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Heartstopper, primeira temporada em análise

“Heartstopper”, o novo romance adolescente da Netflix, estreou na plataforma a 22 de abril de 2022. Passado um mês foi anunciada a renovação para a segunda e terceira temporada, num voto de confiança raro por parte do gigante de streaming. 

[NOTA: Este artigo contém vários spoilers ligeiros sobre “Heartstopper” e o universo dos livros de Alice Oseman]

DE ONDE SURGE O UNIVERSO DE HEARTSTOPPER?

alice oseman shot
©Alice Oseman, autora dos romances gráficos /criadora da série

Alice Oseman, ilustradora e escritora britânica de 27 anos de idade, autora de seis livros e quatro novelas gráficas, conseguiu o seu primeiro acordo de publicação aos 17 anos. O seu romance de estreia, “Solitaire”, um livro de literatura YA (Young Adult / Literatura Juvenil) narra a vida de uma adolescente, Victoria ‘Tori’ Spring ( interpretada por Jenny Walser na versão da Netflix), à medida que esta procura lidar com os seus relacionamentos pessoais e a sua saúde mental. No livro, é-nos apresentado, como personagem secundária, o seu irmão mais novo – Charlie Spring. Nesta história, é-nos também introduzido o namorado de Charlie – o jogador de rugby Nick Nelson.

Com um universo de livros infantojuvenis profundamente relacionados entre si, Charlie viria a reaparecer como co-protagonista nas populares novelas gráficas “Heartstopper”, com os quatro primeiros volumes lançados (quase) anualmente a partir de 2018 e com um volume final a ser publicado em 2023. Antes da publicação oficial desta narrativa, “Heartstopper” foi também um webcomic, lançado de forma gratuita nas plataformas de Oseman. Aliás, a história completa continua a estar disponível (e atualizada), por exemplo, no Tumblr da autora.

“Heartstopper” chega assim à adaptação televisiva já com uma legião considerável de fãs e é felizmente capaz de entregar uma adaptação não só fiel às novelas gráficas, mas capacitada com as ferramentas para expandir este mundo com linhas narrativas bastante simples e dar-lhe ainda mais corpo e humanidade. Como criadora, argumentista e produtora executiva da série encontramos Alice Oseman, a criadora deste mundo e das suas personagens. Antes de mais, uma nota de reconhecimento à Netflix e à produtora See-Saw Films (“O Poder do Cão”, “O Discurso do Rei”, “Top of the Lake”), por esta demanda no sentido de garantir o controlo por parte da autora. Este elemento é, sem dúvida, um dos mais preponderantes para a criação de um conteúdo televisivo de qualidade.

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QUAL O ENREDO DESTA NOVA SÉRIE NETFLIX? 

kit connor e joe locke
“Heartstopper” é descrito como ideal para os fãs de “Love,Simon”, mas é na realidade um universo televisivo e literário com muito mais alma e profundidade (sem descrédito para o importante papel desse filme como primeira grande rom-com de estúdio protagonizada por um adolescente gay) |©Netflix

Situada temporalmente, na linha do mundo de Oseman, no ano que antecede os eventos de “Solitaire”, a primeira temporada da série de televisão “Heartstopper” tem por base os dois primeiros volumes da novela gráfica. Logo nos primeiros momentos da série, ao som da bombástica banda-sonora, a cantora sul-africana/londrina “Baby Queen” acolhe-nos com o seu memorável “Want Me”, de 2020 – um de seus quatro temas ‘anti-pop bubble gum’ que tão bem musicam e complementam as sensibilidades da série. Neste caso, a música é sobre uma fixação adolescente pela atriz Jodie Comer (“Killing Eve”). Já agora, o indie-pop/alternativo edificante e animado que pauta toda a série é um gigante ponto a favor e por isso se recomenda a playlist oficial no Spotify.

Ultrapassado este aparte acerca da notável banda-sonora que nos convida a conhecer, desde o primeiro segundo, o mundo de cores quentes de “Heartstopper”, eis que surge Charlie Spring na cena inicial (Joe Locke, um total estreante). Com recurso ao split screen e a elementos de animação, elementos que regressarão uma e outra vez para evocar permanentemente o mundo da novela gráfica, encontramos o nosso co-protagonista a entrar nos corredores da sua escola e, passando pouco tempo, surge o meet cute (primeiro contacto) com Nick Nelson (Kit Connor, um adolescente mais experiente nas lides da representação, com créditos em “Rocketman” ou “His Dark Materials”)

Charlie é um adolescente simpático mas tímido, cuja confiança foi já bastante afetada ao ser “tirado do armário” à força, quando a sua homossexualidade foi revelada a toda a gente na escola para rapazes (muito à inglesa) onde estuda. Como consequência do bullying, Charlie é reservado e pede muitas vezes desculpa – inseguro em relação à sua posição na escola e junto dos seus pares. Já Nick Nelson, um rapaz um ano mais velho que se torna o seu colega de mesa na sala de estudo, é expansivo e sorridente. Nick é o “rei do rugby” lá do sítio, um miúdo popular, para lá de afável e sem problemas de integração.

