Pormenor da capa de Emily Alone

Florist, Emily Alone | em análise

Em Emily Alone, a vocalista dos Florist descobre aquele eu que antecede todas as relações que estabelece com o mundo. Na companhia do céu que os cobre ao dois.

Os Florist são um projecto colaborativo de Emily Sprague, Rick Spataro e Jonnie Baker, a que se juntou, mais tarde, o baterista Felix Walworth. Originada em Upstate New York e sediada em Brooklyn, desde 2013 que a banda compõe canções meditativas, de andamento suave e performance vocal sussurrada, a partir da fusão de guitarras folk com sintetizadores experimentais e amostras sonoras. Um veio que Emily Sprague autonomiza e explora a solo nos seus dois álbuns de música ambiente, Water Memory (2017) e Mount Vision (2018), recentemente reeditados pela RVNG. O segundo álbum dos Florist, If Blue Could Be Happiness, não só assistiu ao amadurecer e definir-se da sonoridade da banda como foi composto e gravado durante algumas das difíceis circunstâncias de vida de Sprague que estarão na origem do novo álbum Emily Alone, editado pela Double Double Whammy. A última faixa desse disco, “Red Bird”, foi escrita e gravada na véspera do dia em que a mãe de Sprague morreu inesperadamente, em Março de 2017.

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O título Emily Alone reúne em si dois aspectos fundamentais do álbum dos Florist, relacionados entre si. Por um lado, indica que se trata de “um álbum a solo no seio de uma banda”, assim produzido por força das circunstâncias. Perdida a mãe e terminada uma longa relação, Emily Sprague mudara-se de Nova Iorque para Los Angeles e não fora possível conjugar lugares e agenda com o resto da banda para compor e gravar o disco. Por outro lado, é a ideia-chave, o conceito sob estudo, a realidade experimentada e descrita ao longo de todas as canções. Nas palavras da cantautora à Sterogum, o álbum é sobre um certo “sentido do eu”. No esboroar do tecido de relações que oferecia contexto, significado e estabilidade à vida, Sprague explica que “somos a única pessoa que nunca nos deixará”: “Essa era uma das ideias principais destas canções. Queria explorar este sentido de solidão, e descobrir realmente o que há de forte nisso, o que há de belo nisso e criar dentro de mim a mesma estabilidade que retirara destas relações externas.”

FLORIST, EMILY ALONE | “SHADOW BLOOM”

Emily Sprague tem razão quando considera este disco uma criação sua enquanto membro dos Florist. Não há nenhum grande desvio da personalidade musical deste projecto e o álbum está bem longe dos trabalhos de música ambiente que a cantautora e produtora assinou com o próprio nome. Ao mesmo tempo, salientar por meio do título que a sua pessoa está na origem deste álbum e no centro do seu conteúdo dá conta de algumas pequenas mas relevantes e evidentes diferenças que percorrem todo o disco.

A guitarra, com os seus arpejos dedilhados ao de leve ou insistentemente, assume aqui um papel preponderante, ao contrário do que acontece nos Florist, onde partilha com os sintetizadores, em partes iguais, o protagonismo do instrumental. A voz e os versos de Emily Sprague soam, ao mesmo tempo, mais íntimos e mais decididos do que no seio das composições da banda, onde uma e outros flutuam etéreos e dispersos. O eco da voz e a reverberação da guitarra, sobre um fundo de suaves sintetizadores, toques de melódica e acentos de guitarra elétrica, criam uma atmosfera que interioriza as habituais, mas aqui mais maduras e pungentes, interrogações existenciais de Sprague. A morte da mãe, o fim de uma longa, aparentemente estável, relação amorosa e a migração de cidade, de um lado ao outro da América, transfiguraram-nas de devaneios ainda adolescentes numa ferida aberta a urgir uma resposta. Se a performance vocal continua tão ou mais sussurrada do que o costume, a seriedade das meditações que vão sendo tecidas nesta deambulação mental traz um peso, uma gravidade que torna tudo mais coeso, concentrado, resoluto. Mesmo na sua irresolução.

