"Get In" | © MOTELX

MOTELx ’19 | Get In, em análise

Get In”, ou “Furie”, é a mais recente façanha do realizador francês Olivier Abbou que se terá baseado em factos verídicos para formular esta problemática crítica de masculinidade tóxica e violência desmedida. O filme integra a competição de longas-metragens europeias do MOTELx.

Há algo triste e fascinante em ver um filme perder-se nos seus últimos minutos com tal efeito que tudo o que precedeu a conclusão perde qualidade em retrospetiva. Se “Get In” fosse um comboio, a maior parte da sua duração seria uma viagem por terrenos incertos e perigosos que, mesmo assim, é feita com surpreendente segurança e mestria. Perto do fim do caminho, o comboio acelera e parece que tudo vai terminar numa nota alta até que algo de errado acontece. Mesmo no momento da sua chegada, o comboio descarrila e explode de forma tão espetacular que toda a linha que já percorreu se torna efetivamente inoperacional.

Enfim, metáforas com locomotivas à parte, a segunda longa-metragem do cineasta francês Olivier Abbou é uma experiência de especial frustração. “Get In” tanto frustra pois está muito perto de ser um grande filme, não fossem um punhado de decisões desastrosas. A maior parte de tais reviravoltas malignas acontece no final, fazendo desta crítica um texto que necessariamente terá de revelar alguns spoilers. Perdoem-nos, mas assim terá que ser, ou então estamos condenados a ser tão vagos que acabamos por não dizer o que quer que seja de valor.

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O filme começa com uma situação que assusta pela sua monstruosa corriqueirice. Não se trata de um homicídio ou de um desaparecimento misterioso, ou nada que se pareça com um usual dilema de filme de terror. Paul, Chloé e Louis Diallo são uma família em regresso a casa depois de umas férias de verão passadas dentro de uma autocaravana. Quando chegam a casa, eles não conseguem abrir o portão da propriedade e, em poucos minutos, Paul está de joelhos e mãos no ar enquanto polícias o prendem por invadir aquela que é a sua própria residência.

Acontece que este professor de História e sua esposa deixaram a casa aos cuidados da babysitter do filho, que recentemente tinha perdido o apartamento. Ela e o namorado aproveitaram-se do casal mais abastado e fizeram-se proprietários da casa, mesmo que continuem a ser os Diallo a pagar a hipoteca. Os tribunais pouco ajudam e as reentrâncias complicadas das leis de arrendamentos levam a que os donos da casa sejam legalmente impedidos de lá entrar e tenham de tomar refúgio num parque de campismo próximo. É aí que Paul trava conhecimento com Mickey, um antigo namorado de Chloé, e os dados estão lançados para a inevitável catástrofe.

Tal como o seu título gálico indica, “Get In” é um retrato de fúria acumulada. Mais inquietante que todas as outras atrocidades que o filme nos mostra, temos uma sequência de odisseia inconclusiva pelos labirintos burocráticos da França contemporânea. Num gesto quase kafkiano, Paul vê-se incapaz de provar ser dono legítimo da sua casa. Como uma cena de sala de aula gritantemente explica, isto viola um dos direitos básicos do cidadão – o direito à propriedade. Face a tais irritações, não admira que Paul comece a sentir-se tentado por abordagens mais violentas, sendo que Mickey é uma espécie de Mefistófeles a aliciá-lo na direção de uma vida de agressões primordiais e masculinidade punitiva.

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A ideia que ser homem é ser um agressor e que emoção, diplomacia e passividade são defeitos femininos é uma consequência da sociedade sexista em que vivemos e sua cultura infeciosa. Estes são alguns dos paradigmas da masculinidade tóxica, o tema que aparentemente centraliza o argumento de “Get In” e a pesquisa concetual que Olivier Abbou faz com o filme. Infelizmente, o cineasta tem mais ambição que sagacidade e tenta sobrepor sobre esta crítica social com outras vertentes ainda mais complexas. Ele vai almejando por interseccionalidade, mas o que acaba por produzir é uma salganhada de contradições perniciosas.

Um detalhe importante sobre Paul é que ele é de etnia africana e, tanto a sua esposa como o resto do seu círculo social são caucasianos. Ao longo do filme, a falta de masculinidade convencional de Paul é percetivelmente associada a uma rejeição da sua etnia em prol de políticas de respeitabilidade. Como um aluno diz, ele é um Oreo, preto por fora, mas branco por dentro. O problema desta ligação é que depende de um estereótipo racista de masculinidade preta e leva a que estas duas faces da crítica social do filme se emaranhem e confundam.

Na mesma medida que o filme critica agressividade desmedida, parece também celebrar a assimilação cultural de Paul. No entanto, cenas individuais induzem o espectador a induzir exatamente o contrário. “Get In” conclui com uma extraordinária sequência de invasão domiciliar, numa noite em que Mickey e seus capangas atacam a casa dos Diallo e as duas famílias que disputam por ela. Há muito fogo e sangue, tentativas de violação e até uma explosão de gás. O que também há é um vilão demarcado por significantes sociais que denotam a vilificação de toda uma classe, assim como um clímax que não faz sentido nenhum.

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Se Abbou quer criticar os ideais tóxicos da masculinidade moderna, então não pode recompensar Paul por se render à brutalidade que passou todo um filme a rejeitar. Ser um assassino que salva a esposa e reclama o que é seu por direito através de meios violentos efetivamente resolve todos os problemas do protagonista. Até os seus dilemas matrimoniais e sexuais desaparecem num abrir e fechar de olhos. Talvez haja algo de humano nestas contradições, mas a narrativa do filme não sustenta estas conclusões e elas tornam o restante argumento numa construção defeituosa.

Atente-se que não estamos a criticar “Get In” por não corresponder aos valores que achamos justos. A obra de Olivier Abbou poderá muito bem ser criticada moralmente, mas o que aqui estamos a apontar é uma cataclísmica falha de estrutura narrativa e coerência concetual. A figura de Chloé, por exemplo, parece alterar-se com cada cena em que aparece, como se os cineastas a vissem como um mecanismo e não como uma personagem e é com ela que eles fazem alguns dos maiores erros. O que é trágico nisto tudo, é que, em termos de atuação e execução formal, “Get In” é estupendo. A fotografia de Laurent Tangy merece particulares aplausos, especialmente quando nos mostra composições com inquietantes vazios ou sequências inteiras filmadas com um só plano. É pena que o resto do projeto não esteja à mesma altura das suas cristalinas imagens.

Get In, em análise

Movie title: Furie

Date published: 14 de September de 2019

Director(s): Olivier Abbou

Actor(s): Adama Niane, Stéphane Caillard, Paul Hamy, Eddy Leduc, Hubert Delattre, Leila Amara, Marie Bourin, Christopher Fataki, Jacques Herlin, Matthieu Kacou

Genre: Thriller, Terror, 2019, 97 min

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO:

“Get In” é uma nobre tentativa de misturar os elementos formais do terror com uma acídica crítica social à moda francesa. Ideias de masculinidade tóxica, machismo, violência, justiça punitiva, racismo e assimilação cultural colidem umas com as outras, sendo que os cineastas não parecem seguros, ou coerentes, o suficiente para as unificar. Magníficas imagens, sequências excitantes e performances destemidas são traídas por um final odioso.

O MELHOR: O primor fotográfico do filme. Além disso, tirando um momento de exagerado dramatismo perto do fim, a montagem também é excelente.

O PIOR: A figura de Chloé e suas contradições, a misoginia latente a alguma da sua caracterização e o seu papel no horrendo final de “Get In”.

CA

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  1. Frederico Daniel 8 de Novembro de 2019

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