Orville Peck

Debaixo do Radar | Março 2019

Seguidamente ao lançamento do Mês em Música de Abril, revisitamos, através do Debaixo do Radar, a imponente chegada da Primavera a 2019 e um mês excepcionalmente diversificado. 

O tórrido mês de Maio já impõe a sua notável presença, abrasando os corpos lusitanos e antecipando um Verão repleto de inolvidáveis peripécias, romances efémeros e desgostos inevitáveis (já no primeiro dia de Março, a banda Gold Connections, entoava, de modo nostálgico, “Summer all the time/ We want Summer all the time”, na faixa “Locust Days”, ode a tempos saudosos e irreproduzíveis, incluída na Playlist de Spotify), quando decidimos revisitar a imponente chegada da Primavera ao ano de 2019.

No Mês em Música de Março, noticiámos a canção “Movies” de Weyes Blood, terceiro single do excepcional Titanic Rising, um dos favoritos do ano para a Magazine.HD e expectável presença nas muito aguardadas listas dos melhores discos da década. O mais recente álbum de estúdio da banda American Football, LP3, foi igualmente merecedor de uma distinção de mérito. A ausência da célebre habitação, em 704 W. High Street, Illinois, da capa do novo disco (emblema elementar da segunda vaga de emo, de um estilo de música de nicho, intrinsecamente associado às atribulações existenciais de jovens românticos e auto-destrutivos, adoradores da idealização de uma linha ténue que separa a arte da realidade (citando Weyes Blood: “I wanna be in my own movie/ I wanna be the star of mine/ in my own”), e aos melodramáticos arcos narrativos que tomaram lugar, durante a década de noventa, nos subúrbios norte-americanos do Midwest) simboliza, acima de tudo, um novo capítulo na vida dos irmãos Mike e Nate Kinsella, Steve Lamos e Steve Holmes, os “desafios da maturidade”, sobrevivendo o interminável eco de “We’ve re-written history (these things change)” pelas ruas de Urbana, nos auscultadores das gerações seguintes.

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O ecletismo na Playlist de Março do Debaixo do Radar é incontestavelmente perceptível, a união de díspares linhagens musicais em prol de uma apaixonante excursão pelo campo da música underground. Seguindo uma linha de conteúdo similar ao Mês em Música, alicerçando-se nos conceitos de transição e conclusão, o Debaixo do Radar de Março assume a configuração de uma estação terminal para alguns projectos, mas também de uma fase intermédia para outros. O retorno (ou a redenção) de lendas da música alternativa, o despontar de novos talentos. Um ciclo infindável, sustentado pelos trilhos habilmente expostos por antecessores, um mundo em incessante transformação e uma sempre actual ânsia pela revolução sonora, pelo tocante tributo ao ídolo ou pela divulgação de uma doutrina pessoal, recorrendo ao poder da música.

Scott Walker, artista vanguardista que faleceu no dia 22 de Março e também ele próprio um exímio exemplar da metamorfose e experimentação sonora, comprovou toda a sua sapiência através de duas declarações que, a nosso ver, retratam a indústria da música enquanto actividade puramente emocional, apta para influenciar e ser influenciada, propícia para a comunicação de pontos de vista insólitos, fundação de hospitaleiros portos seguros ou mero trabalho catártico substancial: “I couldn’t have made the records I’ve made in any other place” (2003) e, mais recentemente, “I feel I’m writing for everyone, but they haven’t discovered it yet. They will – I’ll just be six feet under” (The Guardian, 2018). Através da arte (e apenas da arte), invadimos a psique do ser-humano original, sentimos com ele, sentimos por ele, reflectimos, replicamos e inovamos. A conversão de um episódio privativo e momentâneo numa obra sempiterna e relacionável é opcional, porém gratificamos todos aqueles que aspiraram e conseguiram executar, assim como temos “fé” (uma referência a “Faith”, a enigmática, mas belíssima, última faixa da Playlist de Março, concebida pelos American Pleasure Club, ex-Teen Suicide) num futuro onde os artistas contemporâneos terão impacto idêntico na sua respectiva audiência. O Debaixo do Radar de Março é o relevante testemunho de que nos encontramos em boas mãos.

