Small Bills (foto de John Mark Hanson)

Mês em Música | Playlist de Outubro 2020

Na Playlist de Outubro destacamos os melhores singles e álbuns de um mês marcado pelo anúncio em grande de um álbum que esperamos seja maior ainda.

Quando chegarmos ao final deste ano tão estranho veremos se calhar que, enquanto ninguém olhava, aconteceu bem mais do que se esperava. Grandes canções saíram na semana em que nos esquecemos de consultar os sites, álbuns de mérito chegaram aos serviços de streaming logo naquele fim-de-semana em que fomos de férias. Cansados de seguir e ouvir sem qualquer retorno fomos deixando passar as semanas, vigiando apenas intermitentemente e perdendo o melhor nos interstícios do desleixo.

O final do ano será um bom momento para recolher toda esta qualidade dispersa e desaparecida por entre a mediocridade de álbuns derivativos, Eps de confinamento, covers diários e colaborações intermináveis, tudo o que foi enchendo o tempo, iludindo o tédio, transpirando a angústia. Até lá, aqui está, já peneirado na Playlist de Outubro, o que de entusiasmante (ou quase) emergiu durante este mês.

Playlist de Outubro | O single do mês

Alguns meses passaram desde que promovemos o segundo single dos Black Country, New Road. A obscura banda britânica divulgou “Sunglasses” nas plataformas de streaming, reacendeu o entusiasmo da comunicação social e voltou a esconder-se atrás de um culto que sempre seguiu, atentamente, as suas entrevistas, concertos, covers e publicações não assim tão imponderáveis. Caso ainda existissem dúvidas sobre a influência dos Slint nas composições pós-rock de “Athen’s, France” e “Sunglasses”, todas se dissiparam aquando do lançamento do (muito) antecipado terceiro single: “Science Fair”. Naturalmente, a mais recente canção de “Slint’s 2nd Best Tribute Act” é o nosso Single do Mês.

“Science Fair” segue um registo progressivo similar aos dois singles anteriores e a mutação de forma e ecletismo sonoro deverão ganhar o respeito da comunidade crítica, incluindo a falange de auto-denominados “profetas da morte do rock”. Jogos de dinâmicas quiet-loud, linha de baixo e percussão pós-punk e a gradual integração da secção de sopro free jazz cozinham, meticulosamente, um bruto clímax cacofónico e o anúncio bem audível do septeto: “It’s Black Country out there!”.

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Em jeito de apresentação e com alguma autodepreciação à mistura, Isaac Woods dá a conhecer aos ouvintes o mundo que viu nascer os Black Country, New Road. Por intermédio do spoken word, o vocalista estabelece ligações entre o seu trabalho e diversos panoramas histórico-culturais, comunidades de nicho e, mais especificamente, a geração artística da década de noventa, que muito peso detém sobre as composições da banda.

Sobre este tema, comentou o realizador Bart Price: “Enquanto desenvolvia o teledisco de “Science Fair”, reflectia sobre os mundos ficcionais que visitamos através do ecrã, por exemplo o liceu norte-americano. Apesar da nossa falta de experiência directa, estes mundos tornam-se num método universal de comunicação e assimilação de conceitos como crescer, pertencer a um grupo de amigos ou apaixonar-se. Pretendia criar um mundo assim à volta dos Black Country, New Road, posicionando-os no centro de uma pequena cidade norte-americana, na qual, de certo modo, já todos habitámos”.

For The First Time, Black Country, New Road

A banda anunciou, juntamente com a versão de estúdio de “Science Fair”, a assinatura de contrato com a editora discográfica Ninja Tune (A Winged Victory For The Sullen) e o lançamento do álbum de estreia para 5 de Fevereiro de 2021. For The First Time foi produzido por Andy Savours (My Bloody Valentine) e consiste de seis faixas que capturam a “energia, ferocidade e carga explosiva” dos Black Country, New Road. Para além do novo single e de reinterpretações de “Athen’s France” e “Sunglasses”, o registo incluirá ainda os temas “Instrumental”, “Track X” e “Opus”, tudo títulos tão modestos quanto informativos. (DAP)

BLACK COUNTRY, NEW ROAD | “SCIENCE FAIR”

Playlist de Outubro | Os singles

E não é que o nosso número dois é precisamente uma colaboração, vinda na dianteira de um Ep, talvez mais um dos tantos gravados durante este tempo suspenso, para que os músicos não perdessem a cabeça e porque a vida não pode esperar pelo amanhã? Sinal claro de que o homem é maior dos que as suas circunstâncias, podendo o talento grassar em qualquer terreno favorável ou não, a colaboração de Nilüfer Yanya com o colega de editora, Nick Hakim, é, ao mesmo tempo, expressivo da inquietude destes tempos: “If you ask me one more question, I’m about to crash”.

