Godard, O Temível

Godard, O Temível, em análise

Godard, O Temível” conta a história do casamento de Jean-Luc Godard e Anna Wiazemsky durante dois anos politicamente conturbados dos anos 60. Esta obra de Michel Hazanavicius esteve em competição no Festival de Cannes do ano passado.

Depois de um vislumbre à carreira passada de Michel Hazanavicius, sobre a qual “O Artista” impõe uma inescapável sombra, seria fácil supor que o seu novo filme sobre Jean-Luc Godard fosse uma embevecida carta de amor ao enfant terrible da Nouvelle Vague. Surpresa das surpresas, “Godard, o Temível” está mais perto de um insulto regurgitado do que de um elogio apaixonado. Resta saber se as intenções de Hazanavicius estavam direcionadas nesse sentido ou se a natureza cáustica do filme se trata de um acidente de inadvertida ousadia crítica.

Pelo menos a nível textual, o filme parece nascer de um esforço vagamente antagónico para com Godard. Afinal, “Godard, o Temível” trata-se de uma adaptação de um livro autobiográfico de Anne Wiazemsky, a ex-mulher e ex-musa do realizador, um retrato da vida de Jean-Luc Godard desde o fim das filmagens de “A Chinesa” em 1967 até ao processo de criação coletiva de “O Vento de Leste” em 1969. Pelo meio, a narrativa aborda não só a deterioração do relacionamento entre Anne e Jean-Luc, como também se propõe a jocosamente examinar a reação do cineasta ao clima político da época, inclusive a sua confiança no espírito revolucionário do maio de 68.

Godard o temivel critica
“(…)está mais perto de um insulto regurgitado do que de um elogio apaixonado(…)”

Não que a sua ação politizada ou o seu discurso sejam minimamente coerentes ou proativos. De facto, se há algo com que “Godard, o Temível” parece disposto a gozar sem qualquer tipo de reticência é a vacuidade das pretensões ativistas do realizador. Segundo o filme, Jean-Luc Godard era o tipo de intelectual elitista que chama fascismo a tudo aquilo a que se opõe, mas depois é incapaz de oferecer uma definição do que é o fascismo. Ele é o tipo de ativista de esquerda que nunca na vida respirou o mesmo ar que um membro do dito proletariado, mas que se propõe a falar em seu nome. Ele é o tipo de figura que, no meio de uma manifestação, tenta começar um elaborado cântico gozão cheio de profanidade e nenhum apelo à ação, mas é abafado pelo simples e direto clamor de “Libertam os nossos camaradas.”

Em “Godard, o Temível”, Jean-Luc Godard é um cretino elitista, condescendente para com todos em seu redor, apocalipticamente pretensioso e num estado de irritação adolescente que nunca se parece dissipar. Até o seu discurso acerca de cinema revela essa mesma imaturidade. Quando “A Chinesa” é rejeitada por todo o mundo, Godard proclama que tem de aceitar a responsabilidade do fracasso, apesar de a seguir vir logo declarar que o tipo de cinema com atores, iluminação bem-feita e histórias morreu. O momento transpira o fedor da hipocrisia de um miúdo mimado que gosta de dizer-se maturo, mas é incapaz de manter a fachada durante mais de dois segundos. “Godard, o Temível” está pejado de tais cenas.

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Muitos críticos e adoradores fãs de Godard olharão para este retrato como uma ofensa imperdoável, mas o facto é que todas estas observações são justificadas pela filmografia e escrita Godard. O que se pode justamente criticar é o modo como Hazanavicius parece contente em explorar a superfície dos defeitos do cineasta lendário, mas raramente vai mais longe. A parte mais frustrante de todo o exercício é até a falta de cenas de filmagens e sobre cinema, sendo “Godard, o Temível” uma crítica ao seu protagonista que, no entanto, parece incapaz de fazer uma correlação entre a personalidade e atitude do cineasta e os seus filmes.

