"Paradise" | © Petit A Petit Productions

FEST ’23 | Paradise, em análise

No FEST – New Directors | New Films Festival, a decorrer em Espinho, existem duas competições centrais. Ambas resultaram num qualquer autor consagrado com o Lince de Ouro. Contudo, enquanto uma se foca na longa-metragem narrativa, a outra incide sobre cinema documental. Neste paradigma factual, “Paradise” de Alexander Abaturov destaca-se como uma proposta especialmente arrojada, seu jogo audiovisual um esplendor. O documentário russo sobre o flagelo das mudanças climáticas na tundra siberiana teve a sua estreia no International Documentary FilmFestival Amsterdam, onde ganhou um troféu pela fotografia com assinatura do francês Paul Guilhaume.

O realizador Alexander Abaturov há muito faz cinema à revelia do Kremlin, elaborando críticas em forma de filme contra um governo injusto cujas políticas pouco mais fazem que destruir. Até este mais recente trabalho, a longa-metragem mais aclamada do cineasta tinha mesmo sido uma dissecação do militarismo nacional, fomentado pela liderança de Putin. “The Son” havia sido feito em resposta à tragédia pessoal, a morte de um familiar de Abaturov. “Paradise,” pelo contrário, provém de preocupações menos individuais, mais focadas no fado de um país gigantesco. Em certa medida, também reflete toda uma tragédia à escala global, a Natureza em rutura.

Falamos, pois claro, do flagelo das mudanças climáticas originadas no aquecimento global. Como em Portugal e outros territórios com vasta área florestal, essas consequências nefastas sentem-se principalmente no verão, quando vagas de calor extremo e incêndios sucessivos tornam paraísos pastorais em autênticos infernos. É certo que, nas ordens da Terra, o arder sempre foi parte de um ciclo onde devastação e renovação são duas faces da mesma moeda. Só que, na conjetura atual, o ritmo do fogo não dá tempo para qualquer renascer e o que queima não volta a crescer. Fica a paisagem reduzida a carvão, lençóis de cinza voando pelos céus, tão grandes que chegam ao Polo Norte.

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© Petit A Petit ProductionsP

Assim aconteceu em 2021, ano em que Abaturov levou as suas câmaras para o nordeste da Sibéria, para a aldeia Shologon no coração da taiga. Pensaríamos que tamanha calamidade suscitaria a intervenção estatal, mas o povo multiétnico da região tem de se desenvencilhar sozinho, tendo o território sido denominado como “zona de controlo.” Esse termo burocrático foi consagrado em lei há menos de uma década, quando Moscovo se desresponsabilizou dos fogos, pois o custo de os mitigar seria superior ao capital perdido na queima, mesmo que totalmente descontrolada. Efetivamente, a gente de Shologon foi abandonada, sacrificada perante as chamas.

Muita desta informação é fornecida por textos no princípio e fim do filme, apresentações formais e impessoais aos limiares de uma experiência muito mais lírica do que a passagem textual possa dar a entender.  Por muito distraído ou desapaixonado que o espetador possa ser, ninguém poderá ignorar a forma ousada como “Paradise” se revela em casamento de intenção e estética. De facto, começamos numa pintura em antítese ao inferno futuro, um quadro invernal dominado pela neve e pelas trevas da noite fria. O vazio salta logo à vista, um carro em dança de peão a única forma de vida discernível.

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Desta desolação noturna, a câmara partirá à descoberta de mais figuras, procurando alguma esperança ou quiçá um elemento humano em que ancorar este épico sobre a floresta em crise. Em jeito de simbolismo gritado, ser-nos-á mostrado o esforço de uma menina que tenta decorar um texto para peça escolar. Trata-se de uma encenação com bases folclóricas, remetendo para tempos em que a gente da Sibéria orientava a sua vida em torno da Natureza, atribuindo espírito e personalidade aos fenómenos e pontos geográficos. Muito se fala na montanha e na neve, fazem-se preces a entidades sagradas que talvez saberão como reunir os homens, como sarar feridas coletivas e travar o apocalipse.

