"Cover-Up" | © Plan B Entertainment

DocLisboa ’25 | Cover-Up – Análise

Em 2003, Laura Poitras realizou a sua primeira longa-metragem em colaboração com Linda Goode Bryant. Apesar de já ter feito algum trabalho em curtas no passado, “Flag Wars” foi a génese desta cineasta, na forma como a conhecemos no presente. De facto, logo aí se registavam preocupações que continuariam em anos vindouros, sendo esse um documentário filmado ao longo de quatro anos, durante os quais a cineasta observou criticamente o processo de gentrificação de um bairro predominantemente Afro-Americano em Columbus, no Ohio. De seguida, Poitras partiu para outra reportagem sobre injustiças com origens nos EUA. Só que desta vez filmou no Iraque.

“My Country, My Country” é a primeira de três longas sobre a chamada Guerra ao Terror que surgiu da política internacional americana no rescaldo do 11 de setembro. Na plenitude do jingoísmo na sua nação, a realizadora atreveu-se a questionar as narrativas vigentes. “The Oath” continuou esse projeto e “Citizenfour” foi a sua conclusão, seu apogeu e derradeira tese, tomando a forma de uma entrevista exclusiva com Edward Snowden aquando das suas revelações sobre a máquina sistemática dos EUA na violação de direitos vinculados pela Constituição.

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Escusado será dizer que estes trabalhos tanto lhe trouxeram louvores como ódio e censura, e que a sua liberdade de movimento foi posta em causa por forças governamentais após a estreia de “My Country, My Country” em 2006. Ao mesmo tempo, ela era nomeada para prémios e até ganhou o Óscar em 2015. A década que se seguiu a essa vitória foi complicada. “Risk” tentou reproduzir o mesmo formato de entrevista reveladora com Julian Assange no lugar de Snowden, mas os resultados são superficiais, vítimas de uma ambivalência suspeita entre a artista e seu sujeito. Seguiram-se muitas curtas e, finalmente, “Toda a Beleza e Carnificina.”

Nessa obra que lhe valeu o Leão de Ouro em Veneza, Poitras tecnicamente retrata a fotógrafa Nan Goldin. Só que o filme não é só um diálogo retratista entre duas mulheres que empunham câmaras. Pelo contrário, torna-se numa expansiva visão sobre a crise dos opiáceos nos EUA, o papel da família Sackler nesse flagelo e a impunidade conferida a grandes corporações, tanto a nível governamental quanto cultural. Do indivíduo para todo um contexto sociopolítico em que se insere, com que trabalha, este é um movimento cinematográfico que Poitras repete em “Cover-Up,” um projeto em desenvolvimento desde 2005.

Uma entrevista em desenvolvimento há vinte anos.

cover up critica doclisboa
© Plan B Entertainment

Foi há vinte anos que a realizadora abordou Seymour Hersh pela primeira vez, mas o jornalista consagrado rejeitou o pedido de entrevista. Só em 2025 é que o repórter lá consentiu à proposta, parcialmente devido ao envolvimento de Mark Obenhaus, realizador de documentários televisivos com quem Hersh já havia outrora colaborado. O que daí resultou foi a base de “Cover-Up”, apesar do filme ser muito mais que uma mera conversa entre Poitras e este homem. Porque, através de Hersh, a realizadora explora a História dos EUA enquanto sociedade de violência e examina os sistemas do poder que conferem imunidade ao Estado, às corporações, ao capital.

Por conseguinte, “Cover-Up” não é tanto sobre Hersh quanto sobre as histórias que ele investigou e trouxe ao público, a subsequente reação a esses trabalhos e a natureza cíclica da dinâmica. A primeira destas instâncias é o exposé sobre o massacre de My Lai no Vietname, quando soldados americanos chacinaram toda uma vila de civis, incluindo mulheres, crianças, bebés. Tudo começou com conversas e rumores entre os militares com quem Hersh confraternizava, algumas informações que ele seguiu até chegar à hedionda verdade, factos aterradores que levaram a momentos tão chocantes quanto um soldado a descrever, apático, como as suas balas extravasavam os crânios de recém-nascidos.

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Em montagem alucinante, mas sempre incisiva, Poitras enche o ecrã de documentos oficiais, aproximando-se tanto do papel que conseguimos captar a textura da tinta deixada por impressoras ancestrais. Hersh é o veículo que a cineasta usa para aceder e publicar estes arquivos, para revisitar estes casos, para examinar política americana e uma paisagem mediática em constante apelo ao instinto reacionário. Digo isso porque todas as revelações do jornalista são seguidas de pressões externas, ora para perpetuar o encobrimento, ora para desvalorizar suas descobertas. De My Lai, ao Watergate, à corrupção corporativa da Gulf + Western, as violações constitucionais da CIA, a tortura em Abu Ghraib, até ao genocídio em Gaza.

