El Llanto, a Crítica | Um assombro espanhol no IndieLisboa
Pedro Martín-Calero teve a honra de assinar a primeira longa-metragem da secção Boca do Inferno, no 22º IndieLisboa. O seu filme, “El Llanto” ou “The Wailing,” é uma proposta arrojada de terror espanhol que valeu ao realizador a Concha de Prata em San Sebastián.
Em tempo incerto, algures em Madrid, a câmara encontra uma jovem cujo nome o espectador só saberá muito mais tarde na narrativa de “El Llanto.” Entre copos a mais e olhares trocados com um homem atraente, a sequência segue da domesticidade hedonista para um clube noturno onde o piscar das luzes strob induz um estado de euforia nas personagens e naqueles que as observam. Mas o caos audiovisual serve para esconder e para desvendar, tal como o cinema faz nas suas muitas permutações. Neste caso, esconde a realidade do que se está a passar, disfarçando os movimentos frenéticos da jovem como uma dança solitária. Só que não é algo assim tão simples.
O realizador Pedro Martín-Calero continua a sua observação, forçando-nos a entender que a dança não é dança nenhuma. Pelo contrário, trata-se de uma agressão, o corpo feminino sujeito a uma força invisível que ataca, violenta e consome. Do êxtase da folia, o momento torna-se num pesadelo, com a atriz na pantomima de uma luta que acaba com a sua cabeça esmurrada contra o balcão, a queda na vertigem da convulsão. E mesmo assim, ela continua sozinha. Gente rodeia-a na aflição desse horror inexplicável, sem que ninguém lhe toque. Para todos os efeitos, este ataque permanece uma dança enlouquecida aos olhos dos demais.
O cinema revela os nossos pesadelos.
Entre este prólogo e um epílogo choroso, “El Llanto” divide-se em três capítulos e o mesmo número de protagonistas, todas elas afetadas por uma entidade invisível que só se consegue ver quando fitado por uma câmara – quer seja de cinema ou telemóvel. Andrea, interpretada por Ester Expósito, é a primeira atormentada. Estudante universitária na Espanha do século XXI, ela procura saber mais sobre a mãe biológica que a deu para adoção por causa incerta. É durante este processo que, certa noite, o namorado menciona ter visto um vulto masculino no quarto dela, no fundo de um dos seus vídeos. Esse é o primeiro incidente de muitos, cada vez mais tenebrosos, culminando com uma morte.
Dentro do terror contemporâneo, este primeiro capítulo é bastante tradicional, quase classicista na sua abordagem. Muitos já compararam a dinâmica do monstro e suas vítimas àquela de “It Follows,” mas nem Martín-Calero nem a coargumentista Isabel Peña estão interessados na metáfora da doença venérea. Pelo contrário, imaginam a assombração como um mal congénito, passado de mãe para filha num encadeamento trágico que só se esclarece chegado o fim da fita. Dito isso, como acontece com estas maladias na vida comum, a resolução é inconclusiva. Não há modo de parar o inevitável e não há forma de terminar esta história com um ponto final. Fica a reticência.
Como que em presságio do fim, a história de Andrea termina num grito e no ecrã escuro, uma combinação que se repete em várias passagens, qual eco. O som do choro, uma mulher angustiada que não se vê, será outra parte desta assombração. Mas o alucino auditivo sempre se aguenta mais que a manifestação física do mal. Assim descobre a Camila de Malena Villa, uma estudante de cinema que, na Madrid de 1998, sente o machismo de uma sociedade injusta na pele. Todos os dias ela se debate numa sala de aula cheia de homens, a única mulher e alvo de atenção redobrada. Tanto da parte dos colegas como de um professor, insistente em ter um momento privado com a pupila na sua oficina privada.