É fácil perder-se o resto das palavras sob o efeito poderoso desta litania, mas vale a pena remar contra a maré e atentar na narrativa. Embora no contexto da turbulência de uma relação, ideias como “presença”, “distância”, “prisão”, “confusão”, “prece” e arrependimento são também um retrato da vida neste ano de pandemia, de catástrofe iminente: “I will make amends/ Heavy like the water/ I can’t swim against”. E assim soa a voz de Yanya, a navegar, tensa, flutuante, o maremoto do instrumental distorcido e propulsivo, tentando manter-se à tona, ora resistindo, ora abandonando-se à tempestade. (MPA)

NILÜFER YANYA | “CRASH”

Das gretas da terra árida, da argila ressequida da provação liberta-se o pressentimento de um bem insuspeitado, que pede para ser posto em palavras ou, se não as conseguimos ainda divisar, pelo menos em melodia. É próprio do homem poder cantar mesmo em tempos de adversidade, seja o que for que lhe saia das goelas. Canto elevado ou grito das entranhas, enquanto há voz, há vida. Diante da morte, mesmo da mais triste de todas as mortes, o homem intui que esta não pode ser a última palavra, ou não a seguiria de outras palavras.

Menos ainda de melodias como as que só John Ross sabe tirar da sua voz, guitarras e sintetizadores. Uma euforia sempre atravessada de serenidade e um constante travo de nostalgia, uma batida vivaz jamais apressada, uma viagem de momentos dançantes e pausas meditativas são a expressão mais exata da adivinhação do bem que percorre a profundidade da dor e das dificuldades: “You want peace, you want love/ You deserve that much.” Nunca como nestes tempos precisámos tanto de um canto que nos relembrasse do que somos e desejamos. (MPA)

WILD PINK | “THE SHINING BUT TROPICAL”




Playlist de Outubro | Os álbuns

Tem sido um pouco a regra este ano que escolher o álbum do mês não seja tarefa fácil. Não exatamente por falta de material (embora por vezes tenha faltado), nem por abundância do mesmo (coisa de que 2020 não se pode gabar) mas pelo equilíbrio da competição. Dos candidatos que chegam ao nível do prémio nenhum se destaca ostensivamente acima dos restantes e cabe-nos decidir o que se irá sobressair, mais do que reconhecer o que se sobressai. Mas parece-nos que decidimos bem, senão digam-nos vocês.

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O ano de 2020 assinala o segundo Dia das Bruxas consecutivo a reter um álbum de estúdio dos clipping. como banda-sonora para a semana que antecede o festival pagão mais célebre do mundo. Se as tradições associadas a esta época festiva sofreram um forte abalo com as restrições impostas pela situação pandémica, já Visions Of Bodies Being Burned é um claro upgrade ao estilisticamente semelhante There Existed An Addiction To Blood, de 2019.

De produção mais experimental e ainda assim convidativa, Visions Of Bodies Being Burned é uma homenagem ao cinema de terror e uma sequela vanguardista do horrorcore da década de 90. A cadência enraizada no hardcore de Daveed Diggs é embalada pela experimentação com noise e industrial, referências a slashers e um vasto leque de colaborações com artistas de relevo, entre os quais o grupo congénere Ho99o9 e Jeff Parker, multi-instrumentista e membro da banda pós-rock Tortoise.

“Do you like scary movies, what’s your favorite?”, questiona Daveed Diggs em “’96 Neve Campbell”, em alusão à quadrilogia Gritos. Qualquer fã do género ficará agradado com os versos presentes neste tributo a assassinos em série e rainhas do grito, mais ainda com o sinistro instrumental que tão fielmente os caracteriza. (DAP)

CLIPPING. | VISIONS OF BODIES BEING BURNED

Partimos agora para terras nipónicas. Durante a década passada, um extenso catálogo de bandas japonesas procuraram unir a doçura das melodias vocais J-pop ao virtuosismo técnico e visceralidade das guitarras math-rock. Muitas sucederam com êxito e ganharam notoriedade internacional, particularmente entre os fãs ocidentais de midwest emo. Todavia, nenhuma arquitectou uma identidade tão sui generis como as Tricot, originárias de Kyoto e já com uma dezena de anos de portefólio.

Em jeito de celebração, as Tricot denominaram o seu mais recente álbum de estúdio de 10. Atentando no ecléctico modo como o disco progride, as cordas e percussão navegando entre power-pop, pós-hardcore e jazz dançável, concluímos que, mais que um disco de aniversário, 10 é um verdadeiro triunfo para o rock japonês.

