"Nha Sunhu" | © Curtas Vila do Conde

Curtas Vila do Conde 2021 | Competição Nacional 4

Recordações de uma casa em Viana do Castelo, rios da memória perdida, olhares para trás e futebol português estão em destaque no quarto dia da competição nacional do festival Curtas Vila do Conde 2021.

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© Curtas Vila do Conde

A CASA DO NORTE de Inês Lima

“A Casa do Norte” não é cinema mudo nem cinema sem diálogo. Contudo, jamais recorre à voz humana e também evita o mecanismo dos intertítulos típicos do cinema pré-sonoro. Em vez disso, Inês Lima e companhia decidiram recorrer a legendas digitalmente sobrepostas na parte inferior do plano 4:3. Ao contrário do resto da fita que celebra o visual antigo e a estética do desenho infantil, as palavras brilham brancas no ecrã. Isso quebra o ritmo da montagem, a pureza da observação, a qualidade da imagem. Enfim, esta incongruência irrita bastante, pois trata-se da única falha a apontar nesta curta-metragem. A falta de intertítulos é ainda mais gritante quando vislumbramos o modo imaginativo como Lima resolveu os créditos finais.

Críticas picuinhas à parte, “A Casa do Norte” é um exercício que trabalha na intersecção do formalismo cinematográfico com a memória familiar. De mãe para avô, a conversa de lembrança vai passando de mão em mão. Fala-se da casa titular em Geraz do Lima, de mortes maternas e padres que estragam funerais com ataques cardíacos e muito escândalo local. Como memórias, a película que corre vibra com materialidade difusa e granular. Cada fotograma parece sólido no mesmo instante que explode em novas configurações de cor e luz. Manchas de humidade que dão ao filme a textura de uma seda moiré, detritos e rasgões fazem deste sonho um sono furado, inacabado, uma fantasia mal lembrada.

“A Casa do Norte” é uma colagem fascinante e agridoce, um filme que imerge o espetador no imaginário de uma família portuguesa a refletir sobre o seu passado coletivo. Trata-se de um dos espetáculos mais simples e singelos desta competição nacional do Curtas Vila do Conde. É também um dos melhores títulos na secção.

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© Curtas Vila do Conde

LETHES de Eduardo Brito

Algures em Portugal, uma jovem toma conta da sua avó. A senhora envelhecida já não é autossuficiente, dependendo da devoção da rapariga, seus cuidados, carinho, sua constante atenção. Um acordo silencioso parece viver entre as duas nessa casa cheia de memórias em cada canto. É assim até ao dia em que o equilíbrio da vida doméstica se destabiliza com um pedido impensável. O advento da mudança causa a crise, mas nada resvala no melodrama. Pelo contrário, “Lethes” é um filme de contenção e reticência. Longe de gritar seus temas ao espetador, a obra sugere significados nos espaços vazios perdidos no corte de plano para plano. O que não vemos diz-nos mais do que aquilo que o filme dá de mão beijada. O que não ouvimos também.

A abordagem cinematográfica de Eduardo Brito resulta numa procissão de imagens que transbordam controlo, mas não ousam controlar o espetador. Preferem sugerir um caminho a seguir, outro ali e ainda outro acolá. A performance coletiva das atrizes – Beatriz Brás, Tânia Dinis e Conceição Silva – é o que mais puxa para uma conclusão, brilhando em momentos como uma corrida propulsionada pela negação do inevitável. Talvez ela queira fugir do que lhe corre no pensamento. Afinal “Lethes” vai buscar o seu título à mitologia grega e à ideia de um rio cujas águas eram capazes de lavar a mente, apagando a memória. Será isso misericórdia ou castigo? Tal como o início pode ser o fim, também essas duas opções comungam em simultâneo nesta obra.

 

 

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MATILDE OLHA PARA TRÁS de Ana Mariz

A imaginação é capaz de criar novas realidades, abrindo portas para universos alternativos que existem somente nos confins da mente humana. Para crianças, essas pessoas pequenas que ainda estão a aprender os limites do seu mundo, a imaginação pode ser uma ferramenta particularmente poderosa. É essa ideia que parece orientar o segundo trabalho de Ana Mariz enquanto realizadora e sua estreia na competição do Curtas Vila do Conde. Focando-se na Matilde do título, a cineasta detalha o dia-a-dia sonhador de uma menina que gosta de se perder em conjeturas e faz-de-conta. O mundo em que ela vive é só dela, um reino de pura felicidade, glamour Hollywoodesco e outras tantas maravilhas. A contrapor tal onirismo, Mariz filma “Matilde Olha Para Trás” com uma estética bastante assente nos paradigmas do realismo Europeu.

Com exceção de alguns desvarios noturnos na escuridão do campo agrícola, vemos sempre a vida da protagonista sem o aparato da sua idealização. Ou seja, olhamos de fora para uma personagem definida pelo seu misterioso mundo interior. Trata-se de uma estratégia curiosa que parece partir do pressuposto que jamais se conseguirá sintetizar o infinito de possibilidades da mente infantil num filme. Assim se afirma a fita como um retrato da vida infantil feito com iguais partes intimidade e distância respeitosa da sua figura titular. Se Matilde não percebe o mundo dos adultos, também nós não a podemos compreender. Fazê-lo, seria atraiçoar a integridade do filme, seu conceito e sua aparente tese.

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NHA SUNHU de José Magro

Indo buscar os mecanismos e estruturas do documentário, o realizador José Magro começa o seu mais recente filme com uma entrevista. Aí, nesse espaço indefinido entre o documental e a ficção, aparece-nos um jovem guineense chamado Issa. Falando com um par de cineastas que nunca vemos, ele responde diretamente para a câmara e conta a vivência de um futebolista africano a tentar vingar em Portugal. Fala ele de sonhos e oportunidades, mas também fala de desrespeito, de desilusões, e violações dos valores religiosos, dos valores humanos que o levaram na viagem de emigração intercontinental.

Neste paradigma de uma narrativa que tenta parecer docudrama, “Nha Sunhu” funciona melhor quando abandona os aspetos mais gritados do seu engenho enganador. A ideia de um filme sobre sua própria feitura tem valor, mas a alma desta película é o protagonista interpretado por Joãozinho da Costa. Fora da entrevista ensaiada, ator e realizador evocam uma melancolia insidiosa, a tristeza das horas passadas sozinho e inebriado de saudade. Mesmo que essas cenas sejam quebradas pela intrusão dessas vozes atrás da câmara, a imagem do desportista desassociado do quotidiano diz mais que mil palavras.

A tática mais aliciante no trabalho de Magro é a decisão curiosa de atirar o futebol para a periferia do seu filme, assumindo que está a examinar o jogador e não as proezas que o seu corpo pode fazer no campo. De facto, todos os planos são compostos de forma a que a bola nunca seja vista. Ouvimos o seu impacto, mas os nossos olhos estão sempre postos em Issa. Mesmo quando a distância faz dele um ponto perdido no cenário do relvado, ele é sempre a força que dá forma a “Nha Sunhu”, um assumido estudo de personagem.

 

Vem acompanhar a cobertura MHD do Curtas Vila do Conde 2021. Visita também o site do festival e consulta a coleção de filmes que podes ver online.

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