O filme até olha para trás, para o Holocausto como parte essencial da história familiar de Hersh, cujo pai judeu deixou a Europa poucos anos antes do flagelo dos Nazis assolar o continente. De facto, mesmo que não o faça de forma óbvia, há uma repetição de linguagem muito particular no modo como se falam dos crimes cometidos contra os judeus por Hitler e seus capangas, da impunidade bárbara dos americanos no Vietname e da violência de Israel contra o povo da Palestina sob ocupação colonial. Este último pormenor manifesta-se numa história ainda em andamento, telefonemas sobre testemunhos médicos cujas descrições de crianças baleadas no crânio invocam os fantasmas de My Lai.

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O desespero de Hersh, do jornalismo, da humanidade.

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© Plan B Entertainment

Convém, contudo, dizer que Hersh não está particularmente disposto a deixar Poitras perscrutar o seu trabalho em curso. De facto, até se mostra bastante relutante em dialogar sobre projetos passados, vociferando, ultrajado, sobre as informações com que os cineastas o confrontam ou os detalhes em que eles se decidiram focar dentro dos arquivos pessoais do jornalista. Em muitos casos, esta fricção entre entrevistador e entrevistado seria a desgraça de um documentário. Não há aqui nenhuma aliança cúmplice que Poitras forjou com Snowden, nem o entendimento enfático com que Goldin se expôs à realizadora.

Pelo contrário, as semelhanças entre o jornalista e a realizadora documental provocam tensões muito produtivas, chegando a um momento caricato em que Hersh decide interromper a entrevista. Lá, ela se reinicia, sendo que este veterano dos jornais não é senhor de meias-medidas nem de abandonar um projeto a meio, mas a marca dessa discórdia permanece na mente do espectador. Graças a ela, Poitras consegue complicar a experiência de “Cover-up” e propor um filme que tanto usa Hersh como acesso para temas maiores, assim como um sujeito conclusivo só por si, uma mistura de contradições humanas na qual se sumariza tanto do que é ser um jornalista, ideais valerosos e hipocrisias em comunhão.

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Dito isso, a interrupção da entrevista e a relutância de Hersh têm consequências negativas também. Chegado ao século XXI, a crónica sobre os trabalhos do repórter começa a apressar-se de tal maneira que sentimos a perda do detalhe granular. Sua nova vida fora das instituições de notícias – Hersh escreve em Substack nos tempos que correm – é abordada de modo muito sumário e, de maneira geral, parece que Poitras finca o pé no pedal e voa acelerada pelos últimos trinta minutos do filme. Esse movimento ocorre em contradição com o que se observa no retrato do jornalista, uma crónica da Verdade enquanto princípio e agente corrosivo na vida de uma pessoa dedicada à sua procura.

Felizmente, tanto Poitras como Oberhaus pontuam a conclusão de “Cover-Up” em jeito devastador, quase justificando a arritmia desta fase final da fita. Em adeus, a realizadora questiona Hersh sobre a impotência do jornalista que, não obstante todas as injustiças reveladas, continua a viver num mundo onde tais horrores acontecem ciclicamente, sem nada ou ninguém capaz de impedi-los. Aí, quase em lágrimas, vemos o indivíduo, em frente à câmara, espelhar a tragédia da condição humana e o inferno destes sistemas, pelos quais algumas vidas são valorizadas acima de outras. Há um sentimento de inutilidade muito forte, de mãos dadas com o dever. Nesse instante, Hersh é um reflexo dos realizadores, dos conceitos de jornalismo e de cinema documental, da audiência do DocLisboa perante um dos filmes mais essenciais do ano.

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Cover-Up

Conclusão:

  • À boa maneira de Laura Poitras, “Cover-Up” constitui um perfil de Seymour Hersh ao mesmo tempo que explora temas muito maiores do que uma só pessoa pode conter em si. Em entrevista com o jornalista, a realizadora Oscarizada e seu colega, Mark Obenhaus, dissecam as ações do governo americano no estrangeiro, delineando a barbárie que se regista desde a Guerra do Vietname até ao apoio institucional dos EUA para com o genocídio que Israel comete em Gaza e na Cisjordânia. Fala-se de My Lai e de Watergate, do Iraque e do papel fulcral de Kissinger e companhia na ascensão de Pinochet no Chile.
  • Fala-se disso e muito mais, sendo que cada história e cada caso reverberam no formato documental, permitindo uma análise abrangente e a exposição de uma torrente sem fim de imagens de arquivo, mapas e documentos oficiais. Tudo isso serve para evidenciar as injustiças e o flagelo, para puxar pelo ultraje do espectador e para fomentar um diálogo entre o público, os lados mais negros da História, os seus ecos no presente. Pois, como o filme bem argumenta, nós todos pertencemos a uma sociedade de violência em que tais crimes surgem ciclicamente, sem fim à vista.
  • Em comparação direta com outros trabalhos de Poitras, há alguma arritmia estrutural em “Cover-Up”. Sente-se especialmente na última meia hora, mesmo que uma cena final perfeita nos consiga arrebatar a todos e redimir qualquer fragilidade que a possa ter antecedido. É difícil pensar num filme mais essencial na programação do DocLisboa que, como todos os anos, se mostra um dos eventos mais importantes para a cinefilia lisboeta. Todo o mundo cabe na capital portuguesa durante a semana do festival. De facto, todo o mundo cabe no grande ecrã.
Overall
8/10
8/10
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