastrophe” e “Wayne”.
Fazemos votos para que haja uma quarta temporada desta fábrica de cimentar e ressuscitar carreiras, pensada e escrita com todo o tempo que Nic Pizzolatto precisar. Até lá, preserva-se imortal aquele plano final, que traz à memória o recente “A Cidade Perdida de Z” de James Gray, selva adentro depois de um desfecho trágico ou agridoce mas poético.
Gostaste da terceira temporada de “True Detective”? Em que lugar surge para ti a criação de Nic Pizzolatto entre as séries criminais da atualidade?
True Detective - Temporada 3
Name: True Detective
Description: Ao longo de 35 anos, os detetives Wayne Hays e Roland West investigam o desaparecimento de duas crianças.
Miguel Pontares - 81
Catarina d'Oliveira - 80
Maria João Bilro - 85
Maria João Sá - 75
80
CONCLUSÃO
O MELHOR – “True Detective” regressa às suas origens e à fórmula que marcou o sucesso de 2014. Os excelentes desempenhos de Mahershala Ali e Stephen Dorff, e o seu bromance, dão corpo à escrita audaz de Nic Pizzolatto, capaz de tornar a alternância entre 1980, 1990 e 2015 uma ferramenta relevante para o puzzle criminal e não um mero mecanismo barato de complicar a narrativa.
O PIOR – O build-up é algo moroso, explodindo a série em definitivo apenas nos seus 3 últimos episódios. O autor corrige ainda q.b. o machismo exacerbado, traço negativo apontado às duas temporadas anteriores.