"Fête de Famille" | © LEFFEST

LEFFEST ’19 | Fête de Famille, em análise

Catherine Deneuve comove em “Fête de Famille” de Cédric Kahn, uma tragicomédia doméstica que está em Competição no Lisbon & Sintra Film Festival.

Reuniões familiares são o tópico de muitas narrativas, quer sejam do pequeno, do grande ecrã ou mesmo do palco, da literatura. Há sempre passados turbulentos a corromper a experiência presente, ressentimentos antigos a envenenarem a felicidade do agora e o tipo de desconforto que vem com pessoas que nos conhecem melhor que nós mesmos. O resultado de tal premissa pode tantas vezes dar em drama como em comédia. Nada comprova isso mesmo que o mais recente filme de Cédric Kahn, onde um aniversário resvala numa tragédia que, por sua vez, se vai transmutando numa farsa francesa à moda antiga.

Indo buscar inspiração a obras tão variadas como “A Regra do Jogo” de Renoir e o metacinema das vanguardas modernas, Kahn concebe aqui um cocktail de tonalidades díspares e intriga absurda. Não se trata de uma proposta particularmente original, pelo menos quando a encaramos no contexto do cinema francês. Contudo, a convenção não é sinónima de mau cinema e há certamente muitos prazeres a ser descobertos no caos familiar de “Fête de Famille”. Para começar, os atores dão tudo o que têm, mesmo quando o guião lhes exige as mais estapafúrdicas proezas de ginástica sentimental.

fete de famille critica leffest
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A maravilhosa Catherine Deneuve é a âncora que mantém todo o drama centrado em credibilidade emocional. Os outros atores podem ofuscá-la, mas esta lenda viva faz até das mais comedidas reações autênticas sinfonias de pânico maternal e caloroso afeto. Ela dá vida à matriarca, Andréa, e é o seu aniversário que faz com que todos os filhos se reúnam na propriedade bucólica em que cresceram. Vincent, sua esposa e filhos são uma imagem de perfeição suburbana, enquanto Romain traz a sua namorada Rosita e representa um agente de caos no meio dos festejos.

Além da convidada inesperada, Romain também aparece com uma câmara e um tripé atrelados. Acontece que este excêntrico é um cineasta e planeia documentar os afazeres da própria família. Ninguém está muito confortável com a ideia, mas há maiores preocupações no horizonte que a presença voyeurística da câmara. Essa preocupação surge sob a forma de Claire, a irmã de Romain e Vincent. Há anos que ela se mudou para os EUA, abandonando a filha, Emma, com Andréa. No entanto, conflitos matrimoniais trouxeram-na de volta à pátria gálica e ao seio de uma família que ainda não está pronta para lhe perdoar os crimes do passado.

Emma é especialmente rancorosa contra a mãe ausente e é dela que provém muita da dor que sombreia a comédia do filme. Temos é que entender como, apesar dessa dor, esta obra é sempre uma farsa e é das lágrimas que nasce o mais eficaz e cruel dos humores. Claire é um poço sem fim de inseguranças e sua história de vida pode cheirar a tragédia, mas sabe a paródia. Parte desta alquimia dramatúrgica é produzida pela performance de Emmanuelle Bercot, cuja histeria é tão exasperante que se torna divertida de ver e troçar. “Fête de Famille” não é nenhum trabalho de cinema humanista, sendo que o que o eleva acima de tantas obras semelhantes é precisamente a antipatia que o realizador parece nutrir pelas figuras que criou.

A impiedosa abrasão com que Kahn aborda o argumento é o seu gesto mais interessante, pois, de resto, “Fête de Famille” é bastante prosaico. A fotografia é básica, preferindo ser inofensivamente atraente ao invés de algo mais esteticamente desafiante. Por seu lado, a montagem de Yann Dedet pode seguir modelos convencionais, mas sabe bem como afiar as arestas mais absurdas do texto e minar as reações das personagens em busca de humor. Uma sequência de teatro de sala de estar, um cliché deste tipo de cinema, é convertido numa montra para os dotes cómicos de Bercot devido à ironia patente no trabalho de Dedet.

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O melhor de tudo isto é que, ao contrário de muitas comédias francesas deste género, “Fête de Famille” é genuinamente engraçado. Kahn e o seu elenco, assim como os outros cineastas já mencionados, sabem como tornar o melodrama numa experiência de humor sem, no entanto, traírem a domesticidade dramática que a premissa inicial exige. Este equilíbrio é particularmente visível quando, perto do clímax, o realizador deixa que todo o aparato mostre rasgos de genuína feiura humana. Há racismo e gritaria, há preconceitos virulentos e o explodir de uma brincadeira cruel entre irmãos e irmãs. Gostaríamos de poder dizer que todos estes riscos acabam por tornar o filme num triunfo, mas quem arrisca nem sempre sucede na plenitude.

Já na conclusão desta festa de anos infernal, Kahn perde as rédeas do filme e deixa-se levar pelo gosto da reviravolta e do choque. Claire deixa de ser uma palhaça que chora e torna-se em algo verdadeiramente monstruoso. Romain também se transforma num excêntrico perigoso e até a pobre Andréa é vítima da antipatia do guião. Quando a loucura transborda e o cliché é transcendido, “Fête de Famille” assume-se como uma delícia caótica. O filme derrama sangue e faz doer, mata o riso e deixa a audiência perdida. É um gesto audaz, mas não é sustentado por tudo o que veio antes. Aplaudimos a audácia de Cédric Kahn, mesmo enquanto nos confessamos desiludidos com o produto final.

Fête de Famille, em análise
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Movie title: Fête de Famille

Date published: 17 de November de 2019

Director(s): Cédric Kahn

Actor(s): Catherine Deneuve, Emmanuelle Bercot, Cédric Kahn, Vincent Macaigne, Luàna Bajrami, Isabel Aimé González-Sola, Laetitia Colombani, Alain Arthur, Joshua Rosinet, Milan Hatala

Genre: Comédia, Drama, 2019, 101 min

  • Cláudio Alves - 60
  • José Vieira Mendes - 60
60

CONCLUSÃO:

“Fête de Famille” é uma farsa francesa com traços de melodrama e picos de tragédia metidos pelo meio. Cédric Kahn sabe dirigir atores, mas o seu balanço tonal nem sempre prima pela consistência. Catherine Deneuve tudo ancora com uma performance modesta e magistral em igual medida, enquanto Emmanuelle Bercot explode numa supernova de humor ácido e histeria sem estribeiras.

O MELHOR: Deneuve e Bercot, mais ou menos.

O PIOR: Bercot tanto é motivo de celebração como de crítica amarga. Quando ela quer fazer rir, é extraordinária, mas os seus devaneios mais sérios estão além das capacidades da atriz. Talvez seja culpa do guião, mas isso não justifica por completo os excessos da intérprete.

CA

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