"Dor e Glória" | © Pris Audiovisuais

Dor e Glória, em análise

Antonio Banderas interpreta uma versão ficcionada de Pedro Almodóvar no mais recente filme do realizador espanhol, “Dor e Glória”. Quando passou no Festival de Cannes, a obra ganhou o Prémio para Melhor Interpretação Masculina.

Muitos são os realizadores que, em tempos de crise criativa, viraram a câmara para si mesmos. Fellini fê-lo com “8 ½”, fosse com “All That Jazz,” Allen com as suas “Recordações”. Outros tantos foram aqueles que minaram a sua autobiografia, seus anos formativos e glória profissional, para conceber novos filmes. Metade da filmografia de Bergman segue esta lógica e Alfonso Cuarón ainda o ano passado ganhou dois Óscares por “Roma”. Todo o cinema de Pedro Almodóvar tem algo de pessoal, mas o cineasta nunca concebeu um trabalho tão abertamente autorreflexivo como “Dor e Glória”, uma meditação sobre perda e sobre idade, sobre oportunidades perdidas e momentos que só em retrospetiva podem ser entendidos e, quiçá, apreciados na sua plenitude.

Só valorizamos a flor da juventude quando já murchou. Só entendemos a força do nosso corpo quando este se torna uma prisão, uma máquina que produz dor em quantia desproporcional ao prazer que também pode dar. Um desmaio é, no momento, a consequência espectável de uma insolação. Meio século depois, o mesmo evento revela-se como algo menos corriqueiro, mais precioso, o acordar do primeiro desejo que arrebata e excita, mas também assusta. Tal como “Era uma vez… em Hollywood” de Tarantino, este “Dor e Glória” de Pedro Almodóvar é um filme outonal. Por outras palavras, é a obra de um velho, de alguém que já viveu mais anos do que aqueles que ainda tem para viver. Trata-se de uma elegia e de um olhar melancólico para trás cuja execução sugere a mão segura de um mestre consumado ao invés da experimentação caótica de um prodígio em início de carreira.

dor e gloria critica
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O Almodóvar de “Pepi, Luci, Bom” e “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” já está longe e não é mais que um espectro a assombrar o realizador dos dias de hoje. Apesar de muitos críticos verem “Dor e Glória” como um regresso do cineasta à ribalta depois do suposto desapontamento de “Julieta”, este novo filme é tonal e esteticamente muito mais próximo dessa adaptação literária do que dos devaneios dos anos 80. O humor chocante é agora um sorriso sardónico e comedido, o melodrama é melancolia sussurrada e a câmara acalmou. Só as cores se mantêm tão ou mais bombásticas que outrora, como que um vinho que envelhece e vai ganhando potência com o passar dos anos. O vermelho famoso de Almodóvar agora é acompanhado por doses iguais de azul, essa cor tão associada à tristeza e que aqui ajuda a pintar a vida do protagonista nas mesmas cores que o Cine Doré, a filmoteca madrilena.

Esse protagonista é Pedro, mas não é. O seu nome é Salvador Mallo do mesmo modo que a personagem principal de “8 ½” se chama Guido e não Federico. Ele é um realizador que vive sozinho em Madrid, atormentado por dores crónicas e calcificações nas vértebras que o impedem de engolir. Há já alguns anos que Salvador não trabalha, mas os seus filmes mais antigos estão a ser restaurados e reapresentados ao público como clássicos. “Dor e Glória” é um filme desprovido de enredo, mas o seu parco encadeamento de momentos da vida é proporcionado por uma destas mesmas restaurações. “Sabor”, um filme com 32 anos, vai passar na Filmoteca e os programadores convidaram Salvador e o ator principal a participar num Q&A. O único problema é que o realizador não fala com Alberto, o ator, desde a estreia do filme.

Os dois antigos colaboradores lá remendam amizades partidas, com muita heroína pelo meio a ajudar à reconciliação. Essa droga, mais uma na coleção de substâncias legais e ilegais que Salvador toma diariamente, ajuda-o a perder-se em memórias do passado. Num momento de inconsciência e sonhos nostálgicos do cineasta, Alberto descobre um monólogo confessional no computador de Salvador e decide levá-lo a cena. Se a sessão de Q&A é um dos momentos mais divertidos deste filme soturno, o monólogo intitulado “La Adicción” é um dos mais comoventes. Tal como Pedro fala de si através de Banderas, também Salvador conta a sua história através de Alberto. É uma história de cinemas provinciais que cheiram a urina e paixões de juventude que acabaram mal. Um dia, o protagonista desse romance malfadado acaba, por acaso, na audiência.