Março Debaixo do Radar | Singles

Debaixo do Radar
Royal Trux

Este mês sentimo-nos obrigados a fazer “batota” e a distinguir algumas canções que, não tendo sido lançadas como singles, brilharam (pelo menos, aos nossos ouvidos) nos respectivos álbuns de estúdio. Os Royal Trux, banda noise rock de Washington D.C. composta pelo duo Neil Hagerty e Jennifer Herrema, retornaram, quase duas décadas depois de Hands of Glory (2002), com um décimo-primeiro disco-surpresa, White Stuff (2019), para deleite da legião de seguidores da ínfame banda de culto, notória pela sonoridade selvagem, idiossincrática, assentada nas vozes tempestuosas do ex-casal, nas estruturas musicais imprevisíveis, mas também pelo estilo de vida desordeiro e o frequente consumo de drogas pesadas. Citando Jennifer Herrema: “Nothing has changed within the Truxian universe we created for ourselves as teenagers, because Trux is and will always be our way of life whether living it together or separate… This is no hobby rock kick. We are long game lifers with no fear, no regrets and plenty of gratitude for the way the universe has rewarded our singular dynamic” (sobre White Stuff).

Royal Trux, White Stuff | “Purple Audacity #2”

Purple Audacity #2“, a terceira faixa do novo disco, é a estampa imutável de uma banda que agitou a década de noventa através do seu registo musical inconfundível e de duas personalidades igualmente excêntricas. Previsivelmente, a reunião dos Royal Trux foi efémera, com a digressão pelos Estados Unidos da América cancelada, pronunciamentos públicos crípticos de ambas as partes e um pressentimento geral de que algo de muito errado se passa no universo Truxiano. Como diriam (e bem) os Love and Rockets, “No New Tale to Tell”. Cai-nos desamparado no colo o mais recente álbum de estúdio, quase que abandonado pela dupla de inventores,  e uma “Purple Audacity #2” reveladora do talento inerente de um par de almas perdidas, “estrelas de rock” herméticas que não desejam ser encontradas. “Purple Audacity #2” ilude um ouvinte virgem através das suas melodias vocais antémicas, uma secção rítmica arrojada e motivos de guitarra contagiantes, decididamente conceptualizados sob o nectáreo efeito das flores do mal. No entanto, é este mesmo instrumento que, a meio caminho, acaba por aniquilar todas as camadas consonantes da canção, tornando-a num alucinante turbilhão de desarmonia. Neil Hagerty e Jennifer Herrema, óptima malha. Vão dando notícias.

Potty Mouth

No sentido inverso à filosofia de negócio dos Royal Trux, temos a banda pop-punk norte-americana Potty Mouth e destacamos, do segundo álbum de estúdio, SNAFU (2019), a canção “Massachusetts“. Contrariamente ao trabalho de produção ríspido em Hell Bent (2013), o disco de estreia, a baixista Ally Einbender, a guitarrista e vocalista Abby Weems e a baterista Victoria Bandanas optaram por seguir um percurso mais polido com SNAFU, plenamente direccionado para o pop consonante. Após rescindirem contracto com a editora discográfica Old Flame Records e restringirem-se a uma ética DIY, com o objectivo de assumir total controlo criativo sobre o produto conceptualizado, o trio acabou por sentir a necessidade de introduzir um elemento externo, mais versado, no processo de desenvolvimento do disco, contratando a engenheira de som Courtney Ballard (Good Charlotte, State Champs) e garantindo, deste modo, que a produção de SNAFU correspondia à lustrosa sonoridade de arena exclusivamente idealizada pela banda. O resultado final é um álbum de estúdio tecnicamente aprimorado, surpreendentemente conseguido em condições de baixo orçamento.

Potty Mouth, SNAFU | “Massachusetts”

“Massachusetts” (bem… SNAFU, na íntegra) é mais um fiel discípulo da era Enema of the State (1999) e dos memoráveis motivos de guitarra concebidos por Tom DeLonge, banda-sonora indispensável de Verões a fio, house parties e paixões passageiras. “I’m moving out, It’s now or never/ Can’t hang around this place forever/ Hey man, some day you’ll understand/ When you die young/ In Massachusetts”. As Potty Mouth lutam pelo estrelato a todo o custo. Possuem o estilo visual, a sonoridade requerida. A perspectiva poética, naive, da vida. Por enquanto, terão de se contentar com a significativa posição de “cabeça de cartaz” do Verão de 2019. Todavia, auguramos-lhes um futuro de grandes êxitos e sucesso na indústria da música popular.

