"Só Nós Dois" | © Outsider Films

Festa do Cinema Francês ’23 | Só Nós Dois, a Crítica

Em “Só Nós Dois,” também conhecido como “L’amour et les forêts,” Virginie Efira entrega-se a outro grande papel, sob a direção de Valérie Donzelli. Trata-se de um soberbo retrato de amor tóxico e abuso doméstico, em destaque nesta Festa do Cinema Francês – a decorrer até 31 de outubro por todo o país.

Para nos levar ao inferno, Valérie Donzelli tem que primeiro nos vender a ilusão de um paraíso que nunca foi. Adaptando um romance de Éric Reinhardt com Audrey Diwan como coargumentista, a realizadora francesa propõe-se a dissecar uma relação abusiva cuja génese parecia algo tirado de um sonho doce. Para o espetador desprevenido que queira ignorar uma moldura de confessionário, o destino final de “Só Nós Dois” pode ser surpresa. Afinal, o ponto de partida parece tão idílico. Não é um ‘twist’ à moda de Hollywood, mas uma representação honesta daquilo que é estar preso numa relação assim, felicidades passageiras tão importantes como a dor sem descrição.

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Contudo, nada disso significa que a honestidade absoluta há que vir de mãos dadas com uma estética realista e seca. Donzelli mantém-se fiel aos trejeitos estilizados que lhe deram fama em fitas como “Declaração de Guerra,” até prevendo espaço para um interlúdio musical vindo do nada. Pela sua mão, a história deste amor tóxico pinta-se em tons saturados, com a fotografia de Laurent Tangy na sugestão de um Rohmer com um toque de ácido, quiçá uma pátina de açúcar caramelizado por cima. Por outras palavras, “Só Nós Dois” seduz-nos com a sua beleza a partir do primeiro minuto, quando se foca nos afazeres de duas irmãs na costa francesa.

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© Outsider Films

Elas são gémeas na calada da meia-idade, Blanche e Rose, cujas personalidades afiguram opostos. Pelo menos, essa é a realidade quando as conhecemos, no rescaldo de mais um desgosto amoroso para Blanche, muito tristonha em contraste com a joie de vivre irreverente da irmã. Apesar das diferenças, elas são tão próximas como unha com carne, e é graças à influência de Rose, que a mulher deprimida se deixa arrastar para uma festa em casa de praia. Há promessas de um namorico arranjado, mas a emoção da noite leva à distração, deixando Blanche na solidão pública de quem se sente sem ninguém no meio da multidão. Aí aparece Grégoire.

Uma personagem do passado, ele surge como homem transformado e muito charmoso, sua investida amorosa um pouco forçada, quiçá na compensação de alguma falha secreta. Tangy ilumina este primeiro encontro em vermelho carnal, situando-nos na subjetividade da mulher que rapidamente se deixa arrebatar pelo pretendente. Em montagem meio impressionista, o filme leva-nos rapidamente desde essa primeira noite até ao matrimónio, com jogos de luz pelo meio para estabelecer como o tempo foge por entre os dedos das personagens. Só Rose parece ter dúvidas em relação ao noivo da irmã – a suspeita provar-se-á certeira.




Virginie Efira e Melvil Poupaud dão um fôlego intoxicante a estas passagens de amor a galope, mas a sua genialidade só se torna aparente quando os atores nos começam a revelar o lado insidioso da união entre Blanche e Grégoire. Gradualmente, ele vai isolando-a da família e dos amigos, chegando até a cortar os laços da esposa com a sua terra natal. Devido às supostas imposições do trabalho, ele terá que se mudar para Metz, do outro lado do país. Blanche vai atrás, dizendo adeus ao calor e ao mar em prol do frio e da floresta. A casa dos dois é uma beleza de privacidade negada e, em três tempos, lá vêm os filhos para lhes encher o espaço e as vidas.

Mas a espiral de isolamento continua, com o próprio emprego de Blanche enquanto professora de Francês tratado como alguma grave transgressão sobre a qual ela deve expiar. Mentiras constantes e humilhações retroativas dominam o dia-a-dia do casal, as culpas do infortúnio sempre postas sobre as costas dela, enquanto ele se pinta como vítima. O controlo sobre Blanche é constante, uma asfixia disfarçada pelos afetos extremados em jeito de ‘love bombing.’ Um momento arrepiante ocorre quando, ao ouvir um programa de rádio sobre abuso doméstico, Grégoire reconhece os seus comportamentos. A noite acaba com Blanche a reconfortá-lo apesar de tudo.

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© Outsider Films

No extremo do desespero, ela tenta uma transgressão real. Efira, Donzelli, e toda a equipa por detrás das câmaras contextualizam o comportamento além do adultério banal. Trata-se de uma tentativa de respirar quando a cabeça tem estado debaixo de água há anos. A desorientação do abuso é retratada em todo seu ignóbil poder, mas também na sua qualidade quotidiana, tanto que a liberação momentânea de uma tarde perdida é como um momento de necessária claridade. Quando ela volta a casa, cai o Carmo e a Trindade, com Grégoire atingindo níveis de crueldade sem comparação, sem possível perdão ou a mais vaga justificação.

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Apesar dos acessos de estilização, “Só Nós Dois” jamais tenta levar a situação das personagens além da realidade vivida por tantas pessoas mundo fora, presas em relações semelhantes. O melodrama mantém-se assente num patamar de reconhecimento a tombar para o visceral. Efira, essa deusa do cinema gálico, ancora tudo isto num papel duplo de cortar a respiração, fazendo com que o gesto final – um vislumbre para a câmara – se sinta milagreiro ao invés de cliché. Apesar de ter estreado fora de competição em Cannes, a obra de Donzelli mostra-se merecedora de secções superiores. Oxalá, na sua passagem por festivais e subsequente distribuição internacional, o filme arrecade o respeito que merece e os aplausos também. Em Portugal, “Só Nós Dois” chegará às salas nacionais pela mão da Outsider Films, com estreia marcada para 16 de novembro.

Só Nós Dois, a Crítica

Movie title: L'amour et les forêts

Date published: 18 de October de 2023

Director(s): Valérie Donzelli

Actor(s): Virginie Efira, Melvil Poupaud, Marie Rivière, Dominique Reymond, Virginie Ledoyen, Romane Bohringer, Nathalie Richard, Philippe Uchan, Guang Huo, Salif Cissé

Genre: Drama, 2023, 105 min.

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

“Só Nós Os Dois” é um retrato visceral do que é estar preso numa relação abusiva, seus prazeres passageiros e a asfixia psicológica que vem atrás. Virginie Efira, Melvil Poupaud e a grande Marie Rivière dão vida à trama, sempre na procura da honestidade máxima dentro de uma expressão cinematográfica tão dedicada ao realismo da emoção como à subjetividade das suas imagens e sons. Depois de alguns fracassos menores, Valérie Donzelli volta à grandeza de “Declaração de Guerra.”

O MELHOR: Virginie Efira em dose dupla, a fotografia belíssima, a música com que Gabriel Yared nos parte o coração.

O PIOR: O enquadramento da narrativa principal em torno da conversa entre advogada e sua cliente oferece necessário contexto, mas também nos parece dramaticamente inerte.

CA

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