DocLisboa ’19 | Serpentário, em análise
“Serpentário”, a primeira longa-metragem do realizador Carlos Conceição, passou pela Berlinale e agora chega ao DocLisboa, na secção Riscos.
Nos últimos anos, Carlos Conceição tem vindo a destacar-se como um dos grandes cineastas portugueses no panorama da curta-metragem. Filmes como “Boa Noite Cinderela” e “Coelho Mau” puseram-no no mapa com loucuras meio eróticas meio surreais. Agora, Conceição deu o salto para as longas-metragens, mas não abandonou os laivos de experimentação que têm vindo a marcar o seu restante trabalho. “Serpentário”, que teve estreia mundial no Festival de Berlim, já foi filmado há alguns anos, sendo que o realizador o andou a apurar desde então. Algo compreensível quando consideramos quão pessoal este exercício fílmico consegue ser.
Essa mesma dimensão íntima é o que justifica a presença do filme no DocLisboa. “Serpentário” não é um documentário vulgar, mas sim um devaneio onírico pela memória e psique do seu autor, um objeto de autobiografia declarada. Ou melhor, é um objeto de autorreflexão pública. Nesse sentido, segue uma longa tradição de cinema português em que a barreira entre ficção e o documental se esbate e na sua interseção surge uma expressão cinematográfica com um pé na abstração e o outro na poesia. Binários restritivos de género fílmico não fazem sentido quando falamos de obras como “Serpentário”.
Tudo começa com desertos laranja e planos aéreos da paisagem arenosa. O vazio e o contraste cromático fazem da terra e do céu pinceladas numa tela sem representação figurativa. A indefinição faz nascer o mistério e daí floresce uma experiência audiovisual que fascina e hipnotiza. É nesse mesmo deserto vazio que nos deparamos com a âncora humana do projeto. Ele é interpretado por João Arrais e, num universo futuro, procura um papagaio com mais de cem anos.
Pela narração em voz-off e títulos escritos no ecrã, sabemos que o realizador nasceu em África. De facto, a sua família lá viveu desde 1905, tendo sido desamparada com o advento da guerra colonial. Tais fraturas de identidade nacional e todo um legado de conquista e colonialismo levaram a um grupo de pessoas que não eram nem portuguesas nem africanas. Carlos Conceição ainda viverá nesse limbo, flutuando entre nacionalidades e culturas que não lhe pertencem.
“Serpentário” é o 13º signo do zodíaco de que ninguém se lembra, é uma constelação esquecida e indefinida na imaginação coletiva. Conceição é como esses astros, indefinido em questões de identidade patriótica. As achas da fogueira são ainda mais atiçadas pelos cismas familiares provocados por esta odisseia entre Europa e o continente africano. Acontece que a mãe voltou para África enquanto o jovem filho ficou no Velho Continente. A matriarca preferiu cuidar de um papagaio com mais de um século de vida e agora o órfão procura a ave que lhe preserva a voz da progenitora.
Tais loucuras são tão absurdas como comoventes, presas à realidade e simultaneamente aliadas à ilusão e à conjetura. “Serpentário” assim se desenrola como a viagem do jovem que procura o papagaio. Tudo se passa num futuro incerto, quando a curiosidade colonialista da Humanidade a leva para o espaço. Aí se busca uma nova casa, visto que o planeta Terra já se encontra esgotado de recursos. Tudo isto nos diz a narração, mas mais forte ainda que tais exposições verbais são as imagens de edifícios abandonados e urbanizações perdidas no meio de desertos disformes. Esta visão não é África, mas sim um sonho de uma terra que só existe na memória nostálgica de alguém que colheu a fruta da opressão de outrem.
Pelo caminho, Conceição segue o seu protagonista perdido entre geografia e entre História. Há passagens pelos espectros dos descobrimentos, quando portugueses passavam pelo seu continente vizinho e com força bruta e cruzes de pedra expandiam o seu inglório império. Há episódios com tribos indígenas locais, onde existe um calor humano e sentido comunitário completamente ausentes da restante história. Há ainda uma desventura pelo western americano e pelo épico espacial. “Serpentário” está cheio de ideias e visões estrambólicas. Elas nem sempre coerem, mas a sua coleção impõe respeito e demanda admiração.
Essa audácia é traída pela qualidade anódina da narração e seus laivos filosóficos. Conceição é um cineasta que se expressa melhor por imagens do que por palavras e é quando ele se desapega do texto que “Serpentário” atinge seus mais elevados píncaros. Os últimos vinte minutos são quase desprovidos de palavra e é aí que o sonho de África atinge seu apogeu, quando a inação hipnotiza o espectador e o leva até à barreira entre o sono e a lucidez. Quando a confrontação inter espécies assinala o fim do sonho, o espectador já se terá perdido na fantasia, na melancolia e na magia de “Serpentário”.
Serpentário, em análise
Movie title: Serpentário
Date published: 26 de October de 2019
Director(s): Carlos Conceição
Actor(s): João Arrais, Isabel Abreu, Carlos Conceição,
Genre: Documentário, 2019, 118 min
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Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
“Serpentário” é uma promissora estreia de Carlos Conceição no mundo das longas-metragens. O filme nem sempre resulta numa experiência coerente, mas as suas qualidades hipnotizantes e autobiográficas sugerem uma preciosa joia de cinema português. Algumas das ideias levantadas pelo exercício são demasiado complicadas para a sua abordagem onírica, no entanto, e o uso de narração evidencia os limites do projeto. Comentários pós-colonialistas são particularmente difíceis de integrar num filme tão perdido na melancolia de um filho abandonado.
O MELHOR: A fotografia deste sonho africano, deste devaneio colonialista que mostra mágoas do privilégio e pensa num futuro fatalista.
O PIOR: A narração desnecessária. “Serpentário” ocasionalmente esbarra em lugares comuns e sugere temáticas de reflexão colonialista que é incapaz de explorar com adequada sensibilidade ou intelecto. Cortar a narração seria uma boa maneira de esconder essas limitações do projeto e privilegiar a qualidade estética.
CA
User Review
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Um filme ímpar na já singela cinematografia portuguesa, muito merecedor do prémio embora, pelo que percebi, o realizador seja tudo menos uma “revelação”. Vi no doc e levei amigos a ver na reposição dos vencedores no Ideal. Estou a escrever pois acho importante mencionar que achei o ponto mais forte aquilo que na tua crítica dizes ser o pior. O trabalho de texto é sublime. Não apenas pelo conteúdo mas pelas portas e travessas que usa para chegar às verdades evitando os lugares comuns. Além disso, dentro da sua proposta de homenagem a estilos cinematográficos distintos, o texto (e, depois, a sua ausência) parece acompanhar os géneros, do comentário histórico frio à mais destroçada rendição à melancolia, A descrição do sonho é o momento mais nu e vulnerável desta caminhada: a camara fechada no rosto ainda infantil do protagonista, mas a voz destroçada e exposta, a desgraça assumida, e o tema de Vangelis a tocar ao mesmo tempo não esconde a intenção deliberadamente melodramática e aquilo que a cena propõe. Um dos pontos altos do filme. E kudos para João Arrais e para a forma incrível como se mantém a única presença em cena durante 85 minutos sem nunca “desafinar”. Palmas! Merecidíssimo.
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