FLORIST, EMILY ALONE | “TIME IS A DARK FEELING”

A faixa de abertura quase homónima do álbum, “As Alone”, estabelece o tema daquela solidão que se tornará o caminho para uma maior percepção da própria existência, da presença inalienável de um eu que sofre e se questiona. Ao mesmo tempo é também óbvio, desde o início, que aperceber-se de existir não implica perceber o sentido desse existir. Tudo recai no mistério no preciso momento em que se torna objecto de indagação interior: “I walk and I read, I spend time in the sea/ And nothing brings clarity to what makes me me/ Except knowing that some kind of sadness is freed/ From the words and the sounds that I sing to myself”.

O convívio com a natureza circundante favorece a tomada de consciência de um eu que subsiste previamente a todas as relações humanas que estabelece, sobrevivendo por isso ao desmoronar-se do tecido familiar e social, ao contexto que lhe parecia dar significado. No instante em que a observa e dela se apercebe, o eu dá-se conta de si enquanto algo ou alguém que, no seio do mundo, dele toma consciência. Mas este algo ou alguém é puro enigma. E a tomada de consciência torna-se interrogação sobre a origem e o destino, sobre de onde se vem e para onde se vai, perguntas que vão irrompendo pelas várias canções de Emily Alone.

Se a natureza desencadeia esta indagação, não lhe parece oferecer contudo resposta inequívoca, fonte que é de sentimentos contraditórios: “Where did I come from/ And why do I feel so happy/ When I stare at the ocean?/ Then devastated/ When I stare at the ocean”. Afinal, a paisagem mais não faz do que reflectir o sujeito que a contempla, devolvendo-lhe o que estava já sempre dentro dele. Olhando para o oceano despido de quaisquer laços, vazio de toda a narrativa, o eu de Emily Sprague é uma viagem tão desbordada, tão sem vectores como a massa imensa e informe de água escura onde os reflexos de luz, vagos, se dispersam: “Where do you go/ When you just wanna go?/ Where do you go/ When you let it all go? […] Where do you go/ When you just go alone?”

FLORIST, EMILY ALONE | “M”

Talvez a natureza só não possa oferecer resposta porque quem a interroga, ou diante dela se interroga, não a deseja descobrir de qualquer maneira: “I don’t have the reasons why/ But it wouldn’t make anything right/ Do you even want to know the thing/ You spend your life trying to find?”. Já que, se olhada não como reflexo do eu mas como um outro, a natureza deixa de ser paisagem e torna-se companhia: “The world is hanging over me/ The glow keeps me company”. Talvez porque a existência de um universo fora e para lá dos estreitos e esfíngicos limites do eu estilhace a prisão do solipsismo cartesiano e pressuponha um mistério maior de que tudo depende e para que tudo abre. “Can I see heaven’s light/ With a magic spell and candlelight? […] “I believe in things we cannot see”. Pode a luz que este céu deita sobre a vida, a tão almejada clareza sobre si, a significação da existência ser alcançada? Uma coisa pelo menos sabe a voz que, solitária, nos fala do deserto, é que “I need someone to tell me yes”.

Florist, Emily Alone | em análise
Florist - Emily Alone (2019)

Name: Emily Alone

Author: Florist

Genre: Indie Folk, Lo-fi, Cantautoria

Date published: 26 de July de 2019

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  • Maria Pacheco de Amorim - 80
80

Um resumo

Emily Alone é um capítulo na história dos Florist, mas é também um aparte, um intervalo onde tudo se suspende para ouvirmos a voz de Emily Sprague a atrasar a vida demorando-se sobre a dor e a solidão. Documento de uma crise, testamento de uma alma, o terceiro álbum da banda de Upstate New York e Brooklyn é um legado musical precioso que não deixará de entrar em diálogo com todos os seus ouvintes. É irónico (embora não inédito) que o spin-off seja melhor que a série, mas será também interessante ver para onde levará no futuro a banda esta aventura pessoal de Sprague.

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