IV Mostra de Cinema Olhares Sobre Angola | Kamy Lara e Gretel Marín em entrevista exclusiva

Kamy Lara e Gretel Marín, duas jovens cineastas da produtora Geração 80 marcaram presença na Mostra de Cinema Olhares Sobre Angola que encheu a sala do Hangar – Centro de Investigação Artística.

A IV edição da Mostra de Cinema Olhares Sobre Angola terminou com um balanço extremamente positivo. A mostra de cinema, ocorreu entre os dias 25 e 26 de outubro no Hangar – Centro de Investigação Artística, e foi de um sucesso estrondoso, com público de várias idades e gerações. Notou-se claramente um ambiente familiar no espaço, inaugurado há cerca de dois anos em Lisboa, e que desde então tem também optado por dar uma nova vida à capital do país no que toca a eventos culturais.

Na Mostra encontrámos pessoas de várias partes do mundo, aliás, a zona da Graça é bastante apelativa aos turistas que por lá passam e que, curiosos, visitavam a sala sempre cheia do Hangar.

As sessões contavam sempre com conversas e perguntas interessantíssimas, entre espetadores, convidados e responsáveis da Mostra, que este ano haviam decidido por uma programação exclusivamente dedicada aos trabalhos da produtora angolana Geração 80, nascida em 2010. Entre esse grupo de talentosos cineastas, que nos foram sendo apresentados através do documentário “A Nossa Geração”, realizado propositadamente para esta IV edição dos Olhares Sobre Angola, encontramos duas jovens cineastas bem dispostas e com uma constante disponibilidade em falar com o público.

Kamy Lara, cineasta e diretora de fotografia, e Gretel Marín (uma presença surpresa), também ela realizadora e editora, receberam-nos com a mesma simpatia para dois dedos de conversa. A entrevista decorreu numa noite de calor lisboeta, no final da sessão de curta-metragens em que foram exibidos os filmes “Alambamento”, “A Luz no Quarto Era Vermelha Porque Não Existia Amor”, “Há um Zumbido, Há um Mosquito, São Dois” e “Havemos de Voltar”. Leia a entrevista que abaixo transcrevemos:

MHD: Como nasceu a vossa paixão pelo cinema?

KL: Boa pergunta (risos)…Eu adorava ter aquelas histórias “desde pequenina…”, mas não. Foi acontecendo. Quando eu escolhi o curso não era o caminho que eu queria seguir. Eu escolhi Audiovisual e Multimédia (concluido na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa), mas não sei dizer muito bem porquê. Na verdade, tens 18 anos e tens de escolher um curso. Tive muita dificuldade na altura em fazê-lo. Ao longo do curso percebi qual a área que gostava mais, e que afinal poderia estar no curso errado. No entanto, a vontade de fazer cinema acabaria por nascer quando comecei a trabalhar efetivamente em cinema. Assim que terminei o meu curso tive a vantagem de fazer um curso técnico (em Câmara e Iluminação na Restart) e logo a seguir trabalhei no filme “A Espada e a Rosa” (João Nicolau, 2010), de João Nicolau em Portugal. Depois trabalhei na série francesa “Maison Close” (Mabrouk El Mechri, 2010) e depois fui para Angola para dedicar-me ao projeto “Angola – Nos Trilhos da Independência”. Foi um longo caminho até descobrir este gosto e esta vontade.

GM: (Risos) Não sei se posso chamar isso uma paixão. Acho que é mais um dos caminhos possíveis para mim. Há pessoas que vivem aquela paixão pelo cinema, mas acho que é uma das tantas coisas que quero fazer. Eu comecei a estudar cinema com 17 anos (curso de Realização, Cinema, Rádio e Televisão pela Universidade das Artes de Havana), mas talvez porque não sabia aquilo que queria estudar. Depois descobri que afinal gostava de documentários e de participar na sua elaboração, acabando mesmo por realizar um mestrado bastante prático nessa área. De Cuba, passei para França, até que comecei a trabalhar em Angola com a Geração 80.

Olhares Sobre Angola

MHD: A IV edição da Mostra de Cinema relevou-se empenhada em conquistar um novo público. Quais os são os maiores desafios para conquistar o público nos dias de hoje?

GM: Oh la la…(risos).

KL: (risos) Pelo menos em Angola o maior desafio é de que as pessoas vejam os filmes. A distribuição é ainda uma barreira enorme. Este é um processo que estamos a descobrir, e em que tentamos, de alguma forma, inventar caminhos. Ir ao cinema é bastante caro e as salas de cinema optam por filmes comerciais de Hollywood, por isso considero a distribuição como a principal dificuldade para conquistar o público. Por outro lado há a dicotomia entre conquistar o público com o que ele já está habituado a ver ou o que gosta de ver, e aquilo que nós gostamos ou gostávamos de mostrar. Encontrar esse equilíbrio entre um cinema que quer comunicar uma linguagem e mesmo assim conquistar público é um exercício que se deve ir fazendo, sem ceder.

MHD: O público terá então que ser “ensinado”, “reeducado”…

GM: De alguma maneira pode ser que sim.

KL: Não gosto muito dessa ideia…(pensativa). Não sei se será o nosso papel. Talvez se houvessem mais espaços onde se vissem outros trabalhos, haveria também mais interesse para outro tipo de conteúdo, sem serem apenas sobre “armas”, ou “comédias”.

GM: Isso também passa por uma política cultural de Estado. Pelo menos de acordo com a pouca experiência que tenho em relação à distribuição, que talvez em Angola não funciona muito bem.