Ainda mais do que na trama de Andrea, as pressões de género definem o dia-a-dia de Camila e o impacto que o terror invisível tem na sua psique. Neste segundo capítulo, toda a atenção masculina surge como algo desestabilizador, culminando na presença do monstro que aparece através da câmara com que a cineasta observa o mundo. Ele é um homem envelhecido, de traje escuro e cara pálida, enrugada como a de um cadáver ressequido, com olhos cegos que tudo veem e mãos na procura de prazer com corpos que não consentem. Em certa medida, a falta de espetacularidade no seu desenho só o torna mais assustador.
A patriarquia é o monstro supremo.
Além disso, a personagem da estudante de cinema propõe uma reflexão meta-textual que transcende as vicissitudes do terror enquanto espelho do trauma ou da opressão social. Porque, em “El Llanto,” a câmara torna aquilo que está subjacente às nossas ansiedades numa criatura que conseguimos reconhecer. No cinema, o inconsciente torna-se experiência coletiva, e através da arte conseguimos articular as angústias de cada um e do coletivo. Conseguimos fazê-lo de um modo impossível com estratégias mais diretas. De facto, a obra de Pedro Martín-Calero reflete tanto estas características do género que só vacila mesmo quando tenta explicar as fontes do medo em demasia.
Literarizar a maldição e fazer as suas vítimas passadas aparecer em cena drena algum do poder que filme alcança com os mecanismos mais sugestivos dos primeiros capítulos. Por outras palavras, a visão explicita das mulheres brutalizadas era desnecessária. Assim, chegados novamente à história de Marie, a jovem do prelúdio, “El Llanto” perde-se um pouco, sublinhando em demasia as ideias que já se tinham tornado evidentes há muito. Nomeadamente, o conceito da patriarquia como monstro supremo a atormentar gerações de mulheres desde há tempos imemoriais. Aplaudimos esta tese e o ultraje que a sustenta, ao mesmo tempo que a achamos melhor expressa em jeito sublimado, entre jogos de suspense e as particularidades idiomáticas do cinema de terror.
Mesmo assim, até ao fim da fita, a realização de Martín-Calero está de parabéns, tendo merecido a honra ganha em San Sebastián. Também o elenco merece destaque, cada atriz principal puxando por diferentes possibilidades deste sôfrego fado. Expósito realça a fragilidade de uma rapariga enlutada, tão paralisada pelo suplicio sobrenatural como agrilhoada à depressão consumptiva. Villa trabalha um exercício de autoapagamento, como se Camila fosse subserviente ao poder da câmara que carrega consigo. Por fim, Mathilde Ollivier dá asas à imaginação, rendendo-se à fisicalidade de Marie nos seus epítetos de luta e loucura. Sem ela, aquele prelúdio genial nunca funcionaria e “El Llante” perderia a sua maior maravilha.
El Llanto, a Crítica
Movie title: El Llanto
Date published: 2 de May de 2025
Country: Espanha, Argentina
Duration: 107 min.
Director(s): Pedro Martín-Calero
Actor(s): Ester Expósito, Malena Villa, Mathilde Ollivier, José Luis Ferrer, Claudia Roset, Lía Lois, Sonia Almarcha, Tomás del Estal, Lautaro Bettoni, Àlex Monner, Sebastián Arzeno
Genre: Drama, Terror, 2024
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Em “El Llanto,” as câmaras servem para desvendar um pesadelo em que múltiplas gerações de mulheres são brutalizadas, seus espíritos em constante grito, unidas pela violência da figura masculina, o patriarca demónio. Trata-se de uma alegoria feminista cruzada com cinema sobre cinema, um tríptico espanhol que se destaca na programação do IndieLisboa. A Boca do Inferno continua a ser uma das secções mais empolgantes do festival.
O MELHOR: A sequência inicial e seu pesadelo pleno, um cinema cruel e de cortar a respiração. Assim é que se começa um filme!
O PIOR: Nota-se alguma exaustão na estrutura repetitiva, arriscando-se a redundância. Quantas vezes temos que testemunhar as mesmas cenas da personagem principal a descobrir a presença maligna nos seus vídeos, filmagens, o que for? Isso e os grotescos com que Marie se depara no clímax do seu capítulo.
CA