"Edmond" | © Cinemundo

Festa do Cinema Francês ’22 | Edmond, em análise

Edmond” reconta a história de como a peça “Cyrano de Bergerac” foi criada. Evidentemente, trata-se de uma ficcionalização romântica, um devaneio fantasioso de referências literárias e piscares de olho ao espetador atento. Nos prémios César, o filme de Alexis Michalik foi nomeado para os prémios de cenografia e figurinos, sublinhando o fausto da produção. Assim reencontramos esta ficção histórica num novo contexto, depois da estreia nacional, incluído na secção Segunda Chance da Festa do Cinema Francês. Resta saber se “Edmond” merece essa segunda chance.

Em 1999, “A Paixão de Shakespeare” ganhou o Óscar de Melhor Filme numa daquelas decisões infames que para sempre deixarão marca na reputação da Academia. Independentemente do que se possa achar do filme, se mereceu ou não os prémios, temos que concordar em como essa vitória foi o culminar de uma história de sucesso. Mesmo antes das críticas favoráveis se amontoarem e os galardões doirados serem atribuídos, já o filme provava ser uma sensação no circuito comercial. O conto pelo qual a escrita de “Romeu e Julieta” se convertia na história de amor de um Shakespeare imaginado revelou-se fórmula triunfal.

edmond critica festa do cinema frances
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Não nos surpreendemos, portanto, que muitos cineastas tenham vindo a tentar recriar tal sucesso. Os resultados variam em qualidade, mas é difícil argumentar contra a popularidade do engenho ou sua capacidade para gerar bom cinema. Além do mais, não há maneira de negar como assim se permite com que o espetador já apaixonado por uma certa obra-de-arte reviva o momento em que caiu de amores. O filme é veículo para essa experiência, uma máquina de nostalgia cultural e pessoal. É receita para o entretenimento fácil e para a partilha de afetos entre cineasta e audiência, ambos fãs do espetáculo original.

Na mesma medida em que “A Paixão de Shakespeare” repensou “Romeo e Julieta” e revisitou a Londres Isabelina, “Edmond” transporta o espetador para uma versão amorosa de Paris no virar do século e remete para “Cyrano de Bergerac,” grande marco na História do Teatro Francês. O resto dos ingredientes são semelhantes, assim como sua combinação em forma de argumento e forma básica. Edmond Rostand assume-se como nosso protagonista, um dramaturgo jovem cuja vida se desenrola em jeito de reflexo da sua futura obra. Ou seja, ele apaixona-se por uma mulher com olhos para outro homem.

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O amor floresce entre o escritor e sua amada, contudo, sendo que são suas as palavras vindas da boca de outrem que lhe arrebatam o coração. Edmond é um Cyrano renascido, antes mesmo desse aristocrata Barroco ganhar nova vida nos palcos. A peça que une as duas figuras é por isso reimaginada enquanto um gesto autobiográfico. Considerando como “Cyrano de Bergerac,” já por si, é uma deturpação da figura histórica em prol do entretenimento, não há maneira de nos opormos à premissa de “Edmond” sem criticar também a maravilha teatral no centro da trama. Podemos mesmo dizer que esta celebração do anacronismo é prova de fidelidade ao original.

Com a sua atitude anacrónica, seus revisionismos mais escabrosos, “Edmond” alcança a melhor homenagem ao método de Rostand. No filme, o dramaturgo é elevado a herói romântico do grande ecrã tal como Cyrano foi elevado a ícone dos palcos, simetrias improváveis que servem de estrutura sobre a qual os cineastas constroem a comédia romântica. Também a figura de Roxanne é repensada, tornada em musa suprema na mesma medida em que Viola foi inspiração para o Shakespeare falso. Infelizmente, o sucesso do passado não é replicado e o romance prova ser a desgraça do espetáculo.

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Diríamos que o melhor fio narrativo não é ligado a qualquer paixão entre pessoas enamoradas, mas sim ao elo entre o artista e sua arte. Só quando deixa para trás a sua veia mais sentimental é que “Edmond” alcança o máximo potencial das suas ideias, transformando-se numa carta de amor para o teatro, para o coletivo de atores em comunhão sob o proscénio talhado a ouro. Entre elencos inexperientes e brincadeiras dos bastidores, entre crises na noite de estreia e versos mal declamados, o humor germina e a obra ganha uma leveza até então inalcançada. Também as imagens da fita ganham novo fôlego quando se distanciam da trama amorosa, mostrando-nos o artifício do drama falseado, a estilização apalhaçada do século XVII transfigurado pelos preceitos da Belle Époque.

Depois de Lisboa, a Festa do Cinema Francês continua pelo resto do país, até dia 20 de novembro. Podes encontrar mais informação no site oficial da festa. Não percas!

Edmond, em análise
Edmond

Movie title: Edmond

Date published: 7 de November de 2022

Director(s): Alexis Michalik

Actor(s): Thomas Solivérès, Olivier Gourmet, Mathilde Seigner, Tom Leeb, Lucie Boujenah, Alice de Lencquesaing, Clémentine Célarié, Igor Gotesman, Dominique Pinon, Simon Abkarian, Marc Andréoni, Jean-Michel Martial, Alexis Michalik, Benjamin Bellecour

Genre: Comédia, Drama, Romance, 2018, 110 min

  • Cláudio Alves - 50
50

CONCLUSÃO:

Não há nada pior que fincar o dente numa sobremesa de ar delicioso e sentir um sabor amargo, textura vil e consistência pesada. Assim é “Edmond,” uma comédia romântica com ares de “Paixão de Shakespeare” onde a narrativa central é o maior defeito. Nas margens da história, anedotas teatrais avivam os espíritos e, pelo menos, todo o design da fita é primoroso. As duas nomeações para os César foram bem merecidas.

O MELHOR: O modo como se recria a primeira encenação de “Cyrano de Bergerac,” aparato rico em detalhes propositadamente anacrónicos como os figurinos Barrocos desenhados através de linhas oitocentistas.

O PIOR: Uma história de amor mal contada, seus protagonistas apaixonados reduzidos a personagens sem graça que distraem das vertentes mais abertamente humorísticas do filme. Oxalá “Edmond” fosse exclusivamente sobre os afazeres dos bastidores ao invés dos dilemas de dramaturgos distraídos.

CA

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