"Ema" | © Cinema BOLD

Ema, em análise

O ano passado, “Ema” de Pablo Larraín foi um dos filmes mais estranhos a competir na Bienal de Veneza. Agora, esta bizarra e desvanada criação é uma das novidades da Cinema BOLD.

Nos últimos anos, Pablo Larraín tem-se vindo a afirmar como um dos grandes e mais arrojados realizadores do cinema contemporâneo. O cineasta chileno ganhou renome internacional com uma série de filmes sobre a sua nação sob o regime de Augusto Pinochet, exorcizando horrores antigos e dissecando um trauma coletivo com tanta irreverência como impiedade. Em 2015, “O Clube” viu-o virar a sua visão de cinema político sobre o tema dos abusos sexuais na igreja católica e, em 2016, ele deu o salto para a produção anglófona com “Jackie”, onde o legado dos Kennedy é observado enquanto uma construção teatral. Para Larraín, toda a História é, de certa forma, uma construção teatral, um conceito que só foi sublinhado pelo seu outro filme de 2016, a orgia de meta-texto explodido que é “Neruda”.

Todos estes filmes são, em certa medida, sobre o passado, quer ele seja o cenário em que a narrativa se desenrola ou o tema da sua análise. Nesse sentido, “Ema” é uma dissonância chocante na filmografia deste autor, tratando-se de uma obra sobre viver no presente e no agora, sobre liberdade sem limites e sentimento sem decoro. Não se trata, por isso, de um trabalho menos intelectualmente complexo que os seus filmes anteriores. Muito pelo contrário, “Ema” é tematicamente rico e denso também, estando tão recheado de ideias complicadas que elas se aglutinam e formam uma quimera feroz. Ao invés de nos convidar à sua decifragem, este monstro de filme rosna para os seus espectadores, avisando-os que é melhor manterem a distância.

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© Cinema BOLD

Nada podia ser mais apropriado para um filme que se centra em e partilha o nome de uma mulher como Ema.  A primeira vez que a vemos, ela é como um demónio que assombra as noites da cidade de Valparaíso. Equipada com um lança-chamas feito em casa, ela pega fogo a semáforos e pinta a madrugada com labaredas. Piromaníaca sem vergonha, Ema faz a vida como uma bailarina e professora de expressão corporal, sendo casada com um coreógrafo mais velho com quem, em tempos, adotou um menino. No entanto, quando a conhecemos, Ema acabou de devolver o filho aos serviços de adoção depois de o rapaz ter pegado fogo à cabeça da tia e ter morto um gato ao fechá-lo no congelador.

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O fim da adoção veio acompanhado com fraturas irreparáveis ao casamento da protagonista com seu petulante esposo, assim como reprimendas profissionais que levam Ema a abandonar o trabalho na escola. Nas mãos de outros cineastas, esta premissa narrativa poder-se-ia desdobrar num melodrama choroso sobre uma mulher a confrontar uma fase de violenta transição na sua vida. Para mal e pior, Pablo Larraín não é um desses cineastas, tendo feito de “Ema” uma espécie de rave em forma de filme, entrecortando a ação com constantes espetáculos de dança, ora nas ruas ou num palco adornado com explosões solares, e cenas de sexo que fragmentam tempo e espaço, dando a impressão que Ema está a fornicar com o mundo inteiro.

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© Cinema BOLD

Além desses devaneios de cinema alucinatório, “Ema” tem ainda a sua figura central como elemento de caos e discórdia. Com sua cara inexpressiva e cabeleira oxigenada, Ema é uma presença que nunca revela seus segredos e parece viver num plano dimensional que só a ela pertence. Suas ações são chocantes, como se a sua vida fosse um constante jogo de provocação que ela está a travar connosco que a observamos. Se há algo que dá alguma estrutura, algum nexo, a esta criatura é seu desejo por liberdade. Ela quer ser livre para ser mãe, para ser mulher e para ser dançarina de Reggaetón. Quer o filho, mas não o quer, quer o marido, mas não o quer também, quer fazer o que lhe apetece e cuspir nos bons costumes de uma sociedade demasiado sana, demasiado conservadora e demasiado tímida, para a sustentar.

Tais palavras podem sugerir um retrato psicológico mais ou menos legível, mas “Ema” é um filme que é para ser sentido ao invés de pensado. Tentativas de descodificar os seus segredos falham e parecem até trair o ímpeto do próprio filme, cuja ousadia irradia da personagem principal e afeta todas as facetas da produção. A maior surpresa de todas, assim como a mais imprevisível, é o pico de absurdo a que tudo chega perante o final e seu perverso idílio doméstico. De forma geral, o filme beneficiaria de uma extensão desse tipo de humor retorcido para além da conclusão. “Ema” é um pouco sério demais para o seu bem, mas não deixa por isso de ser uma inebriante alucinação, belissimamente fotografada e acompanhada com uma banda-sonora com um pé na discoteca e o outro no inferno. Recomendamos a qualquer cinéfilo que, no passado, tenha amado um dos filmes de Pablo Larraín.

Ema, em análise
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Movie title: Ema

Date published: 30 de June de 2020

Director(s): Pablo Larraín

Actor(s): Mariana Di Girolamo, Gael García Bernal, Santiago Cabrera, Paola Giannini, Cristián Suárez, Giannina Fruttero, Mariana Loloya, Catalina Saavedra, Eduardo Paxeco

Genre: Drama, Música, 2019, 107 min

  • Cláudio Alves - 75
  • Daniel Rodrigues - 70
73

CONCLUSÃO:

Irreverente e no limiar da loucura, “Ema” é um peculiar estudo de personagem sobre uma mulher que vai contra tudo e todos na sua busca por liberdade. Egoísta e pirómana, rebelde e magnética, Ema é o tipo de personagem que raramente vemos tão bem imortalizada no grande ecrã.

O MELHOR: As cenas de dança, o modo como o casal central discute com a impiedade de dois guerreiros num combate até à morte, e a domesticidade subversiva do fim.

O PIOR: A seriedade do filme é um dos seus maiores problemas. A opacidade psicológica de Ema também é frustrante, mas tende a beneficiar mais a produção do que a fragiliza.

CA

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