tao elle isaac rapaz conhece rapaz
O grupo de amigos Tao, Elle e Isac é essencial para o apoio emocional do co-protagonista Charlie |©Netflix

Depressa Charlie se vê encantado pela personalidade fervilhante e positiva de Nick e, contra as advertências dos seus amigos – Tao, Elle e Isaac – que estão certos da heterossexualidade  de Nick, aproxima-se do colega. O que se segue é uma das mais românticas e francas abordagens a um primeiro amor, tão positiva e repleta de luz que é capaz de deixar todos os que vêm – do adolescente para quem o conteúdo foi pensado até aos seus pais – mergulhados em sentimentos de enternecimento puro. Acima de tudo, “Heartstopper” é uma série adolescente com falta de antagonismos, drogas e festas decadentes ou verdadeiras desgraças – e que lufada de ar fresco depois do pesadelo estilizado de “Euphoria“. De longe, assemelha-se muito mais à experiência de adolescência que trago na memória – ver filmes com os amigos, ir à praia, comer batidos e guardar uma visão esperançosa do futuro por escrever que nos esperaria.

O DIABO ESTÁ NOS PORMENORES EM HEARTSTOPPER

Kit Connor como Nick Nelson em heartstopper
O azul, roxo e rosa nunca abandonam Nick Nelson (Kit Connor) em momentos narrativos centrais | ©Netflix

“Heartstopper”  – em toda a sua simplicidade de enredo  – é belo, positivo, fotografado e filmado com um cuidado intenso para que toda a coesão estética contribua para a criação de um verdadeiro teenage dream queer. Os tons pastel e os azuis brilhantes, com pequenos apontamentos neon e muita bissexual lightning (o uso da combinação de rosa, roxo e azul para representar personagens bissexuais, como defendido pelo produtor Patrick Walters como ferramenta ligada à alegria e celebração presentes na série) assim desenham o ambiente quente e convidativo. Os dois protagonistas foram maravilhosamente escolhidos, com Joe Locke a transportar a fragilidade e luta interior de Charlie em cada palavra e gesto e Kit Connor a personificar com todo o cuidado não só a energia positiva do seu Nick, como também toda a jornada de coming out (descoberta de orientação sexual) importantíssima da sua personagem. Cada olhar, cada toque, é para lá de credível, estando o romance puro e duro muito no centro da história.

Mas esta é uma série adolescente que não se limita a encantar – educa também (não estivesse até a novela gráfica entre os livros sugeridos do Plano Nacional de Leitura, num passo a louvar no sentido da representatividade LGBTQIA+). A história de Nick e Charlie e de todos os seus amigos é uma jornada que reflete sobre aceitação, amor e amizade. É arriscado dizer que a série é até pedagógica, mas não absurdo. Uma das cenas mais francas desenrola-se entre a personagem Nick e a sua mãe, Sarah.

Olivia Colman como Sarah Nelson

É com a grande generosidade de espírito que a caracteriza que Olivia Colman (“O Pai”, “A Favorita”) tirou tempo da sua agenda ocupada de protagonista de grandes produções para desempenhar este pequeno papel secundário em “Heartstopper”. Reza a lenda que a atriz chorou (na realidade) ao gravar a dita cena íntima entre mãe e filho, por se ter comovido com o material. Mais um testemunho ao efeito da celebração positiva de aceitação que este mundo desenha. Todos os pais e todas as mães, de miúdos queer (ou não), deveriam ser o tipo de mãe que é aqui idealizada – paciente, sempre pronta a ouvir, apoiar e não julgar. Sarah Nelson é um barómetro de maternidade e ter Olivia Colman a interpretá-la é um dos muitos pontos altos da série (agora e certamente no seu futuro já anunciado).

A REPRESENTAÇÃO IMPORTA E É ESSENCIAL 

heartstopper primeira temporada em análise
A imagem real e a animação estão sempre em perfeita harmonia |©Netflix

“Heartstopper” festeja a queerness em todas as suas formas, colocando uma luz positiva em várias identidades de género e orientações sexuais, num conteúdo perfeito para a Geração Z (e que a tem conquistado) mas que também muito oferece a quem, em gerações anteriores, não se viu representado no pequeno e grande ecrã – Elle, uma das amigas de Charlie, que joga um adorável jogo de “gato e rato” romântico com Tao (William Gao), é uma jovem que há pouco passou por uma transição de género e que ainda mantém, bem frescos, alguns dos momentos mais desafiantes. A sua história tem ainda muito por onde ser explorada, mas oferece aqui uma visão que promete encorajar muitos outros jovens em situações semelhantes. Como recorda a atriz Yasmin Finney, ainda existe pouca presença de adolescente trans nas produções do Reino Unido (como é o caso de “Heartstopper”) e uma falta de representação destas personagens que exclua a depressão e dismorfia corporal. Com Elle, apenas há lugar para o mais positivo, sem nunca deixar de lado as suas lutas e vitórias.