Debaixo do Radar
The Brian Jonestown Massacre

Por fim, salientamos o álbum homónimo da banda de rock psicadélico de São Francisco, The Brian Jonestown Massacre e a canção “Tombes Oubliées” (em português, “túmulos esquecidos”). Desde os anos noventa que o grupo californiano, liderado pelo estapafúrdio e delirante Anton Newcombe, expande uma já vasta discografia, repleta de música largamente influenciada pela psychedelia da década de sessenta, uma subcultura que, recorrendo a múltiplas formas de arte explorou a recriação ou reflexão de estados alterados da consciência. The Brian Jonestown Massacre (2019), o décimo-oitavo disco da banda, substitui as habituais menções a ídolos nos títulos dos álbuns de estúdio (Who Killed Sgt. Pepper? (2010), My Bloody Underground (2008)) pelo alinhamento mais consistente dos últimos dez anos e o retrato de um egocêntrico artista que, duas décadas depois do lançamento do disco de estreia dos The Brian Jonestown Massacre, Methodrone (1995), não tenciona perder o trono desta nova era da música psicadélica para qualquer um dos grupos que, inspirando-se na sua sonoridade e dos seus antecessores, procuraram revitalizar o rosto da “cena” (The Black Angels, Black Lips). As sucessivas substituições de membros da banda e a discografia musicalmente versátil (mesmo que, por vezes, a quantidade suplante a qualidade) são os principais indícios de uma figura vinculada às ideias de “fama” e “grandiosidade”, mas que também nutre um grande respeito pela arte da música e pelo seu projecto perdurável.

The Brian Jonestown Massacre, The Brian Jonestown Massacre | “Tombes Oubliées”

Em “Tombes Oubliées”, a segunda faixa do disco homónimo, os versos proferidos no idioma francês pela afiliada de longa data Rike (Friedrike) Bienert reflectem a forte convicção de Anton Newcombe de que o “anglocentrismo destrói culturas”. Simultaneamente, a conexão entre as etéreas melodias vocais, cantadas na “langue de l’amour” e a popular faceta hedonista, luxuriosa do rosto dos The Brian Jonestown Massacre é incontestável. A sonoridade de “Tombes Oubliées” vai beber ao shoegaze, às características camadas de ruído meloso dos My Bloody Valentine, assim como às guitarras tétricas dos Velvet Underground. Uma jornada libertina, hipnotizante, que deve muito do seu impacto emocional ao trabalho de produção exímio de Anton Newcombe. A mistura de “Tombes Oubliées” (destaque para a bateria de Sara Neidorf, límpida como cristal) é nada menos que orgásmica (verdade seja dita, este é mesmo o adjectivo ideal para associar a uma composição que transpira erotismo).

Março Debaixo do Radar | Álbuns

Debaixo do Radar
Orville Peck

A influência do “grande ecrã” no dia-a-dia do ser humano é inegável, particularmente no mundo dos sonhos. Fantasiamos com o que não temos e gostaríamos de ter, com as histórias que não vivemos e desejaríamos viver, com as pessoas que não conhecemos e apreciaríamos conhecer. Novamente, esta é uma das razões que nos leva a considerar “Movies” de Weyes Blood um dos melhores singles do ano: o “romantismo” prudente, a perspicácia crucial, de modo a conseguir transcrever esta percepção universal, porém abstracta e ocasionalmente incompreendida, para o “papel”. Todavia, este impacto emocional provocado pela imagem e arco narrativo beneficia, espontaneamente, da banda-sonora que o escolta. Frequentemente, é mesmo a música que perdura, já depois da “figura” se ter desvanecido. A nossa própria vida (ou a “vida” que idealizamos), sonorizada pelos artistas e bandas que admiramos.

Geralmente, estas fantasias nunca chegam a obter uma forma física. Sonhar é fácil, um acto absolutamente livre e individual. A sua transferência para a “realidade” origina adversidades ou mesmo impossibilidades. Motivados por díspares movimentos musicais, ídolos e obras de arte, os Royal Trux, as Poppy Mouth e Anton Newcombe imaginaram, assim como todos os adolescentes que escutaram a cassete dos American Football em 1999. Alguns partiram em busca da concretização física dos seus devaneios, outros alcançaram-na, outros não chegaram a partir. Porém, a todos foi concedida a possibilidade de sonhar. E é mesmo este estágio que Pony (2019) de Orville Peck enobrece.

