"Purkyne's Dusk" | © Curtas Vila do Conde

Curtas Vila do Conde 2021 | Competição Experimental 1

Da Califórnia à Palestina, de jardins a campos agrícolas, da estética pura à sensibilização política, a Competição Experimental do Curtas Vila do Conde de 2021 tem muito para oferecer.

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© Curtas Vila do Conde

WHEN LIGHT IS DISPLACED de Zaina Bseiso

Um laranjal pode ser simplesmente um laranjal. Contudo, também pode ser algo mais. Em “When Light is Displaced” de Zaina Bseiso, o campo agrícola é símbolo e sinédoque. À primeira vista, esta curta experimental observa como o cultivo de laranjas vai sendo eliminado da paisagem los angelina, à medida que a cidade abandona as poucas ligações que ainda tinha a um passado agrário. Contudo, a cineasta encontra outros portentosos significados nas imagens que captura com película granulosa e efeitos rasurantes. Apelando ao diálogo paternal, Bseiso evoca o que o laranjal pode representar para uma perspetiva palestiniana. O que vemos são postais vivos da Los Angeles contemporânea.

No entanto, conversas sobrepostas e pesos históricos sublimados, transformam estes laranjais de Jaffa que os colonatos israelitas têm vindo a desmantelar. Influenciada pela ambição documental, a realizadora quer evocar a realidade dura que um imperialismo moderno trouxe, as esperanças que morrem todos os dias na Palestina. Contudo, o pai dela discorda. Para o senhor mais velho, o cinema existe para propulsionar a fantasia e, quiçá, encontrar uma irrealidade superior ao pesadelo que vivemos. Tanto existe na simplicidade desta curta. Sem renegar a humildade de um registo elegíaco agrícola, Bseiso constrói um palimpsesto estrondoso de esperanças e sonhos condensados na forma de um berçário citrino.

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© Curtas Vila do Conde

PURKYNE’S DUSK de Helena Gouveia Monteiro

Num jardim, algures, vive-se uma bucólica tarde de verão. Flores e poças vibram com cor, o céu espelhado no chão, as árvores traçando desenhos disformes contra o fundo celestial. Esta é uma paisagem mágica, onde o tempo tudo altera. Pelos movimentos do sol, seu definhar na longa viagem do dia para a noite, a cor que nossos olhos captam vai transfigurar-se. Os rosas do início são feitos em rubro vermelho pelo beijo da escuridão. Se nos concentrarmos no verde das folhas, depressa toda a imagem se subsume em esmeraldas frios. Depois vem o azul, a noite com suas tinturas. Como estamos em cinema, também o preto-e-branco se manifesta, essa ausência da cor, esse espectro de prata e sombra em constante movimento.

Apresentando pela primeira vez no Curtas Vila do Conde, Helena Gouveia Monteiro faz jus à ideia de cinema experimental. De facto, “Purkyne’s Dusk” é uma pura experiência sobre as propriedades da cor, a reação que esta desabrocha em quem a vê e o modo como diferentes condições de luz alteram a perceção cromática. Nesse sentido, a cineasta inspirou-se nas teorias do fisiologista checo Jan Evangelista Purkyne, pondo-as à prova no contexto cinematográfico. Apresentada sem som, esta é uma criação puramente visual, um festim de engenho fotográfico que combina os 8mm com manipulação digital e processos químicos mais arcaicos. Em suma, um festim para os olhos muito bem selecionado para esta secção do festival.

 

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© Curtas Vila do Conde

WHO IS AFRAID OF IDEOLOGY? PART III MICRO RESISTENCES de Marwa Arsanios

A cineasta, artista plástica e jornalista Marwa Arsanios tem vindo a desenvolver um projeto multifacetado sobre ideologias políticas no mundo moderno. O seu trabalho de investigação vai pela veia do documentário, mas a apresentação tende a fugir ao modelo do exposé. Para ser mais específico, a realizadora americana explora os limites da exposição, criando tanto para a sala de cinema como para a galeria museológica. Desta vez, o foco do seu olhar está no cruzamento entre ecologia e feminismo, estudando um caso colombiano de ativistas que tentam reivindicar o seu direito à terra que cultivam. Fala-se de direitos dos nativos e de repressão autoritária, de camaradas e mortes misteriosas.

O tema é extremamente importante e aplaudimos muito a audácia e coragem, tanto de Arsanios como das mulheres que ela filma, nomeadamente a elusiva figura de Mariana. Contudo, confessamos questionar a presença de “Who is Afraid of Ideology? Part III Micro Resitencias” na secção experimental do Curtas Vila do Conde. Se uma obra como “Purkyne’s Sunset” engloba toda a missão da arte que experimenta consigo mesma, todos os gestos mais esteticamente transgressores de Arsanios tendem para a superficialidade. O centro do seu projeto é a história, relatada de forma direta e fotografia digital comum. Somente a composição que foge à cara humana e o uso de imagens microscópias sugere algum experimentalismo. Fora disso, é um filme que peca pela convenção, sendo mais forte como jornalismo do que como cinema.

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© Curtas Vila do Conde

MEDIDAS ATRASADAS de Nir Evron

Todo o filme, passado algum tempo, se torna em mausoléu, guardando assim as imagens daqueles que já morreram, vidas passadas reduzidas a fantasmas de celuloide. A câmara assim concede imortalidade, mas também serve de registo do momento no instante em que ele morre e se torna memória. É a máquina que perpetua aquilo que vê, mas também é arma que mata. O realizador Nir Evron, numa das suas muitas deambulações concetuais, até se pergunta sobre as ligações de engenharia entre a câmara de cinema e a arma de fogo. No fundo, o tambor rotativo da fita e das balas nasce do mesmo movimento e, em inglês, disparar e filmar até são a mesma palavra. São essas algumas das ideias que o realizador israelita desenvolve no seu mais recente filme.

“Medidas Atrasadas”, tal como a obra de Marwa Arsanios, tanto pertence ao museu como ao cinema, representando uma espécie de jornalismo configurado em instalação audiovisual. Só que, no caso de Evron, mais do que o conteúdo das imagens, ele interessa-se pela natureza da imagem em si. Tal decisão poderia ser vista como uma fuga ao contexto político em que ele trabalha, mas a ambivalência intelectual acaba por ser a sua própria espécie de radicalismo. Examinando imagens dos Lehi, um grupo paramilitar sionista na década de 40, o cineasta encontra na ruína celulosa uma infinidade de possíveis leituras. Os soldados judeus tanto podem ser heróis como vilões, libertadores ou agentes da invasão que roubam território palestino e tornam antigos palácios árabes em monumentos ao estado de Israel.

No contexto em que “Medidas Atrasadas” nos chega, a relutância de Evron em dar uma conclusão final às imagens apela à crítica histórica e ao questionamento de mitos nacionalistas por parte de um império conquistador no pleno século XXI. Apresentado em galerias de Tel Aviv, este filme prefere fazer perguntas ao invés de dar respostas e é tão mais valioso por isso. No fim, é o espetador que tem de decidir o que tira das imagens belicosas.

 

Explora a nossa cobertura do Curtas Vila do Conde 2021. Não te esqueças de visitar o site do festival também e explorar a seleção de filmes que podes ver na sua plataforma online. Nestes tempos de pandemia, a missão de divulgar cinema inovador transcende o cinema para chegar à casa do espetador.

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