A Herdade (Foto de José Vieira Mendes)

76º Festival de Veneza | A Herdade, Uma Tragédia Portuguesa

’A Herdade’ de Tiago Guedes, a história da família portuguesa desde os anos 40 até ao início dos anos 90, estreou na competição e foi bem recebido pela crítica. Estreia a 19 de Setembro nas salas nacionais. A curta ‘Cães Que Ladram aos Pássaros’, de Leonor Teles também estreou num bloco da Orizzonti.

Apesar de parecer uma encomenda A Herdade, que estreou hoje na competição de Veneza 76, faz todo sentido e dá continuidade na obra do realizador português Tiago Guedes. Em 2006 Guedes realizou com o seu parceiro Frederico Serra, o filme ‘Coisa Ruim’, talvez a primeira longa-metragem de terror do cinema português sobre a posse demoníaca da terra, e que conta a história de um botânico que herda a mansão da família na cidade de Seia, na Serra da Estrela. Na altura, Guedes estava ligado à publicidade, televisão e à realização de curtas-metragens, que estrearam em vários festivais do género. Após essa estreia nas longas-metragem, Guedes – ainda em parceria com Serra – assinaram ‘Entre os Dedos’ (2008), um filme que abordava questões políticas e sociais: a luta de um trabalhador e a sua revolta contra as condições de trabalho, após um acidente que atingiu um dos seus amigos. Com ‘Noite Sangrenta’, uma minissérie de televisão para a RTP, exibida em 2010 e que evocava o Regicídio ou a Queda da Monarquia Portuguesa, novamente a dupla Guedes e Serra narram um momento trágico da primeira república do nosso país: o massacre na noite de 19 de outubro de 1921, lembrada precisamente em vários escritos históricos como a ‘noite sangrenta’.

A Herdade
Albano Jerónimo é João Fernandes o ‘herdeiro’ e proprietário das vastas terras a sul do Tejo. | © Leopardo Filmes

‘A Herdade’, é basicamente a primeira longa-metragem assinada por Tiago Guedes sozinho, mas o realizador recupera de certo modo, um tom de tragédia portuguesa, e os principais temas dos seus filmes anteriores: a posse de grandes extensões de terras, conflitos e segredos de família, confrontos sociais e uma análise da história recente de Portugal (de 1946 a 1991); isto para contar a história de uma família dona de uma das maiores propriedades do país, que remete para a grande Herdade da Barroca D’Alva, pertencente a um dos membros da Família Lupi — José Samuel —, localizada no concelho de Alcochete. E que na verdade o produtor Paulo Branco por razões familiares — e o seu gosto pela criação de cavalos lusitanos — tem muitas afinidades. Isso explica muita coisa além do desafio de Branco ao escritor-argumentista Rui Cardoso Martins, — e da qual Guedes, que pareceu depois, se apropriou no melhor dos sentidos com a ajuda de Gilles Taurand — para escrever esta história da Europa, na margem sul do rio Tejo, da curiosa linhagem e dos segredos de uma família da grande burguesia rural, que de uma forma algo controversa resiste e atravessa momentos de grandes mudanças da vida política, económica, social e mentalidades dos finais do anos 40, até ao início dos anos 90 e, com o 25 de Abril pelo meio.

TRAILER DE ‘A HERDADE’

O resultado é uma ‘tragédia portuguesa’, diria com muitas referências à literatura e ao cinema português — que vão de ‘O Delfim’, de José Cardoso Pires (que originou o belo filme de Fernando Lopes) a ‘Os Maias’, de Eça de Queiroz, que já deu várias obras cinematográficas. Ou mesmo uma leve inspiração no clássico ‘Francisca’, de Manoel de Oliveira — há um plano sequência de uma festa, que faz lembrar o filme também produzido por Paulo Branco. Só que desta vez em ‘A Herdade’, a história é centrada na figura do auto-centrado proprietário João Fernandes (Albano Jerónimo numa marcante e poderosa interpretação), machista e fechado em si próprio, que para além da sua controversa gestão da propriedade e do pessoal que nela trabalha, guarda uma espécie de segredo de família que todos sabem, inclusive a mulher (brilhante a presença de Sandra Faleiro, cheia de nuances e subtilezas) que ninguém tem coragem de revelar. A morte aparentemente acidental do seu capataz Joaquim (Miguel Borges), vai despoletar tudo: frustrações, raivas contidas, sentimentos cruzados, e sem apelo vamos assistir à desagregação familiar, fruto sobretudo de um tempo que naturalmente, obrigou a grandes mudanças nas relações de trabalho, das ideias dos jovens e do papel das mulheres na sociedade.

