LEFFEST ’22 | Toda a Beleza e a Carnificina, em análise
Na História do Festival de Veneza, só dois documentários alguma vez ganharam o Leão de Ouro. O primeiro foi “Sacro GRA” em 2013, enquanto o segundo foi “Toda a Beleza e a Carnificina” neste mesmo ano. O filme de Laura Poitras sobre a fotógrafa Nan Goldin afigura-se como uma das grandes obras de 2022, mesclando o pessoal e o político, a arte e o ativismo. O título serviu como Filme de Encerramento para o 16º Lisbon & Sintra Film Festival e, ainda em novembro, vai também servir para encerrar a programação do Porto/Post/Doc.
Há oito anos, em 2014, Nan Goldin presidiu o júri do LEFFEST. Durante essa edição do festival, a artista norte-americana foi audiência ativa e participou em vários Q&A com os cineastas a concurso. Há quem se lembre da sua conversa com os irmãos Safdie, o modo como Goldin repudiou noções românticas projetadas sobre a toxicodependência. Se a dupla de cineastas falava da estranha liberdade do vício e sua subcultura, a fotógrafa argumentava contra essas ideias, vendo a maladia como algo que não deve ser idealizado. Notou-se, na altura, que era um assunto que muita paixão inspirava em Goldin cujas fotos tudo fazem para mostrar as realidades, tão belas como hediondas, desses mundos marginalizados.
Por volta da mesma altura, Goldin terá cruzado caminhos com Laura Poitras que por Lisboa apresentava “Citizenfour” antes de este lhe valer o Óscar. Desse primeiro encontro surgiu a colaboração artística culminada em “Toda a Beleza e a Carnificina.” Faz todo o sentido para a obra ter antestreia portuguesa no festival de Paulo Branco, estando o evento tão marcado nas origens do projeto. Poder-se-ia dizer que foi o berço do filme, o cenário da sua génese e que o LEFFEST está gravado no ADN cinematográfico da obra. Melhor ainda, este novo documentário supera o título Oscarizado no passado, elevando-se até ao topo da filmografia de Laura Poitras.
Indo além da História e das origens do projeto, deparamo-nos com um trabalho multifacetado onde duas artistas entrelaçam sua arte, produzindo uma espécie de diaporama fotográfico extravasado pelos preceitos da biografia, do cinema político. Em termos práticos, a obra divide-se em dois movimentos que oscilam entre si e por aí evitam a cronologia tradicional. Por um lado, temos uma pesquisa sobre a vida de Nan Goldin desde a conturbada juventude com uma família disfuncional até à sua fama e lutas com a dependência. Por outro lado, o filme examina a luta presente da fotógrafa contra a Família Sackler.
Juntamente com a série “Dopesick,” este documentário representa um ponto de viragem dos media contra esse clã bilionário. Não que “Toda a Beleza e a Carnificina” explore a fundo o seu papel na crise dos opioides ou todas as vicissitudes criminosas no comércio e promoção de oxicodona. Contudo, Poitras mostra suficiente para nos dar contexto e, além do mais, o que mais interessa para os efeitos do filme é o modo como a família usa o mundo da arte para lavar o sangue da fortuna. Graças a doações a inúmeros museus por todo o mundo, alas e galerias batizadas em seu nome, os Sackler têm conseguido manter uma influência cultural que ofusca a malvadez das suas ações.
Como vítima da sua ganância e artista presente na coleção permanente de muitas dessas instituições, Goldin tem vindo a tornar-se figura central no ativismo contra a família dona da Purdue Pharma. Primeiro, foi uma questão de levar os museus a rejeitar doações, mas depois o movimento estendeu-se até ao apagar do nome Sackler, rasurando-o do mundo artístico para lhes tirar legitimidade. Foi uma luta que começou com um artigo investigativo e explodiu em fenómeno global, cheio de manifestações e atos de protesto dentro de ícones como o Guggenheim em Nova Iorque ou o Victoria & Albert em Londres. A ação vai desde a distribuição de panfletos até à réplica dos mecanismos outrora usados pelo movimento Act Up.
Na mesma instância que Poitras explora o passado através do arquivo fotográfico e alguns vídeos pontuais, ela grava o presente com uma câmara atenta tanto ao espetáculo do ativismo como seu planeamento por-detrás-das-cenas. A voz de Goldin é constante, ora em jeito de entrevista ou introspeção diarística, dando forma à rima de tempos distintos que definem esta estrutura documental. Ao início, as escolhas de montagem podem parecer forçadas ou até aleatórias. A repetição de imagens é especialmente frustrante até que a funcionalidade desse engenho é revelada pelos ecos de emoção que ressoam pelo filme.
Essencialmente, Poitras esculpiu o documentário à semelhança de Goldin enquanto artista, usando os seus célebres slideshows em eterna construção como principal ponto de inspiração. Também o candor da ativista se preserva, sua dor e perda, a melancolia transversal a toda uma vida onde o dia de hoje não é um epílogo que possa ser simplesmente agrafado ao fim da cinebiografia. Esta abordagem ganha especial poder quando duas pandemias coincidem na tela – a SIDA nos anos 80 e a presente questão da toxicodependência derivada dos opioides indevidamente receitados. Gradualmente, vamos entendendo o filme como um hino às pessoas que Goldin conheceu, às irmãs perdidas, aos amigos amados e todas as inspirações que lhe definem a existência e um trabalho onde o privado é feito público. O esquecimento é assim aniquilado pelo cinema e a lembrança celebrada, essa memória ativa e ativista pronta a inspirar as lutas do amanhã.
Toda a Beleza e a Carnificina, em análise
Movie title: All the Beauty and the Bloodshed
Date published: 23 de November de 2022
Director(s): Laura Poitras
Genre: Documentário, 2022, 113 min
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Cláudio Alves - 95
CONCLUSÃO:
Emocionante a resvalar na devastação, “Toda a Beleza e a Carnificina” é um dos grandes documentários do ano. Verdade seja dita, esta obra-prima de Laura Poitras é um dos grandes filmes de 2022, independentemente de quaisquer considerações de género ou separações entre facto e ficção. Enquanto homenagem a Nan Goldin e exemplo de ativismo em forma de cinema, estamos perante um triunfo total. Preparem-se para ser inflamados de raiva, mas também para derramar uma boa quantidade de lágrimas. Fúria e tragédia, força e esplendor estão sempre de mãos dadas nesta plenitude cinematográfica.
O MELHOR: A franqueza chocante de Goldin, a beleza das suas fotografias, a astúcia estrutural de Poitras enquanto reflexo artístico e argumentação política.
O PIOR: Nada a apontar.
CA