Orville Peck, Pony | “Winds Change”


Orville Peck não é detentor de um “rosto”. O cantautor oculta a sua identidade por detrás de uma máscara, chapéu de cowboy e postura ambígua. A sua voz ternurenta, a admiração pelas peripécias da vida e a habilidade para contar histórias que se situam entre um universo lynchiano, surreal, e o identificável, mundano, permite-lhe encontrar um abrigo, uma zona de conforto, dentro do coração de cada ouvinte. Inicialmente, questionamos a sua personalidade hermética. “Quem é Orville Peck? De onde vem? O que procura? Para onde se dirige?”. Rapidamente, ganhamos consciência de que a sua “máscara” é também a nossa. O valor existencial, a realidade, a emoção e a experiência presentes na sua música são humildemente compartilhados com a audiência. A janela para reflectir sobre o passado e uma estrada de grande beleza cénica para conceptualizar o futuro.

Incessantemente melancólico e desperto para a complexidade de descobrir “esperança”, “algo em que acreditar”, no meio de períodos turbulentos, Orville Peck detecta um refúgio convidativo no mundo das ideias. Agarra no microfone e gira-o no ar, batendo a bota e celebrando o “sonho”. Convida todos os “pensadores” a dançar ao som da sua música, uma revitalização do género country, extensivamente influenciada pelo new wave (se nos entristece o facto de Matt Johnson não lançar nova música com maior frequência, aqui descobrimos um autêntico seguidor da sua sonoridade), mas também pelas baladas de Elvis Presley ou o shoegaze de She Hangs Brightly (1990), o disco de estreia dos Mazzy Star. O ritmo do pandeiro, o dedilhar da guitarra, os sintetizadores imutáveis, todos se unem em prol de um deleitoso clímax fílmico. Orville Peck “fecha a cortina” antes do desenlace, presenteando-nos com livre-arbítrio e poder de decisão sobre a função da “imaginação”, estimulada pela música, em cada uma das nossas vidas, até que ponto nos “consome” ou nos impulsiona em busca de uma nova aventura. Como tornar este final anti-climático? Pois bem, com a divulgação do disco seguinte…

Sun Kil Moon

Senhores e senhoras, encerramos o Debaixo do Radar de Março com uma sucinta nota sobre Mark Kozelek. Sun Kil Moon. I Also Want To Die In New Orleans (2019). O cantautor, nascido e criado em Ohio, que nutre um carinho muito especial por Portugal já desde o tempo em que liderava a banda de slowcore Red House Painters (tendo dado o nome de um dos pratos nacionais mais populares, “Caldo Verde” à sua editora discográfica), publicou uma nova passagem do seu sempre polémico, mas cativante diário. Uma verificação do mundano, a realidade isolada do “sonho”, exposta por um mestre da narrativa que insiste em “coser” a sua “persona”, o ordinário dia-a-dia, à música que concebe, destruindo, por completo, a muito debatida noção de “arte separada do artista”.

Sun Kil Moon, I Also Want To Die In New Orleans | “Day In America”

Desde o lançamento de Among The Leaves (2012), álbum de estúdio em que Mark Kozelek trocou, pela primeira vez, o intenso lirismo metafórico dos seus discos anteriores pela denotação, pela “descrição” improvisada, que o autor norte-americano se manteve fiel a este estilo de composição ímpar. I Also Want To Die In New Orleans (título alusivo ao disco de estreia do duo de hardcore hip-hop Suicideboys, I Want To Die In New Orleans (2018) e uma manifestação do eclectismo musical de Mark Kozelek), o mais recente exemplo deste cenário, combina a entrega monótona do artista e o já distintivo dedilhar da guitarra acústica com o aprazível saxofone de Donny McCaslin. Música fundamentalmente catártica, processada pelo próprio compositor no “calor do momento” (a entoação de Mark Kozelek espelha ponderações e reacções nada menos do que puras). Uma exploração pragmática, niilista, da sensação de estar “vivo” no ano de 2019. Idolatrado por uns, abominado por outros, Mark Kozelek estabeleceu a sua natureza sui generis no mundo da música. O nosso breve tributo a um dos cantautores mais peculiares das últimas décadas e uma oportunidade de escutar as histórias que tem para partilhar, a sua contemplação dos “arredores”, simultaneamente desinteressada e compenetrada (incluímos a faixa “Day In America” na nossa Playlist de Março).

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