2026, O Que Vamos Ver: O Cinema em Estado de Culpa
Entre mitos clássicos reanimados, sequelas em crise e um cinema cada vez mais político, 2026 desenha-se como um ano de confronto entre espectáculo e consciência, nostalgia e risco, indústria e autor. Um retrato pouco confortável de um mundo que vai entrar na sala escura. Eis os Melhores Filmes 2026.
O futuro chegou antes de fecharmos o balanço de 2025. Não pediu licença nem esperou que fechássemos as listas dos melhores filmes deste ano, que está prestes a findar. Entrou de rompante, enquanto ainda discutíamos prémios, consensos frágeis, injustiças dos festivais e o habitual ruído crítico que acompanha qualquer final de ano cinematográfico. 2026 apresenta-se com um calendário sobre-lotado, uma máquina promocional em permanente estado de excitação e uma pergunta que atravessa toda a indústria, os espectadores e a crítica, ainda que raramente formulada de forma explícita: que cinema é possível num mundo politicamente instável, socialmente exausto e emocionalmente saturado de imagens?
A resposta não é simples nem reconfortante. O cinema vai continuar, mas já não pode continuar como antes. O ano de 2026 surge como um ponto de inflexão simbólico: menos ilusão de estabilidade, menos conforto narrativo, mais confronto directo com o mundo real. Não será apenas um ano de estreias muito aguardadas, trailers “evento” e anúncios transmitidos em simultâneo para redes sociais e plataformas de streaming. Será o espelho de um cinema global em crise existencial permanente, dividido entre a nostalgia como estratégia de sobrevivência industrial e a urgência crescente de dizer algo que importe aos espectadores.
VÊ TRAILER DE “DUNE: PART THREE (DUNE MESSIAH)”
O regresso da épica: grandeza com consciência pesada
Hollywood em 2026 é marcada, em primeiro lugar, pelo modo épico, mas com uma consciência pesada difícil de disfarçar. A épica continua a ser a linguagem dominante, embora profundamente transformada. Já não é a épica da conquista ingénua ou do heroísmo puro; é uma épica auto-consciente, desconfiada dos seus próprios mitos, que olha para o poder com suspeita. O britânico Christopher Nolan chega com “The Odyssey” — a partir do clássico Homero — como quem constrói um monumento cinematográfico. Tudo é filmado em IMAX, tudo é físico, tudo é tratado com uma solenidade quase litúrgica. Matt Damon assume o papel de Ulisses, acompanhado por um elenco que parece um festival internacional condensado num único filme: Tom Holland, Zendaya, Anne Hathaway, Lupita Nyong’o, Robert Pattinson, Charlize Theron, Jon Bernthal, Benny Safdie, Elliot Page e Mia Goth.
Nolan promete animatrónicos em vez de CGI, corpos reais em cenários reais e uma experiência sensorial esmagadora. Mais do que contar uma história, filma a própria ideia de cinema como espectáculo total e como última barricada simbólica das salas numa era de consumo fragmentado. Também o canadiano Denis Villeneuve fecha a sua trilogia com “Dune: Part Three (Dune Messiah)”, aprofundando o lado mais desconfortável da saga. Timothée Chalamet regressa como Paul Atreides, agora assumidamente um líder messiânico e autoritário, acompanhado por Zendaya, Florence Pugh, Rebecca Ferguson, Josh Brolin, Jason Momoa e Anya Taylor-Joy. Aqui, o herói deixa definitivamente de o ser. Governa mal, manipula símbolos, instrumentaliza a fé e legitima a violência através do mito. Será um blockbuster raro, que recusa a fantasia do poder benigno.