A Herdade
O realizador de ‘A Herdade’,  Tiago Guedes com os actores Sandra Faleiro e Albano Jerónimo. (Foto de José Vieira Mendes)

‘A Herdade’, sem ser uma obra-prima é filme bem construído — a fotografia da paisagem, lezíria e arrozais entre o Ribatejo e o Alentejo é lindíssima —, que procura alcançar a emoção do grande público e que luta aqui na competição de Veneza 76, por mais um prémio para o cinema português, até porque foi apesar de tudo bem recebido pela crítica internacional: a sala estava cheia e não existiram abandonos como tem sido habitual em outros filmes. Quanto a prémios, é difícil! ’A Herdade’ segue agora para o Festival de Toronto e estreia na salas portuguesas a 19 de Setembro.

Cães Que Ladram aos Pássaros
Vicente Gil é o protagonista desta história de fim das aulas e inicio da férias de verão no Porto. | © Uma Pedra no Sapato

A curta ‘Cães Que Ladram aos Pássaros’, também estreou hoje num bloco na secção Orizzonti e novamente cheira a um prémio para Leonor Teles, embora nas sessões de curtas seja sempre difícil avaliar a recepção, de uma audiência quase toda constituída por mais programadores do que gente da crítica. O filme foi inteiramente rodado no Porto, pois foi comissariado pelo Município da cidade no âmbito do projecto Cultura em Expansão. O projecto decorre bem longe de Lisboa ou Vila Franca de Xira, os territórios habituais da realizadora: o filme toma uma cidade que não é a minha, um lugar que me é desconhecido e não me pertence. No entanto, não deixou de ser, por isso, menos pessoal que os filmes anteriores, comentou Leonor Teles a propósito deste ‘Cães Que Ladram aos Pássaros’, que tem um título muito curioso que remete efectivamente para o cachorro do protagonista.

Cães Que Ladram aos Pássaros
Vicente Gil diverte-se com os amigos nas ruas agora cheias de turistas do velho centro do Porto. | © Uma Pedra no Sapato

Este filme acompanha o fim das aulas e o início das férias de verão de Vicente (Vicente Gil) e da família Gil de classe média, mas em crise, passadas na cidade e nas margens do Douro, por causa das dificuldades financeira de uma mãe desempregada que cria quatro filhos adolescentes (Salvador, Mariana, Maria e António) sozinha. Obrigados a sair da sua casa no centro do Porto, por força da especulação imobiliária, a família unida procura encontrar uma solução tão mais económica quanto possível para sobreviver, num ritmo e numa ligação de enorme intimidade com a câmara, tanto ao nível das situações como dos diálogo entre eles: a ligação que criei com a família que filmei mantém-se e parece ser essa a constante no meu trabalho ou seja manter com as pessoas a minha relação para além dos filmes, afirmava a realizadora, que estando de fora parece fazer parte da família como em ‘Terra Franca’, o seu filme anterior. As aulas terminaram e em  ‘Cães Que Ladram aos Pássaros’ vamos sentir uma azáfama no ar da cidade: os turistas que enchem as ruas e os cafés do Porto. O velho e decadente centro do Porto é vendido como ponto alto da gentrificação. Vicente, ele próprio, um puto do Porto, pedala pela cidade montado na sua Órbita azul e observa a transformação urbana a cada dia que passa e cai, olhando com o seu cão, os pássaros que voam junto à margem e quase debaixo da Ponte da Arrábida. O Porto já não é o mesmo e o jovem e bonito Vicente, também não. Entre família e amigos, Vicente vive com expectativa os primeiros dias de férias, que trazem a promessa de mudança e a incerteza de uma vida nova. É o que vamos ver nesta bela curta ‘Cães Que Ladram aos Pássaros’, da jovem e talentosa realizadora Leonor Teles.

JVM em Veneza


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