Ery Claver © Afrikamera

Ery Claver | Entrevista ao realizador de Nossa Senhora da Loja do Chinês

Falamos com Ery Claver, o realizador de Nossa Senhora da Loja do Chinês, novo filme angolano da Geração 80 que estreou em Portugal.

A distribuidora Cinetoscópio estreou em Portugal um dos melhores trabalhos da produtora Geração 80, que nos últimos tempos tem levado pelo mundo fora um pouco do cinema angolano. “Nossa Senhora da Loja do Chinês“é descrito como “um conto poético intenso sobre poder, família e vingança no coração de Luanda” e que o cineasta Ery Claver ansiava estrear em Portugal. Na verdade, “Nossa Senhora da Loja do Chinês” permite descobrir uma outra Angola, que conecta várias personagens entre as suas ruas, para mostrar os diferentes urbanismos vividos naquele país e na sua capital.

Aquilo que vemos é um retrato puro e mágico de Angola, dos seus bairros, da sua cultura e do nosso presente. A obra foi curiosamente rodeada durante a primeira vaga da pandemia de COVID-19 em 2020 numa altura muito particular e sensível para todos. Agora chegou finalmente a vez de desfrutarmos deste filme, que nos faz pensar sobre um conjunto de temáticas. Segundo o próprio realizador:

A relação que tenho estabelecido com os aspectos da condição humana têm sido uma experiência determinante para a minha construção como cineasta. O filme reclama em seu contexto temas como desejos de vingança, segredos, servidão, abuso, violência, morte, fantasmas, política , fé religiosa, é através do poder que essas bases se manifestam.

Nossa Senhora da Loja do Chinês é uma obra sobre a realidade, mas também sobre o universo dos sonhos, que nos faz acreditar essencialmente que o cinema angolano está vivo e recomenda-se. Há mesmo uma enorme vontade do realizador Ery Claver e dos restantes cineastas da Geração 80 de produzir e fazer cinema em Angola e mostrá-lo como arte universal que é.

Antes de leres a nossa entrevista com Ery Claver assiste ao trailer de “Nossa Senhora da Loja do Chinês” que chegou às salas de cinema portuguesas no passado dia 23 de fevereiro.

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Nossa Senhora da Loja do Chinês | Trailer

MHD: Como surgiu a ideia para Nossa Senhora da Loja do Chinês?

Ery Claver: Bem, não foi uma ideia que surgiu já acoplada, como um todo. Acho que foi mais uma mistura de assuntos e de pequenas estórias, nomeadamente de algumas abordagens que me vieram desafiando nas minhas curtas metragens anteriores.

MHD: No seu filme a pandemia de COVID-19 está muito evidente. Como foi rodar a experiência de rodagem e o que aprendeu nesse desafio?

Ery Claver: A condição da pandemia foi uma experiência intimidante e desafiadora, mas devo assumir que nunca senti que, pelo menos à nível estético, fosse me causar constrangimentos. Mesmo a maior marca da pandemia, as máscaras, soubemos dar inclinação visual a nosso favor. Sinto que até acompanha bem para a estranheza realista proposta, encaixa bem numa cidade meio distópica. Eu adoro este tipo de imprevistos, gosto desse choque que a realidade pode promover, por isso gosto muito desse meio termo entre o documentário e a ficção.

Nossa Senhora da Loja do Chinês
Nossa Senhora da Loja do Chinês © Geração 80

MHD: Nossa Senhora da Loja do Chinês faz-nos viajar com várias personagens e pelos labirintos de Luanda. Sentia a necessidade de oferecer vários pontos de vista sobre estas pessoas que parecem perdidas pela capital de Angola?

Ery Claver: Gosto de pensar que qualquer passageiro da cidade, qualquer rosto que passa, carregam uma história interessante, mas há umas que até chegam a destilar a sua vida interior. O desafio maior é encontrar actores que consigam em vez de fingirem as vidas que actuam, consigam acima de tudo usar os personagens para vesti-los com as suas próprias angústias pessoais.

MHD: A direção de fotografia do filme mostra a vida urbana a acontecer em frente dos nossos olhos, como um documentário. Sempre foi esta a sua intenção para o filme?

Ery Claver: Sim, a minha falta de meios e a minha experiência em documentários levaram-me a encontrar uma forma de filmar que me deu muito prazer, que é trabalhar ao lado da realidade. E não acredito que qualquer encenação muito estilizada consiga atingir o insólito, a magia e o imprevisto que a realidade oferece. Agora, as paletes de cor, o ritmo e o ambiente, por incrível que pareça são os próprios personagens que me oferecem quando postos no lugar de cena. Cada um vem carregado com o seu próprio mundo.

MHD: Procurou seguir o guião à risca ou permitiu aos seus atores alguma improvisação? Como foi trabalhar com a Cláudia Púcuta (Domingas), com David Caracol (Bessa) que são profissionais e depois com o Willi Ribeiro, ator estreante e ainda com o narrador, Meili Li? Alguma história que gostaria de contar?

© Cinetoscópio

Ery Claver: Eu não cheguei a escrever um guião cinematográfico propriamente dito. Fi-lo depois com a ajuda da Kamy Lara [assistente de realização], para podermos distribuir melhor a ideia entre o resto da equipa. Eu escrevi uma uma prosa assim meio poética e fragmentada. Era uma estória simples sobre uma mãe em busca de cura para o luto da família, que a levaria a buscar todos os tipos de ajuda espiritual para se aliviar. Depois transformou-se num duelo entre poderes com o seu marido opressor, depois moribundo. Queria representar como o poder pode transfigurar-se e as consequências num lugar, ou um lar, de ressentimento, para também metaforizar o próprio poder político.

Quando dei conta estava a falar chinês. Com os actores, não creio que eles tenham actuado muito, ainda bem, mesmo o Willi, que não é actor profissional – já trabalhamos os dois numa versão com o mesmo personagem para uma curta metragem. Quanto o Mei Li, o narrador, foi uma experiência única e desafiante, à distância, mas muito bonita também.

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MHD: A última vez que a Magazine.HD falou sobre a Geração 80 foi em 2017, no âmbito do festival Olhares sobre Angola. Como é que a produtora tem ajudado na promoção do cinema angolano e das novas vozes do cinema?

Ery Claver: Acho que dá sim para admitir que Geração 80 tem feito a sua parte no que cabe não só ao cinema mas a todo audiovisual angolano. Muito compromisso e vontade saída não sei de aonde.

Ery Claver
© Cinetoscópio

MHD: Nossa Senhora da Loja do Chinês aborda questões sociais pertinentes da vida em Angola, mas deixa escapar alguma magia. Porque esta aposta no realismo mágico para o filme?

Ery Claver: É mesmo essa tentativa de imitar uma realidade que se apresenta sempre de forma muito insólita, por vezes até onírica. Há uma complexidade no realismo social que nós ficcionistas estamos sempre a tentar maquilhar para parecer mais legível. Eu rejeito um pouco essa visão fictícia, prefiro inventar uma realidade nova para estar ao nível de representar de forma verosímil o nosso realismo social

MHD: O seu filme estreou no Festival de Cinema de Locarno. Como é tê-lo agora em exibição nas salas de cinema portuguesas?

Ery Claver: Para mim pessoalmente é momento muito importante na divulgação do filme por ser uma estreia num país em língua portuguesa, e principalmente por ser em Lisboa aonde temos muitos laços e amizades, e naturalmente uma oportunidade de poder mostrar o texto original do filme, que eu penso que muitas vezes a tradução não consegue captar fielmente.

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