VÊ TRAILER DE “THE WUTHERING HEIGHTS”
O passado como arma narrativa
O cinema de 2026 regressa ao passado não para tranquilizar, mas para incomodar. Os clássicos literários e os mitos fundadores são reanimados como instrumentos críticos, capazes de dialogar directamente com o presente. Emerald Fennell — a realizadora de “Saltburn” — revisita “Wuthering Heights” (O Monte dos Vendavais), com Jacob Elordi e Margot Robbie nos papéis centrais, embalados por uma banda sonora assinada por Charli XCX. O romance de Emily Brontë transforma-se num retrato cru de uma relação tóxica, violenta e emocionalmente predatória. O romantismo tradicional perde qualquer verniz redentor, dando lugar a uma leitura contemporânea de uma violência que sempre esteve lá, apenas disfarçada pela linguagem do amor trágico. Maggie Gyllenhaal leva ainda mais longe esta reapropriação com “The Bride” (A Noiva), uma reinvenção radical do universo de Frankenstein em forma de musical punk, ambientado nos anos 30. Christian Bale interpreta o monstro, Jessie Buckley dá vida à noiva ressuscitada, e o elenco inclui ainda Annette Bening, Penélope Cruz, Peter Sarsgaard e Jake Gyllenhaal. O horror deixa de residir no corpo disforme para se instalar nas estruturas de poder que criam, controlam e exploram o monstro. Greta Gerwig, depois de Barbie, regressa ao cinema popular com “Narnia: The Magician’s Nephew”, escolhendo deliberadamente o livro menos óbvio da saga. Emma Mackey, Daniel Craig, Meryl Streep e Carey Mulligan protagonizam uma história sobre criação, culpa e responsabilidade. Ao evitar a nostalgia directa, Gerwig transforma Nárnia num comentário contemporâneo sobre origem, poder e consequências morais.
Quando a política deixa de ser subtexto
Em 2026, a política já não se esconde atrás da metáfora. Assume-se como matéria central do cinema mainstream e de autor. Aaron Sorkin regressa ao universo das redes sociais com “The Social Reckoning”, uma continuação moral de “A Rede Social”. Jeremy Strong interpreta Mark Zuckerberg, acompanhado por Mikey Madison, Jeremy Allen White, Bill Burr e Wunmi Mosaku. O filme centra-se nos “Facebook Papers”, na manipulação de dados, no impacto das plataformas digitais sobre adolescentes e na corrosão lenta da democracia. Não há neutralidade nem glamour tecnológico, apenas um ajuste de contas tardio. Gus Van Sant regressa após sete anos de silêncio com “Dead Man’s Wire”, baseado num caso real de 1977. Bill Skarsgård interpreta Tony Kiritsis, o homem que manteve um refém ligado a uma espingarda em directo na televisão, num elenco que inclui Dacre Montgomery, Colman Domingo e Al Pacino. Entre o thriller clássico e a crítica mediática, o filme questiona quando é que a violência passou de tragédia a espectáculo.
O medo como linguagem dominante
O medo atravessa grande parte do cinema de 2026, seja em forma de terror, ficção científica ou distopia. Robert Eggers assina “Werwulf”, protagonizado por Aaron Taylor-Johnson, Lily-Rose Depp e Willem Dafoe: um mergulho medieval em superstição, violência ritual e paranoia colectiva. Ridley Scott regressa ao pós-apocalipse com “The Dog Stars”, com Jacob Elordi, Margaret Qualley e Josh Brolin, num mundo devastado por um vírus e por uma civilização que falhou repetidamente. Já “Project Hail Mary”, realizado por Phil Lord e Christopher Miller, coloca Ryan Gosling sozinho no espaço, sem memória, numa missão desesperada para salvar a Terra, com a alemã Sandra Hüller a integrar o elenco. Um blockbuster raro que aposta na melancolia, na empatia e na solidão como motores narrativos.
