Dolor y Gloria © Sony Pictures Classics

72º Festival de Cannes | ‘Dolor y Gloria’: Alma de Artista

O último filme de Pedro Almodovar, ‘Dolor y Glória’, não tarda em estrear em Portugal, evoca a nostalgia de um realizador com as dores da criação. Mas também é sobre os seus primeiros amores, os amores seguintes, o seu relacionamento com uma mãe e o envelhecimento. Um regresso com os atores que tanto ama: Antonio Banderas e Penélope Cruz.

Desde o remoto ‘Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo(1980) que cada ‘novo filme’ Pedro Almodóvar tornou-se uma espécie de grande acontecimento para o mundo cinéfilo; e também para o grande público já que Almodóvar é talvez o único realizador espanhol conhecido à escala mundial, como qualquer estrela da fama ou jogador de futebol. Mas desta vez, ‘Dolor y Gloria’, este regresso do cineasta à competição de Cannes não é apenas um ‘novo Almodóvar’, já que para além de ser um dos seus melhores filmes da última década, envolve aquilo que fez de mais pessoal nos últimos anos, parecendo assim fechar um circulo intimista sobre o mesmo tema — ele próprio —, iniciada em 1986 com ‘A Lei do Desejo’, e ‘A Má Educação’ em 2004.

Dolor y Gloria
Penélope Cruz é Jacinta, a mãe de Salvador, um realizador em crise.
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‘Dolor y Glória’, é entre muitos que representam os ‘fantasmas almodovarianos’, um filme sobre a doença, morte, solidão, vazio existencial e a incapacidade mesmo de continuar o seu trabalho de realizador. E para isso até juntou como protagonista Antonio Banderas, um dos seus actores mais queridos, que depois de um ‘susto de saúde’, parece estar também a padecer de uma crise de idade. Mas nada de tragédia e como ambos disseram na conferência de imprensa tudo o que acontece em ‘Dolor y Gloria’, que até por vezes tem muita graça, ironia e sobretudo os exageros de Almodóvar, não é para ser tomado exactamente à letra.

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Julieta Serrano — de ‘Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos’, é a mãe do realizador já idosa.

Salvador Mallo (Antonio Banderas) é um cineasta de meia-idade dominado por muitos demónios existenciais. É interpretado por Antonio Banderas num exímio formato de um alter ego de Pedro Almodovar, até nas expressões, cabelo e tiques. O ator reproduz mesmo os gestos e o ritmo do cineasta, a mesma cor de cabelo, o mesmo penteado e, óculos escuros idênticos. E depois uma casa e um vestuário simples e colorido, semelhantes aos de Almodóvar. Salvador sofre de ansiedades obsessivas, hipocondria e males, que vão alimentando a sua inactividade. E depois, há os seus amigos mais íntimos, os antigos amantes, os fantasmas do passado em que é mesmo possível encontrar alguns vestígios biográficos de Almodovar.

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O monólogo ‘La Adiccion’ interpretado por Asier Etxeandia é um dos grandes momentos.

Através das memórias de Salvador Mallo revistamos a sua infância feliz, apesar de suas privações e dificuldades sociais. Curiosamente são os flashbacks deste período que parecem os mais autênticos: o seu primeiro desejo (que se vai tornar leitmotiv do filme), a mitificação do olhar da sua mãe, Jacinta, interpretado pelo maravilhosamente primeiro por Penélope Cruz — que se sacrifica pela ascensão do filho —  e depois pela veterana Julieta Serrano — lembram-se quando em ‘Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos’, ela ameaça Carmen Maura com uma pistola em cada mão —, que foi certamente uma escolha muito, mas muito intencional, que remete para um passado saudoso da carreira do realizador.

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As roupas à casa são iguais à estética de Almodóvar.

Há um diálogo sobre o fim da vida, entre Salvador e a sua velha mãe, — que com o passar dos anos se tornou um ícone do seu amado filho, mas cujas palavras não ditas marcaram a vida de ambos — que é sem dúvida um dos momentos mais poderosos do filme: Jacinta quase acusa Salvador de não ter sido um bom filho. Há outra cena fundamental que é o monólogo intitulado ‘La Addiccion’ interpretado pelo ator Asier Etxeandia na pele de outro ator — o do seu próprio papel de Alberto Crespo —, que é de cortar o coração. A peça de teatro em monólogo para uma pequena plateia, conta a velha história de amor entre Salvador e Federico (Leonardo Sbaraglia), a assistir ao vivo, falando de um tempo fértil e feliz, e depois da ruptura provocada pelas excesso de consumo de drogas, durante a movida madrilena dos anos 80. O texto reflecte também em grande parte a alma do seu autor, um homem assustado e enfraquecido no seu corpo e na sua arte. Todas essas imagens parecem cruzar-se e entrelaçar-se, não apenas no filme, mas também supostamente na vida real de Almodóvar, numa espécie de revelação que acaba também por dar muita intensidade à relação entre o realizador e os seus atores.

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Antonio Banderas num exímio formato de um alter ego de  Almodóvar.

‘Dolor y Gloria’ é uma mistura inteligente de humor, delicadeza e silêncios de repente abalados pela surpresa e pelo inesperado. É ao mesmo tempo um filme comovente e hilariante, em que os espectadores são obrigados a rir, antes de experimentar a terrível ausência ou perda, como é comum em vários filmes de Almodóvar.  ‘Dolor y Gloria’  é igualmente uma catarse artística e emocional e um jogo de representações tão precisas quanto imprecisas. É de facto a prova de que o cinema, apesar de tudo ainda pode ser o que gostaríamos que fosse: um sonho acordado ou os nossos sonhos e memórias transformados em cinema, correndo mesmo o risco da fazer auto-ficção. Com o andamento das coisas, agora que entramos na segunda metade da competição pode ser que desta vez Pedro Almodóvar regresse a casa com a Palma de Ouro 2019, que para já é inteiramente merecida face à concorrência. Garantido pode estar também um Prémio de Interpretação para Antonio Banderas. Seria lindo, e eu estou aqui a torcer!

José Vieira Mendes

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