Fontaines D.C., Dogrel | em análise

Em Dogrel, as melodias agressivas do punk, tecidas de poesia, mostram que o género será sempre relevante. Basta que haja alguém com alguma coisa a dizer.

Comentando a música de FKA Twigs no seu álbum de estreia, J. R. Moores elogiou-lhe o andamento lento. Segundo o crítico da Drowned in Sound, o som do descontentamento juvenil está tradicionalmente ligado à aceleração vertiginosa dos ritmos, às saturadas ondas de distorção do punk, metal e hardcore. Mas, numa época em que tudo se metamorfoseia à velocidade da luz, a única maneira de se rebelar é atrasando o passo. A opinião está talvez na origem da tendência atual para privilegiar sonoridades delicadas e minimais, onde vozes melífluas se expandem por espaços imensos de silêncio instrumental. Aqueles géneros, ouvidos em demasia, são vistos como feras amansadas, sem aguilhão, tidos por irrelevantes e insípidos ao lado de um R&B cuja superficial acalmia sugere uma agressividade latente nas profundezas ou um pop cuja paródia cabotina dos estereótipos de imagem promete estilhaçar, com o seu excesso kitsch, qualquer discriminação que ainda permaneça de pé. Esta crença padece, contudo, de um equívoco. Julgar que o ruído tenha sido cultivado no rock como arma de contestação contra os costumes que se desejavam questionar e derrubar.

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Desde o manifesto futurista A Arte dos Ruídos, de Luigi Russolo, que se procurou fabricar uma musicalidade a partir do ruído e da sua manipulação para exprimir os espaços urbanos e a modernidade. O intuito não era tanto romper com o passado quanto abraçar o presente, realçando-lhe uma virtude. A energia e força que o caracterizavam, enquanto sinais de actividade e desejo, tornavam-se uma afirmação de vida a cultivar. E é, de facto, assim que os Fontaines D.C. descrevem o que fazem. “Penso que muita da nossa música me soa a autocarros, comboios e multidões de pessoas em certas ruas de Dublin,” explica o vocalista Grian Chatten. Um retrato da cidade que lateja tanto na sonoridade como no conteúdo lírico e emerge da compaixão dos seus criadores pelo lugar onde habitam e pelas pessoas com que convivem. É fácil, mas apressado, associar a música dos Fontaines D.C. a muito do punk e pós-punk recente que tem surgido nas Ilhas Britânicas, como o dos Shame ou IDLES. Embora haja um fio comum de clamor contra a injustiça social, Grian Chatten é rápido a desenterrar a raiz moral e existencial desta revolta. O que compõem não tem “necessariamente a ver com classe ou classismo, mas antes com a nauseante quantidade de sem abrigos que há nas ruas de Dublin”. O vocalista confessa-se profundamente afectado por isso, dizendo que “é muito difícil limitar-se a passar ao lado e não fazer nada”. Longe de reduzir tudo a uma questão política, Chatten intui uma doença metafísica de que todos enfermam, não interessa qual a sua classe social. A música e a poesia convertem-se num recurso para sair da perplexidade, para digerir e compreender o que vê.

É o não ir a lado nenhum da vida moderna nas suas mais variadas formas. Não importa qual a classe, estas são as coisas concretas que me chamaram a atenção e ficaram no álbum. Escrevo sobre as coisas que me afectam, e acontece terem a forma de pessoas com muito pouco ou nenhum dinheiro, problemas de bebida ou qualquer espécie de adição. […] Acontece-me demasiadas vezes para que o possa digerir com o que tenho, não consigo sair disto meditando, por isso tenho de escrever sobre o que vejo em coisas como essas – é a única maneira de o compreender.