VÊ TRAILER DE “THE DEVIL WEARS PRADA 2”
Sequelas em crise existencial
As grandes sagas entram em 2026 a olhar-se ao espelho. “Avengers: Doomsday” tenta reanimar o MCU, trazendo Robert Downey Jr. de volta, agora como Doutor Doom, ao lado de Pedro Pascal e Vanessa Kirby. “Toy Story 5” reúne novamente as vozes de Tom Hanks e Tim Allen para interrogar o lugar dos brinquedos num mundo dominado por ecrãs. “The Devil Wears Prada 2” volta a juntar Meryl Streep, Anne Hathaway, Emily Blunt e Stanley Tucci para revisitar uma indústria editorial praticamente extinta. “Scream 7” insiste em prolongar um género que vive num equilíbrio frágil entre autoconsciência e exaustão.
O cinema independente como laboratório
Entre os grandes títulos, o cinema de autor continua a funcionar como espaço de experimentação e resistência. “Pillion”, de Harry Lighton, com Alexander Skarsgård e Harry Melling, transforma uma história BDSM numa reflexão íntima sobre poder e afecto. “I Love Boosters”, de Boots Riley, reúne Keke Palmer, Demi Moore e LaKeith Stanfield numa sátira feroz ao capitalismo de luxo. “The Drama”, com Zendaya e Robert Pattinson, aposta no segredo e na opacidade como dispositivos narrativos. O Festival de Sundance de 2026, que realiza a sua última edição em Park City, de 22 de Janeiro a 1 de Fevereiro, antes da mudança para Boulder, no Colorado, continua a simbolizar essa transformação do cinema independente em mainstream qualificado.No contexto também das estreias de cineastas-autores americanos e europeius, destacam-se três filmes que deverão dominar os melhores do ano de 2026: “Marty Supreme”, de Josh Safdie, sobre as peripécias de um famoso jogador de ténis de mesa, que coloca Timothée Chalamet como forte candidato ao Óscar de Melhor Actor; “Hamnet”, de Chloé Zhao, um drama histórico baseado no romance homónimo de Maggie O’Farrell, centrado na dor da perda do filho de William Shakespeare; e “Valor Sentimental”, do norueguês Joachim Trier (“A Pior Pessoa do Mundo”), um dos filmes mais belos e tocantes do ano (Grande Prémio do Festival de Cannes 2025) e já apontado como forte candidato ao Óscar de Melhor Filme Internacional e com fabulosa interpretações de Renate Reinsve, Inga Ibsdotter Lilleaas e o veterano Stellan Skarsgård. Entre os actores que se aventuram na realização, estreiam-se “A Grande Eleanor”, de Scarlett Johansson, apresentado no Tribeca Lisboa Festival, “A Cronologia da Água”, de Kristen Stewart, adaptação da autobiografia da nadadora olímpica Lidia Yuknavitch, e “Ainda Funciona?”, que marca o regresso de Bradley Cooper à realização, com Will Arnett e Laura Dern nos papéis principais. Juntam-se ainda algumas raridades como “Riefenstahl”, de Andres Veiel, um dos documentários mais rigorosos sobre a cineasta alemã Leni Riefenstahl (1902–2003) e o seu envolvimento com a propaganda nazi, bem como o restauro de “Drôles de Guerres”, de Jean-Luc Godard, a partir de materiais de um filme que o realizador nunca chegou a concluir.
VÊ TRAILER DE “VALOR SENTIMENTAL”
Um ano de confronto
Se 2026 tivesse de ser resumido numa frase, talvez fosse esta: o cinema deixou de fingir que o mundo está estável. O regresso aos mitos serve para falar do presente, a política ocupa o centro do ecrã, as cineastas reinventam géneros historicamente masculinos, as sequelas confrontam-se com a própria exaustão e o choque entre a indústria, os autores e as plataformas de streaming vai intensificar-se, sobretudo com a mais do que provável aquisição da Warner Bros. pela Netflix. Não será um ano confortável. Será um ano de confronto. E, num cinema tantas vezes acusado de irrelevância cultural, isso pode ser a melhor notícia possível, mesmo que aos espectadores custe regressar às salas.
JVM