10 abre espaço para que as talentosas instrumentistas possam comunicar entre si e divergir de guitarras de alta-frequência reminiscentes dos Minutemen para criações melódicas que acabam por desconstruir ou reciclar durante a faixa. No entanto, é o pragmatismo recém-adquirido das Tricot que lhes permite saber quando e como desembaraçar uma canção e atingir uma acessibilidade comum à maioria dos grandes álbuns pop. (DAP)

TRICOT | 10

À volta deste conjunto de peso, outros álbuns ainda são dignos de uma menção honrosa. A colombiana Ela Minus, sem romper em acts of rebellion, contrariamente ao que o nome sugere, fronteiras ou abrir propriamente novos caminhos, traz-nos algumas grandes canções de electropunk, intervaladas por momentos mais atmosféricos. De ouvir é também a experiência de dissolução e indefinição de géneros levada a cabo pelos Loma em Don’t Shy Away. As melodias e a reverberação new-age, os fragmentos e interlúdios de pós-rock, o baixo pós-punk, tudo vai evoluindo e mesclando-se até chegar ao fim e, na lentidão da música que foi acontecendo, comover-nos sem que percebêssemos bem como.

LOMA | DON’T SHY AWAY

Playlist de Outubro | O álbum do mês

Don’t Play It Straight chegou mesmo a tempo de conquistar este lugar e com jogo limpo. Difícil não perder a cabeça com a cadência impositiva e insistente, directa ao assunto, de Elucid, o rapper da cena subterrânea nova-iorquina que constitui, ao lado de billy woods, a outra metade do duo Armand Hammer. Depois de lançar em Junho, com o parceiro habitual, um dos grandes álbuns de hip-hop deste ano, Shrines, Elucid juntou-se agora ao produtor e multi-instrumentista de Michigan The Lasso, para formar o novo duo de peso Small Bills e impressionar-nos logo à primeira. Composto ao longo do ano, entre Detroit e Nova Iorque, o resultado é uma fascinante fusão de art rap e punk funk.

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Para quem (como esta vossa amiga aqui) terá sempre um lugar especial no coração para o hip-hop da era dourada e pouca paciência para maneirismos vocais que de tudo arrancam uma rima, torna-se impossível resistir aos acentos clássicos de rappers como Ice Cube na voz de Elucid. Claro e incisivo, mas com um veio de demência latente, a explodir à superfície em momentos como “Here Be Dragons”, Elucid entra com a fúria controlada de profeta apocalíptico, vindo para denunciar o erro e chamar à conversão nestes tempos de distopia. Longe da produção mais cerebral e jazzística de billy woods, sob a pressão da sonoridade visceral, propulsiva e psicadélica de The Lasso, é todo um fluxo da consciência mais sombrio e cavernoso o que ouvimos sair de Elucid, ao som do baixo ribombante e da batida de ritmos contraintuitivos.

Não faltam colaborações a enriquecer o diálogo (ou a alucinada meditação) em Don’t Play It Straight. Desde o próprio billy woods, até Moor Mother, Fielded, Koncept Jackson e Kayana, várias são as vozes que embarcam no discurso hipnótico e introspectivo de Elucid, no seio da produção camaleónica de The Lasso, que ora mais eletrónica, ora mais funk, percorre os diferentes ambientes sonoros da noite e da insónia. (MPA)

SMALL BILLS | DON’T PLAY IT STRAIGHT

PLAYLIST DE OUTUBRO | DESTAQUES DO MÊS

  • Kirye, NETAMI (Edição de autor, 1 de Outubro)
  • Bartees Strange, Live Forever (Memory Music, 2 de Outubro)
  • Róisín Murphy, Róisín Machine (Mickey Murphy’s Daughter/BMG, 2 de Outubro)
  • Touché Amoré, Lament (Epitaph, 9 de Outubro)
  • Tomberlin, Projections EP (Saddle Creek, 16 de Outubro)
  • Autechre, SIGN (Warp, 16 de Outubro)
  • tricot, 10 (Avex Entertainment, 21 de Outubro)
  • Adrianne Lenker, songs (4AD, 23 de Outubro)
  • This Is The Kit, Off Off On (Rough Trade, 23 de Outubro)
  • Loma, Don’t Shy Away (Sub Pop, 23 de Outubro)
  • clipping., Visions of Bodies Being Burned (Sub Pop, 23 de Outubro)
  • Ela Minus, acts of rebellion (Domino, 23 de Outubro)
  • Actress, Karma & Desire (Ninja Tune, 23 de Outubro)
  • Small Bills, Don’t Play It Straight (Mello Music Group, 30 de Outubro)
  • Oneohtrix Point Never, Magic Oneohtrix Point Never (Warp, 30 de Outubro)

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