Longe da escola e seu palco, na profundidade da floresta, deparamo-nos com a beleza de uma igreja de gelo e neve, criada em abóbada de árvores feitas brancas pela estação mais fria. Com os raios de sol doirados a trespassar templo feito sem mão humana, as sombras azuis contrastam com brilhos de fogo glacial. Através de alguma magia, Abaturov e seu diretor de fotografia Paul Guilhaume dão-nos a conhecer o esplendor da terra antes de nos fazer testemunhos da sua destruição. Assim que nos habituamos à paz dos meses álgidos, chega então altura de nos desamparar de novo. Vem o verão e vem a seca, a neve derretida para revelar solo ressequido.

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© Petit A Petit Productions

O sol já não é beijo gentil por cima do manto branco, mas um monstro abrasador. Lá longe, cortinas de fumo ascendem aos céus como um dragão alvo, um gigante de boca aberta pronto a devorar o mundo. É o fogo que se avizinha, um oceano de brasa viva em caminho gradual para Shologon. Sem se preocupar com a pessoa enquanto força singular, Abaturov traça as várias táticas da comunidade em grupos com diferentes meios e responsabilidades. No fim, são todos guerreiros contra o titã que sobre eles se abate, tentando por tudo atrasar o seu fim calamitoso. Corta-se a vegetação da tundra, queima-se o chão para criar limites, faz-se tudo o possível quando os meios necessários estão interditos por ordem moscovita.

“Paradise” é um filme político com título irónico e imagens tão majestosas que poderiam ser exibidas no Louvre. É uma celebração de heróis em frente ao fogo sem, no entanto, espelhar o maior monstro nessas labaredas. O grande vilão é quem está ausente, quem nada faz e condena com inação, um dedo apontado aos poderes estatais sem muito precisar de articular. O que fica é o poema sobre a paisagem mutante e as pessoas que nela tentam fazer a vida, gente que, um ano mais tarde, viria a tornar-se em carne para canhão. Afinal, são estas as comunidades empobrecidas da Sibéria a que Putin foi buscar muitos dos seus soldados rasos, recrutados em força contra a Ucrânia em missão imperialista. Esse post scriptum que “Paradise” não contém, deverá complicar o modo como muita gente se relaciona com a fita. Se isso irá condenar a obra ao esquecimento, não sabemos ainda. Algo é certo, todos deviam ver este paraíso a caminho da perdição.




Paradise, em análise
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Movie title: Рай

Date published: 24 de June de 2023

Director(s): Alexander Abaturov

Genre: Drama, 2022, 88 min.

  • Cláudio Alves - 80
  • José Vieira Mendes - 80
80

CONCLUSÃO:

Por negligência política e abandono total, uma comunidade vê-se sozinha na luta contra o armagedão flamejante. Um retrato da Sibéria em mutação sazonal, o Inverno prelúdio para a destruição estival, “Paradise” revela-nos um cinema com perspetiva ativista e expressão poética, interessado na possibilidade formalística desta batalha entre o Homem e os horrores por si criados. Tem ares de épico bíblico cruzado com minimalismo experimentais, um espetáculo audiovisual capaz de capturar a grandeza aterradora deste nosso mundo moribundo.

O MELHOR: A fotografia e suas cinzas no ar, céu pintado com carmesim, muros de fumo branco, teatros escondidos na escuridão da noite nevada. Paul Guilhaume é um mestre do cinema cujo trabalho merece muitas ovações de pé.

O PIOR: O lirismo na vertigem do abstrato desconstrói muito do tradicionalismo que a história heroica sugere. Isso torna o filme mais inacessível, ambíguo e fluido, sem conclusões fechadas. Tudo isso são mais-valias a nosso ver, mas vão incomodar muita gente. Também fica a ideia que a contemplação de Abaturov poderia ser mais ritmada – com somente 88 minutos, “Paradise” parece-nos demasiado longo mesmo assim.

CA

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