Depois temos Darcy (Kizzy Edgell) e Tara (Corinna Brown), um casal da escola para raparigas frequentada por Elle, também elas, à semelhança da personagem de Finney, removidas do seu papel extremamente secundário nos romances gráficos para um maior protagonismo nesta série de 4 horas (que passam num ápice). Assistimos à sua jornada e provações à medida que assumem a relação perante os colegas e o mundo complicado das redes sociais, sempre com uma nota de encorajamento subjacente.

Ao longo da série, até os momentos mais repetitivos – como as constantes picardias entre Charlie e o seu melhor amigo Tao – não deixam de ilustrar na perfeição o que é ser adolescente e procurar incessantemente a aceitação e valorização por parte dos seus pares. Para Alice Oseman, é essencial transmitir uma história que contemple importantes problemas que assolam os adolescentes, sem nunca reduzir a luz e felicidade que emanam de “Heartstopper“. Nas palavras da autora, esse equilíbrio é o mais importante.

Nick and Charlie heartstopper
Um momento tão simples quanto uma brincadeira na neve torna-se idílico em “Heartstopper” |©Netflix

 

Depois de conseguir muita promoção através do seu invejável rating de 100% no Rotten Tomatoes, e de alcançar a renovação logo para duas temporadas adicionais, “Heartstopper” ameaça tornar-se um dos conteúdos originais Netflix mais acarinhados dos últimos tempos. Para quem tenha interesse, os romances gráficos deixam a nota do que podemos esperar nas próximas temporadas: uma abordagem honesta, detalhada e não romantizada acerca de distúrbios alimentares na adolescência, a luta contra a homofobia perpetuada pelo irmão mais velho de Nick e ainda uma viagem a Paris repleta de divertimento mas que começa também a transição de “Heartstopper” para temas mais sombrio e sensíveis, ligados à saúde mental.

“Heartstopper” regressará à Netflix, em princípio algures no decurso do primeiro semestre de 2023. Até lá, para os fãs desta nova narrativa adolescente, há um mundo literário YA a explorar! 

TRAILER | PRIMEIRA TEMPORADA DE HEARTSTOPPER NA NETFLIX

Heartstopper, primeira temporada em análise
Heartstopper poster

Name: Heartstopper

Description: Rapaz conhece rapaz, os dois tornam-se amigos e acabam por se apaixonar. Quando o meigo Charlie e o fã de rugby Nick se conhecem na escola secundária, depressa se apercebem de que a sua improvável amizade começa a transformar-se em romance. Charlie, Nick e o seu círculo de amigos vão enfrentar o desafio das suas vidas, que os vai levar numa viagem de autodescoberta e aceitação, apoiando-se mutuamente e aprendendo a serem eles mesmos.

Author: Maggie Silva

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  • Maggie Silva - 95
  • Emanuel Candeias - 90
93

CONCLUSÃO

“Heartstopper” é um romance adolescente luminoso, inclusivo, criado com muita paixão e respeito pelo seu material de origem – o qual se vê expandido e repleto de novas possibilidades empolgantes. O seu alvo pode ser o público adolescente, mas a bela narrativa tem muito a oferecer a qualquer espectador.

Pros

  • A série explora o bullying com um pouco mais de intensidade do que o romance gráfico – tornando personagens como Harry (Cormac Hyde-Corrin) ainda mais insuportáveis. Este contraste é importante para a transmissão daquela que deve ser a contra-reação;
  • A belíssima construção, de raíz, de uma relação romântica, as quais tantas vezes passam por atalhos que não nos permitem construir uma real conexão emocional. Empatia é o que não falta enquanto vemos “Heartstopper”;
  • A coesão imagética, da fotografia à realização, com o espírito do romance gráfico a ser sempre recordado e elevado;
  • A banda-sonora que pede para ser ouvida uma e outra vez e que tão bem ilustra as emoções dos protagonistas;
  • Olivia Colman como o exemplo do que uma mãe deve ser;

Cons

  • A personagem Imogene (Rhea Norwood) foi  adicionada para acrescentar tensão dramática – quase ausente no livro – à série. Será que precisávamos mesmo deste acrescento?
  • Tao tornou-se também bem mais implicativo, quando transposto do texto para a imagem em movimento. Todavia, até as suas birras mais cansativas não deixam de representar na perfeição a mistura de sentimentos exagerados que assolou (ou assola) todos os que já foram (ou são) adolescentes;
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