LEFFEST ’16 | Harmonium, em análise

Um pacífico ambiente doméstico é perturbado por um intruso que vai transformar as suas vidas num inimaginável pesadelo, em Harmonium de Kôji Fukada.

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Apesar da sua estrutura claramente dividida em duas horas tonalmente antagónicas, o mais recente filme do japonês Kôji Fukada é, na sua mais venenosa essência, uma narrativa no classicista formato de três atos. A grande diferença que Harmonium apresenta a este mecanismo familiar é a excisão do primeiro ato e apagamento dos movimentos transitórios entre as fases da história. Na verdade, quando confrontados com o vazio da transição inexistente, a audiência é forçada a pescar pistas desse mesmo desenvolvimento nas personagens, todas elas queimadas pelo ardor da culpa, direta, indireta, imaginada ou justificada. Fica aqui um aviso inicial, Harmonium não é um filme agradável, por muito anódinas e inofensivas que pareçam as suas passagens iniciais.

Aliás, na sua abertura, este filme quase se assemelha a uma comédia doméstica ou então a uma premissa de terror inteligentemente esvaziada de qualquer perversão. Numa casa que funciona também como oficina de metalurgia, encontramos Toshio, sua mulher Akié e Hotaru, a filha dos dois. Apesar de alguma frieza nas interações do patriarca, e sua falta de fé numa casa dominada pelas práticas protestantes de Akié, esta é uma família em relativa paz e normalidade até que, um dia, lhes chega um inesperado visitante. Misterioso e vestido numa ameaçadoramente impecável camisa branca, Yasaka é um velho amigo de Toshio e, tendo acabado de sair da prisão, precisa de um emprego e telhado sobre a sua cabeça.

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Pela sua parte, Toshio parece disposto a oferecer todas as comodidades ao ex-presidiário e, de forma bastante reticente, Fukada vai-nos elucidando em relação ao passado que une os dois homens. Em tempos, tanto Yasaka como Toshio faziam parte da yakuza e ambos foram cúmplices num assassinato que acabou por levar Yasaka para trás das grades, enquanto, protegido pelo silêncio do colega, o outro homem pode formar uma família e afugentar os crimes tenebrosos da sua juventude. Assim, a calma inicialmente reconfortante de Yasaka transmuta-se no silêncio que precede um ataque à medida que a sua relação com Akié e Horatu vai florescendo a olhos vistos.

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À menina, o assassino dá lições do instrumento titular e forma uma cumplicidade amigável. Para a mãe, no entanto, a sua postura depressa se desenvolve de um confidente amistoso a um potencial amante e é no dia em que a sua tentativa bolha de desejo adúltero ameaça rebentar que cai a guilhotina que corta o filme em dois num ato de hedionda violência. Tal como o assassinato perpetrado pelos dois amigos no primeiro ato invisível, nunca vemos este evento, mas testemunhamos a toxicidade do seu rescaldo quando, sem quaisquer mordomias, Fukada dá um salto temporal vertiginoso e nos apresenta novamente à unidade familiar, oito anos depois do cataclismo.

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Se ainda era possível vislumbrar, na primeira metade do filme, as sombras de Rohmer e Naruse, na sua segunda e tortuosa hora esses benignos autores estão ausentes e substituídos pelo desespero existencial de Bergman e pelo veneno niilista de Haneke. Akié, pelo menos, tornou-se num perfeito caco humano, consumida por uma culpa tão monstruosa que a descarada referência a Lady Macbeth nem parece ser despropositada, enquanto o seu marido decidiu apropriar-se da tragédia que se abateu sobre a filha como uma espécie de justa punição e simultânea mercê para com os seus crimes.

Para atiçar ainda mais as achas desta fogueira de miserabilismo sem limites, Fukada acrescenta ao núcleo familiar a figura de um inocente aprendiz na oficina de Toshio. Este jovem, cuja passada vida familiar o tornou particularmente simpatético para com a situação presente desta casa, é o filho de Yasaka, que desconhece da sua existência. Tal como o seu pai, em tempos, se tornou num substituto para a figura patriarcal, este jovem torna-se uma espécie de filho substituto para o casal, sendo que o seu parentesco é, mesmo assim, uma constante fonte de culpa. Já foi mencionado, mas vale a pena repetir, que o tema da culpa é um mal que entra na corrente sanguínea do filme, por uma injeção offscreen, e depressa consome todo o organismo, levando-o a epítetos de desespero que até amedrontariam Iñárritu.

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De facto, Harmonium ganha tal energia e propulsão nesta segunda metade que é difícil caracterizar o seu efeito com outra palavra que não entretenimento. As reviravoltas e conclusões, fechadas e abertas, desta narrativa são um pesadelo anti-humanista, mas o facto é que a sua imprevisibilidade e loucura constituem um mórbido divertimento. Se seguirmos o exemplo da câmara e escolhermos uma abordagem fria, formalista e sanguineamente clinica face ao horror que se desenrola em frente aos nossos olhos, então as possibilidades de júbilo cinematográfico são quase infinitas, por muito desagradável que isso possa parecer.

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Se, no entanto, o espetador preferir manter um juízo crítico assente numa perspetiva e ideologia humanista, então Harmonium e o seu sufocante pesadelo de um final, apenas deixarão um gosto amargo na boca e mente. A nível técnico, há pouco a apontar como uma fragilidade e o elenco faz um trabalho estrondoso com o material que lhe é dado, especialmente o espectral Tadanobu Asano no papel de Yasaka e Mariko Tsutsui como Aiké, cuja mudança de espirito é tão grande que ela parece interpretar duas personagens diferentes. No entanto, o argumento fede de uma perspetiva hedionda sobre a natureza humana e sua recusa em vislumbrar qualquer tipo de luz causa fúria e indignação, especialmente quando a paralisia de uma personagem se torna num elemento de choque mecânico. De modo muito redutor, podemos mesmo dizer que a depuração do ser humano a uma máquina capaz de sofrer e chocar parece ser o final triunfo de Harmonium nos seus derradeiros minutos.

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O MELHOR: A prestação de Mariko Tsutsui, seus dolorosos silêncios, lancinantes olhares, e a fúria existencial que emerge ocasionalmente à superfície da sua figura e é de uma intensidade tal que a narrativa treme sob sua pressão.

O PIOR: Os últimos 15 minutos de absurdo misantrópico tão miseráveis que o filme parece estar a formar um argumento para a formação de um (relativamente) novo subgénero do cinema dramático, misery porn.



Título Original:
Fuchi ni tatsu
Realizador: Kôji Fukada
Elenco:
Mariko Tsutsui, Tadanobu Asano, Kanji Furutachi, Momone Shinokawa

LEFFEST | Drama, Thriller | 2016 | 118 min

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