DOGREL | “TOO REAL”

Os cinco membros dos Fontaines D.C., o vocalista Grian Chatten, os guitarristas Conor Curley e Carlos O’Connell, o baixista Conor Deegan e o baterista Tom Coll, conheceram-se enquanto estudavam música no Liberties College, em Dublin. Reuniu-os o apreço pela poesia, particularmente da Beat Generation, de W.B. Yeats, Walt Whitman e James Joyce, mas também de músicos como Shane MacGowan, dos Pogues. É frequente tecerem citações destes autores nas suas intervenções em entrevistas e chegaram mesmo a publicar um livro colectivo de poesia, Vroom, composto por um fluxo de consciência espontâneo, sem edição. Para um miúdo como Grian Chatten, “figura excêntrica e solitária, cheia de coisas dentro de si mas sem querer falar disso a ninguém”, a poesia revelou-se, no encontro com os amigos, uma possibilidade de retirar sentido e profundidade da vida.

Na linha da famosa antologia de contos sobre a capital irlandesa de James Joyce, Dubliners (1914), é o retrato literário da vida e drama citadinos que confere uma unidade de fundo ao álbum de estreia dos Fontaines D.C. Dogrel recebe o seu título do doggerel, um estilo de poesia burlesca em tempos popular na Irlanda, irregular em ritmo e rima, composta e declamada em pubs, infectada pela sua atmosfera e linguagem. Esta extracção do conteúdo lírico da vida popular de Dublin vai ao ponto de incluir fragmentos seus. O verso “the breeze in the night time will kill you stone dead, de “Roy’s Tune”, é uma frase que o autor da letra Conor Curley, enquanto andava pela rua, ouviu um homem dizer ao ser expulso de um bar. O intuito final de Dogrel é exprimir, em tentativas destinadas a ficar sempre aquém, um amor pela cidade e a vida que nela acontece: “I could lay you right down/ On these lively living streets/ And still you’d not know/ How the city heart beats” (“Television Screens”).

DOGREL | “ROY’S TUNE”

Por volta de 2014, uma banda de Dublin começou a granjear burburinho internacional graças à sua idiossincrática sonoridade noise-rock mesclada de pós-punk e ritmos tecno. Mas, uma vez lançado o álbum de estreia, Holding Hands With Jamie, em 2015, os Girl Band desapareceram do radar tão repentinamente como tinham surgido. A breve aventura não foi contudo em vão, se pensarmos na quantidade de bandas que emergiram na sua esteira e estão agora a chamar a atenção da crítica. Entre a suposta existência de uma cena pós-punk em Dublin e a subida à ribalta de bandas como os Shame ou os IDLES, é normal rotular a sonoridade dos Fontaines D.C. como mais um exemplo do ar dos tempos. A etiqueta não é descabida, por mais que os membros da banda a recusem. São inegáveis os traços herdados do pós-punk da década de 80. “Sha Sha Sha” tem o travo ska do punk dos Clash ou new wave dos Specials. Em “The Lotts” salienta-se uma linha de baixo com a melodia e timbre dos Cure da era da trilogia. Na “Chequeless Reckless” a voz de Chatten adquire a monotonia agressiva de Mark E. Smith, dos Fall. E até o regresso ao rock de garagem da década de 60, com “Liberty Belle”, relembra o mesmo movimento levado a cabo por aquele pub-rock britânico que precedeu e abriu os diques à revolução punk.

Ainda assim, é verdade que mais do que serem pós-punk, os Fontaines D.C. usam-no, como usam outros géneros, para comunicar o que desejam com cada canção em particular. “Televisions Screens” e “Hurricane Laughter” revelam a presença das versões de punk do novo milénio. Em várias canções surgem laivos do noise-rock metronómico dos Girl Band. “Too Real” é na verdade um tema de blues, com guitarra slide, mas irreconhecível no contexto do desempenho vocal silabado e agressivo ou da linha de baixo monótona e ribombante, soando mais a pós-hardcore do que a hard-rock. E o fecho do disco é assegurado por uma melodia retirada do fundo tradicional da música irlandesa, acusando a admiração dos Fontaines D.C. pelos Pogue e o seu punk celta. O álbum vai revelando uma livre mobilidade entre sonoridades, todas ultimamente sintetizadas num carisma inegável que muito deve à voz de Grian Chatten, a impor-se eletrizante no centro de cada canção, numa performance de contida força, distanciada ira, inexpressiva sinceridade e juventude poética. Na falta de polidez, a oscilar entre o melódico e o conversacional, é a palavra que sobressai, mostrando mais uma vez o quanto a coerência do álbum é assegurada pelo seu veio literário.