Tal como algo saído de um filme de Linklater, “Dor e Glória” pausa para contemplar o reencontro dos dois amantes, um deles com filhos já crescidos. Não há lágrimas e não há histeria, só a elegia de algo que nunca se poderá recuperar. Só há um corpo vestido de vermelho e outro de azul a se abraçarem pela última vez, a sentirem o júbilo de um reencontro que nunca pensaram ter e a tristeza de estarem a viver outra despedida. O ator, o amante, e depois a mãe. A seguir a este interlúdio noturno o outro grande pas de deux dialogal do filme é uma memória recente, entre Salvador e a mãe que tem servido de inspiração a todas as mulheres das suas histórias. No passado distante, ela é Penélope Cruz, eterna figura maternal no cinema de Almodóvar, e, nos seus últimos dias de vida, é Julieta Serrano.

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Há um contraste enorme entre a memória idealizada da infância e a acidez de palavras que ainda ecoam nos ouvidos, uma reconforta e outra fere. A própria montagem do filme parece ficar desorientada com as palavras da mãe que acusa Salvador de ter sido mau filho. Vários dias são unidos por uma conversa contínua e é como se essas mesmas recordações recentes já se começassem a esbater. O passado com Cruz está tão distante que pode ser tornado narrativa no cinema da recordação, mas as cenas com Serrano ainda não sofreram os efeitos dessa curadoria mental. É mais fácil ponderar sobre as cicatrizes de feridas passadas do que confrontar as feridas abertas que ainda sangram. É mais fácil viver na memória que no agora, no cinema que na realidade. A verdade é que Salvador pode ser viciado em heroína, mas também é cinemodependente. Pedro Almodóvar talvez também o seja.

“Dor e Glória” é um autorretrato, mas convém mencionar que o próprio realizador tem vindo a lembrar que não é estritamente biográfico. Apesar de o apartamento de Salvador ser uma cópia da casa de Almodóvar, o que lá se passa é somente uma visão da realidade vista através do prisma da ficção. O realizador pode abrir o peito e deixar que vejamos o seu coração, mas não nos deixa tocar, mantém-nos sempre à distância. Ele tem também dito que “Dor e Glória” forma uma trilogia informal com “A Lei do Desejo” e “Má Educação”, outros filmes sobre cineastas, mas talvez seja mais correto comparar esta obra com “A Flor do Meu Segredo”. Também aí, através de uma escritora deprimida, Almodóvar falou de uma crise criativa e pessoal. A grande diferença é que “Flor” termina com a esperança que tudo possa mudar para melhor, com a esperança da salvação. “Dor e Glória” já se deixou de tais sonhos imaturos e simplesmente acaba com o fim da crise criativa, deixando a crise pessoal sem conclusão. Os créditos começam, mas Salvador continua perdido, sem rumo, em luto pelo que perdeu e em busca de uma felicidade cuja forma nem ele mesmo conhece.

Dor e Glória, em análise
Dor e Glória

Movie title: Dolor y gloria

Date published: 5 de September de 2019

Director(s): Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Penélope Cruz, Julieta Serrano, Asier Flores, César Vicente, Nora Navas, Cecilia Roth, Susi Sánchez, Raúl Arévalo

Actor(s): Samara Weaving, Mark O'Brien, Adam Brody, Andie MacDowell, Henry Czerny, Melanie Scrofano, Kristian Bruun, Nicky Guadagni, Elyse Levesque

Genre: Drama, 2019, 113 min

  • Cláudio Alves - 85
  • Virgílio Jesus - 100
  • José Vieira Mendes - 80
88

CONCLUSÃO:

“Dor e Glória” mostra-nos Pedro Almodóvar a meditar sobre a perda, a idade e sobre a sua vida enquanto cineasta, enquanto filho e enquanto amante. No papel principal, Antonio Banderas é notável, mas a música de Alberto Iglesias e as cenografias ricas em azul e vermelho são as verdadeiras estrelas de um filme notoriamente comedido para este realizador.

O MELHOR: As cenas numa caverna tornada casa na Valência de há cinquenta anos são as passagens mais belas do filme.

O PIOR: A falta de melodrama tragicómico poderá agradar a muitos daqueles que se dizem fãs de Almodóvar, mas sempre tiveram algum desprezo pelos seus excessos. Afinal, tirando a nível cromático e musical, “Dor e Glória” tem pouco de extravagante. Contudo, há algo meio deprimente nesta contenção quando a comparamos às glórias de outros dias. Até “Julieta” é mais leve e vivaço que esta elegia lacrimosa.

CA

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