MHD: Isso vai muito ao encontro daquilo que a curadora e responsável pela Mostra Maria do Sameiro André dizia, ao considerar que talvez possa ser criada uma lei de cinema que abranja essa questão. Concordam com esta ideia?

KL: Eu acredito que seja importante que o Estado tenha um papel regulador. No sentido não só de proporcionar as condições para se produzirem os filmes, como também de criar leis ou sistemas para que esses filmes sejam distribuídos. Por exemplo, uma determinada percentagem de filmes exibidos deveriam ou poderiam ser angolanos. Tem que haver um incentivo para mais produções e depois um incentivo para que os distribuidores, distribuam efetivamente. Se o único incentivo de produção for o lucro, então a luta é injusta.

Olhares Sobre Angola
O sociólogo Manuel Dias dos Santos comenta o poder da memória do filme Independência ao lado das cineastas Kamy Lara e de Gretel Marín e da curadora Maria do Sameiro André

MHD: Qual o vosso maior objetivo a nível profissional? 

GM: Pelo menos conseguir a fazer filmes criativos que sejam vistos. Como falamos em distribuição e do acesso ao público a ideia para mim seria essa. Penso que a Geração 80 também tem isso em vista. Produzir filmes criativos a longo prazo é fundamental.

KL: Não sei muito bem qual o meu objetivo profissional. Fazer filmes é óbvio. Mas antes de fazer filmes é poder participar em filmes de outras pessoas. A solidariedade e a colaboração é algo bastante importante. Não só no cinema como na vida e tenho isso em conta na minha. Posso ajudar outros a atingir os seus objetivos e a produzir os seus filmes.

MHD: Por essa razão a Geração 80 tem laços familiares bastante profundos. Não é verdade?

KL: Talvez. Há, de facto, essa constante inter-ajuda. Tal acontece porque somos poucos. Quase todos estamos nas produções uns dos outros.

GM: Há muitas maneiras de fazer filmes. Mas acho que uma das que mais gosto está dentro dessa ideia de colaboração que a Kamy fala. É o objetivo da Geração 80. Talvez a concretização seja mais difícil, exija tempo, muito trabalho e disponibilidade das pessoas, mas é algo importante a ter em conta quando começamos a fazer filmes. É bonito estarmos todos em volta dessa necessidade de fazer e criar um determinado filme.

Olhares Sobre Angola
Kamy Lara conversa com a Professora Wang Hong e com o Professor Doutor Wang Jincheng, Diretor do Instituto Confúcio da Universidade de Lisboa no âmbito do filme Do Outro Lado do Mundo

MHD: Consideram importante trazer para a Europa mais projetos, sejam da cinematografia angolana, em particular, como da cinematografia africana no geral? 

KL: Claro. Qualquer que seja o sítio em que os filmes se vejam é importante. Os filmes não são para o público do sítio onde são feitos. O cinema é uma língua mundial que consegue comunicar com muitas pessoas e dar a conhecer a nossa realidade a outras pessoas. Enquanto assistia às curta-metragens, detetei realidades que me estão próximas. Mas imagino pessoas que nunca foram a Angola ou a Luanda e que ao início isso seja algo estranho. Acontece-me o mesmo quando eu vejo um filme de um país que nunca visitei.

GM: Há também a questão do olhar. Como é que a nossa cultura é observada e filmada. Algumas vezes, muitos dos filmes africanos que se vêem em festivais, os seus realizadores e a sua equipa, são maioritariamente europeus. Então, tens um olhar africano a partir de um ponto de vista europeu. Para a Geração 80 é muito importante dar um “olhar” de nós próprios, desde dentro, e acho que é isso que devemos fazer sempre. Poder partilhar isso com outras pessoas permite sobretudo um outro ponto de vista.

MHD: Atualmente muito do cinema independente, sobretudo um cinema afora da lei dos estúdios em Hollywood, está interessado em filmar o quotidiano, o vulgar e o banal. Porquê é que é tão importante as situações rotineiras, como também é referido em “A Nossa Geração”? 

KL: Como digo no documentário “A Nossa Geração” isso é algo que me inspira. Mais do que o quotidiano, inspiram-me as pessoas no quotidiano. A lógica é mesmo todas as pessoas. Pessoas que eu convivo ou outras com quem eu gostaria de conviver. Eu gosto de mostrar que todas as vidas têm uma estória, diria estória com “e” até, para contar.

GM: Acho que há aí uma riqueza muito grande a nível humano. Talvez o Fradique (Mário Bastos), realizador de “Independência”, poderia falar dessa ideia de criar personagens a partir das pequenas estórias que ele descobre ou conhece. A nível do documentário há possibilidade de explorar essas estórias e o que as pessoas podem partilhar com outras pessoas, com quem têm sempre algo em comum. Isso é básico dentro do cinema e no que move realmente o espetador ao nível da emoção. Encontrar algo que te identifiques com aquela determinada personagem que nunca viste e que nunca verás é fascinante. Temos isso em comum na Geração 80. Essa procura dentro do quotidiano, dos nossos “todos os dias”, de uma pequena imagem cinematográfica.

A Magazine.HD como media partner da Mostra de Cinema Olhares Sobre Angola gostaria de agradecer aos curadores da mesma, à documentalista Maria do Sameiro André e ao realizador Jorge António, bem como aos restantes membros da equipa, Victor Hugo Lopes e Pedro Louro, pela calorosa recepção. Agradecimento especial também ao pessoal e responsáveis do Hangar – Centro de Investigação Artística. Agradecimento último à Kamy Lara e à Gretel Marín pela disponibilidade em falarem connosco. Os Olhares Sobre Angola regressam no próximo ano para mais uma edição. 



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