DOGREL | “BIG”

Dogrel abre com a afirmação insolente de que “Dublin in the rain is mine (…) My childhood was small/ but I’m gonna be big”. A nossa boa-fé inicial leva-nos a tomar o conto de “Big” como a típica edificante história de sucesso, mais ainda vinda da boca de uma banda que começa agora a levantar voo e entrar no horizonte do mundo. Não tarda, porém, a boa-fé converte-se na suspeita de que, por detrás da inchada declaração de intenções, haja uma mente sardónica, a esboçar a caricatura do corrente modo de ser irlandês. Sob ataque, está a mentalidade pragmática e economicista, cheia de desprezo pela cultura e indiferente à indigência, que tomou conta da Irlanda do novo milénio: “money is a sandpit of the soul”. Chatten lamenta-se de que não haja quem, liderando os restantes, eleve o olhar às coisas sem preço e perca o espírito na procura do rasteiro (“None can revolution lead with selfish needs aside/ As I climb, I’m about to make a lot of money”). Em várias entrevistas, a banda tem criticado as profundas alterações urbanas de que Dublin tem sido objecto, manifestando o desejo de explorar “a cultura moribunda que está a ser assassinada pela gentrificação”.

É esta vida pulsante de Dublin, em extinção, que a poesia de Dogrel retrata na sua autenticidade popular. As histórias sucedem-se, fragmentos de um drama que os olhos do artista descobrem nos cantos e intervalos escondidos da cidade, “under the lamplight’s faded career”: “Heads hit the streets, turn cheeks at stars/ There’s always tears”. Numa urbe em mudança, desaparecido o ideal, não há qualquer perspectiva de futuro para a juventude, aqueles cujos olhos não estão ainda mortos, um desalento que transparece nas dores e dificuldades do casal de “Roy’s Tune”: “It was the message I heard when the company said/ There is no warning, there’s no future”. A canção termina com um comovedor, tosco “Hey love/ Are you hanging on?”, cantado na voz cheia de viril compaixão de Chatten, com toda a rudeza de um sentimento verdadeiro.

A questão é se nós, ouvintes, aguentamos olhar de frente para este retrato ou se “is it too real for ya?” Nele, o ruído da cidade e o ruído dos que sofrem tornou-se o ruído da voz e das guitarras que clamam pela nossa atenção. Podemos virar a cara, esgueirando-nos para o espaço confortável onde nos protegemos da intempérie. Mas Grian Chatten não nos larga, no papel do artista que dá voz ao aguilhão da consciência, o único capaz de dar substância ao canto, seja ele qual for: “Well, is it liberating/ Just to be so fine?”

FONTAINES DC | “LIBERTY BELLE” AO VIVO

Fontaines D.C., Dogrel | em análise
Fontaines D.C. - Dogrel - Melhores Álbuns de 2019

Name: Dogrel

Author: Fontaines D.C.

Genre: Indie rock, punk, pós-punk, rock de garagem, irish trad, punk celta

Date published: 12 de April de 2019

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  • Maria Pacheco de Amorim - 85
  • Diogo Álvares Pereira - 85
85

Um resumo

Não sei se Dogrel é perfeito, talvez não. Mas sei que é um dos grandes álbuns de estreia de 2019. Cheio de canções que ficam connosco, uma vez desligado o som, a abarrotar de presença e promessa, Dogrel mostra ao mundo que os Fontaines D.C. são uma banda como se quer: um colectivo de personalidades indisfarçáveis, com uma mente literária e muita atitude. Só esta bastaria para nos mostrar que não lhes falta o que dizer. Não os ouvir é difícil, não os estimar é impossível. Punk mais punk não há.

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