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Toda a Beleza e a Carnificina, em análise

Laura Poitras dá a conhecer “Toda a Beleza e a Carnificina”, uma obra protagonizada por Nan Goldin e Marina Berio!

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Prémios há muitos e, por isso mesmo, uma Palma de Ouro em Cannes, um Leão de Ouro em Berlim ou um Leão de Ouro em Veneza que não provoque polémica ou uma saudável, mesmo que inflamada, discussão significa que os felizes contemplados com esses galardões máximos dos respectivos festivais, entre mil e um outros que podíamos citar, não passam de uns quantos filmes fadados para o redutor consenso, mesmo que ilusório ou pura e simplesmente fabricado, sentimento que reduz a fruição das suas qualidades cinematográficas e correspondentes virtualidades artísticas a uma área cinzenta da cinefilia onde por vezes circulam “produtos”, como gosta de lhes chamar o marketing, que um dia assomam para a luz e nos meses seguintes já ninguém se lembra ou poucos se interessam por valorizar, a não ser os mais fanáticos colecionadores de cromos oriundos da fugaz espuma dos dias.

ESTES SÃO OS MEUS SEGREDOS, E ESTA É A MINHA DOR!

Toda a Beleza e a Carnificina
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Digo isto porque o documentário ALL THE BEAUTY AND THE BLOODSHED (TODA A BELEZA E A CARNIFICINA), 2022, realizado por Laura Poitras (autora de um poderoso exercício documental intitulado CITIZENFOUR, 2014, sobre a controversa, necessária e contundente prestação política de Edward Snowden), foi o grande vencedor do mais recente Festival de Veneza. Mas este Leão de Ouro foi recebido por uns como um equívoco no Palmarés e por outros como uma prova de que o cinema nas suas diversas vertentes merece ser encarado como um lugar de reflexão sobre o que se passa no mundo e, já agora, associado ao nosso conhecimento das consequências do mal ou do bem que nos pode rodear e afectar a qualquer momento. Numa palavra, um cinema capaz de despertar o nosso olhar e a nossa consciência para o que faz a diferença nas nossas vidas, sobretudo quando nos munimos da informação necessária e suficiente para analisar com mais profundidade as relações entre as sociedades do poder versus o poder das sociedades, leia-se, os homens e mulheres que se dispõem a combater, organizados, pela defesa do que há de mais sagrado, a defesa da vida e da natureza humana, e neste filme, contra as agressões de uma certa plutocracia financeira. Para levar a água ao seu, nosso, moinho, Laura Poitras foi buscar os ecos e as memórias, o passado e o presente da vida e obra de uma conhecida activista, a fotógrafa e artista Nan Goldin, sobretudo o exemplo do seu papel militante a favor de uma causa nobre relacionada com a denúncia dos efeitos dos medicamentos que usam opióides, ou seja, substâncias sintéticas com estrutura química diferente mas com efeitos similares aos opiáceos, produtos que provocam dependência e podem acabar com a vida de muitos seres humanos, como sucedeu nos Estados Unidos e não só.

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Toda a Beleza e a Carnificina
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Deste modo, a realização irá acompanhar o percurso pessoal e existencial de uma mulher que usa a razão e o coração e cuja cumplicidade com o projecto da realizadora acaba por gerar na estrutura da montagem um cruzamento entre a objectividade das suas acções de luta (desencadeadas com o propósito de responsabilizar a gigante farmacêutica Purdue Pharma, assim como os diversos ramos da multimilionária família Sackler, proprietária da referida empresa) com a relativa subjectividade da exposição dos seus segredos vitais, nomeadamente a relação com a irmã mais velha, que ainda jovem se suicidara, e com a mãe, de quem não guardava as melhores recordações. Pelo meio saberemos ainda como, num período longo, desceu aos infernos e como sobreviveu a essa estranha e por vezes quase consentida viagem assombrada pelas catacumbas do desespero e da felicidade artificial, nos seus primeiros anos sem o peso da família e o espartilho das convenções de uma família judia, conservadora e suburbana. Iremos ver como se situou nos limites da marginalidade, que de uma maneira ou de outra acabou por moldar o seu pensamento e a sua personalidade. Há pois em TODA A BELEZA E A CARNIFICINA um jogo de sombras luminosas e de cores fortes que, findos os anos de brasa, desagua hoje já não nas margens da realidade a que se foge mas sim no rápido fluxo de um rio que a faz navegar para uma foz algures nos meandros do actual confronto com o status quo americano, viagem que faz junto com outros activistas que desejam igualmente atingir uma praia de luz branca e redentora onde os seus desejos de justiça se concretizem. Nan Goldin passa a ser assim o rosto que agora se mostra no quadro colectivo de uma militância activa integrada no grupo que ajudou a fundar, o P.A.I.N. (Prescription Addiction Intervention Now). Tudo o que diz respeito ao conjunto de intervenções promovidas com grande aparato no sentido de provocar os poderes mediáticos, nomeadamente no interior dos museus que os Sackler apoiavam financeiramente como mecenas, possui uma marca única: fazer passar a mensagem de alerta sobre o consumo de medicamentos que podem matar. Mas sente-se que há uma outra dimensão no filme que procura evitar uma outra morte, provavelmente mais difícil de encarar. Na verdade, são muito significativas as sequências em que damos conta de uma série de confissões nada fáceis de assumir, ditas em voz alta e sem retoques pela protagonista, segredos revelados numa dialéctica permanente entre as palavras e as imagens dos diaporamas que acrescentam e confirmam as vísceras, a carne e o sangue de momentos de ouro e de chumbo: slideshows como The Ballad of Sexual Dependency, The Other Side, Sisters, Saints and Sibyls e Memory Lost.

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Toda a Beleza e a Carnificina
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Numa obra cuja memória se solta contra a repressão sexual, contra a discriminação social, contra as desigualdades entre os muito ricos e os muito pobres, divisões de classe que fazem por vezes pessoas muito diferentes ocupar os mesmos espaços de convívio e, quase sempre, denotando uma controlada perdição. Como se costuma dizer, se as imagens não ajudam a matar, aqui e além moem, porque não contribuem, por si sós, para reparar o lado negro do capitalismo que querem denunciar e os males que deviam ser evitados na origem. Na verdade, as matérias foto-fílmicas adquirem a sua força primordial sobretudo quando a revelação escancarada do que está por detrás delas não evita olhar de frente o espectro da morte. No fundo, o desassossego que perpassa das mesmas encontra na sua fase derradeira de apresentação uma escapatória feita de catarse onde a irmã de Nan Goldin volta para se afirmar como aquela que abriu o caminho  e que, pelo menos, ajudou a encontrar um chão vital e comum entre aqueles que nos dias que correm participam nas mais diversas jornadas revolucionárias a favor de uma vida melhor, em que a justiça não seja um mero conceito decorativo para pendurar nas paredes do vasto edifício da democracia.




Toda a Beleza e a Carnificina, em análise
Toda a Beleza e a Carnificina Poster

Movie title: All the Beauty and the Bloodshed

Date published: 31 de March de 2023

Director(s): Laura Poitras

Actor(s): Nan Goldin, Marina Berio, David Armstrong

Genre: Documentário, 2022, 122min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que se disse e ainda a recordação de que foi um dos candidatos ao Óscar de Melhor Documentário. E se a cerimónia que atribuiu os dourados cabeçudos não fosse este ano influenciada por uma caldeirada de critérios que deixou muito a desejar, quem sabe, seria este o documentário que deveria constar na sua categoria como o digno e justo vencedor.

CONTRA: Nada.

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