Note-se, por exemplo, o modo como a relação paternalista dele com a esposa 18 anos mais nova parece ecoar os romances mais famosos da sua oeuvre, algo que Hazanavicius nunca estabelece e que só alguém bem familiarizado com o cinema de Godard poderá concluir. Para se entender e desfrutar plenamente o modo e como Hazanavicius construiu e estruturou este filme é mesmo necessário ter-se um conhecimento quase enciclopédico do cinema de Godard dos anos 60. A nível textual as suas referências são muitas, mas a nível formal são ainda mais, sendo este uma pastiche tecnicamente fabulosa desses filmes. Só que a cópia desprovida do espírito experimentalista do original parece até um gesto que inadvertidamente expõe a vacuidade da estética desses triunfos de outrora.

godard o temivel critica
“(…)acaba por repetir alguns dos maiores problemas da filmografia do cineasta(…)”

Virar o estilo desses exercícios dos anos 60 para um docudrama biográfico do século XXI certamente é uma afronta ao idealismo de Godard, para quem o cinema é uma arte em constante reinvenção. Esse lado inventivo do cineasta é algo que Hazanavicius ignora por completo, e o que parece um desleixe a certa altura começa a revelar-se como uma tentativa de não confrontar a questão que é “Pode um homem asqueroso fazer arte com valor e importância?”. Para além do mais, a cópia estética trespassa mais amor que crítica, não obstante as suas consequências revisionistas, o que revela ainda mais a incoerência no centro de todo o projeto.

Com tudo isto dito, há que se ter em atenção como o filme não pertence somente a Godard. Anne é a coprotagonista e é o seu sofrimento, enquanto esposa, e a sua desilusão artística, enquanto atriz, que oferecem ao espectador o único elemento dramático do filme que funciona. Ao contrário de Louis Garrel, que se contenta em caricaturar Godard com mínima nuance, Stacy Martin traz multidimensionalidade a Anne Wiazemsky. Infelizmente, Martin está a lutar contra um argumento que não tem interesse na interioridade da personagem e que, começando a narrativa com o fim das filmagens de “A Chinesa”, nunca nos mostra por que razão Anne se apaixonou pelo realizador, o que faz da sua devoção inicial algo mais ou menos incompreensível.

Na sua exuberância formalista desnutrida de significado, sua incoerência ideológica e tratamento anémico da protagonista feminina, “Godard, o Temível” acaba por repetir alguns dos maiores problemas da filmografia do cineasta no seu centro. Junte-se a isso a imprecisão histórica da obra e este é um projeto que cai por terra sob o peso da sua própria ambição e indisciplina. Isto é pena, pois uma dissecação incisiva sobre a persona pública, artística e íntima de Jean-Luc Godard parece-nos um esforço com valor, especialmente num panorama cinéfilo onde a hipocrisia política, misoginia flagrante e outros tantos aspetos menos bons do seu trabalho são quase sempre ignorados em nome da sua contínua e muito reacionária veneração.

 

Godard, O Temível, em análise
Godard, o Temível

Movie title: Le Redoutable

Date published: 5 de June de 2018

Director(s): Michel Hazanavicius

Actor(s): Louis Garrel, Stacy Martin, Bérénice Bejo, Micha Lescot, Grégory Gadebois, Guido Caprino, Quentin Dolmaire

Genre: Drama, Comédia, Biografia, 2017, 107 min

  • Cláudio Alves - 55
  • José Vieira Mendes - 60
58

CONCLUSÃO

“Godard, o Temível”, é um insulto gozão ao legado de Godard que parece feito por alguém que ama os seus filmes e é por isso incapaz de o criticar enquanto cineasta. Tem potencial de grandeza, mas fica-se pela mediocridade frustrante.

O MELHOR: O modo como o filme cospe no legado de Godard é inspirador, mas sua falta de nuance fragiliza tal faceta. Por outro lado, o humor meta textual e em volta dos óculos escuros graduados de Godard tem a sua piada.

O PIOR: O modo como o filme apaga a vida de Anne fora da sua relação com Godard, mesmo a nível profissional. Afinal, esta foi uma atriz que começou a carreira com Bresson e que, durante o seu casamento com o protagonista titular deste filme, colaborou com Pasolini em dois dos filmes mais famosos desse autor, “Teorema” e “Pocilga”.

CA

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