Eduard Fernández e Greta Fernández em "La hija de un ladrón" (2019) © Oberon cinematogràfica

Atlàntida Film Fest 2020 | La hija de un ladrón, em análise

O Atlàntida Film Fest 2020 apresenta “La hija de un ladrón” um dos filmes mais importantes do realismo espanhol do último ano.

O maior festival de cinema online, o Atlàntida Film Fest, decorre pela terceira vez na plataforma de streaming e VoD FILMIN Portugal, e a Magazine.HD teve oportunidade de assistir ao filme “La hija de un ladrón” (também conhecido pelo seu título em inglês “A Thief’s Daughter”), que já havia passado pela 7ª edição do festival Olhares sobre o Mediterrâneo, que decorreu em novembro.

Esta obra, que marca a estreia de Belén Funes nas longas-metragens e, ao mesmo tempo, serve de remake / sequência à sua curta-metragem “Sara a la Fuga”, de 2015, é um mergulho interessante nas vidas dos novos órfãos, nas novas individualidades desamparadas da Europa em que vivemos. A propósito, o filme reenvia diretamente ao cinema do mais intenso realismo social, que apesar de ser um pilar fundamental do cinema espanhol (ou cinema catalão em língua castelhana), não é a associação primeira que os mais jovens espectadores fazem às cinematografias do nosso país vizinho.

filmes na tv
La hija de un ladrón / A Thief’s Daughter © Oberón Cinematográfica

A trama de “La hija de un ladrón” leva-nos imediatamente à vida de Sara, uma jovem com garra, apesar da realidade inóspita que atravessa. Sara é uma mãe solteira que vive numa casa social partilhada, cujo pai da criança parece não estar assim tão preocupado com as suas responsabilidades. Além disso, o seu irmão mais novo vive num orfanato, de onde foge várias vezes. Acresce ainda a dificuldade de Sara em encontrar um trabalho estável. Toda a fragilidade desta personagem feminina (e feminista) é sentida desde os primeiros minutos quando observámos cuidadosamente as suas lides domésticas. Além disso, quando a câmara a contempla de costas, vemos que usa um aparelho auditivo. É evidente como a protagonista de “La hija de un ladrón” é vulnerável quer em termos de sentidos quer em termos de sentimentos.

Como se não bastasse, quando visita um centro de emprego, observa atentamente um homem e a sua reação imediata é fugir daquele local. Até que o mesmo homem vai disparatado atrás dela e grita o seu nome. Depois descobriremos que o desconhecido é afinal o seu pai Manuel (Eduard Fernández), um ladrão recentemente saído da cadeia, que abandonou por definitivo os seus filhos.

Greta Fernandez
Greta Fernandez em “La hija de un ladrón” © Oberon cinematogràfica

Aos poucos será-nos revelada a vida que Manuel leva, como revendedor de eletrodomésticos e de todo o tipo de sucata. A primeira conversa que pai e filha têm é bastante tensa e só há espaço para poucas palavras (e para trincar um bocadillo de pan). Tudo decorre depois de vários meses ou anos afastados um do outro, dentro num bar, sem ser um reencontro afável, de beijos e abraços intermináveis. A sequência é pesada justamente porque somos transportados para a mente de Sara e para o facto dela não entender como o seu pai pode estar fora da prisão.

Não havendo qualquer possibilidade de reconciliação, “La hija de un ladrón” confirma-se única e exclusivamente como drama sobre uma jovem decidida, que já sofreu bastante e não quer perdoar o seu pai. O próprio reage agressivamente quando Sara tenta lutar pela custódia do tão negligenciado irmão mais novo. Em todos os acontecimentos da sua rotina, Sara aparece sempre bastante atormentada pela figura paterna. Ela não pode viver tranquilamente, não pode prevalecer ao vazio com aquele fantasma do passado agora presente.

La hija de un ladrón

Os infortúnios que sucedem à protagonista de “La hija de un ladrón” não são um completo acaso e têm um lado realista, uma vez que Bélen Funes, no final de 2013, trabalhou numa prisão masculina. Durante esse período de contacto direto com reclusos, conheceu um homem que lhe explicou que a sua filha de 17 anos vivia num centro de acolhimento para menores e que os serviços sociais passaram a tomar conta da situação. Ao fazer 18 anos, a jovem deixaria de ter direito à proteção e ficaria sem lar, mas não tinha qualquer relação com o pai porque odiava-o. Foram as conversas com este homem, que permitiram a Funes estabelecer um argumento sobre as fragilidades e as inseguranças de Sara e Manuel.

Esta proposta tão bem-vinda do Atlàntida Film Fest traz inclusive um duplo jogo de realismo, uma vez que Greta Fernández e Eduard Fernández são, na realidade, pai e filha. Só eles conseguiam criar os atributos de uma maneira tão pura e, permitir as respetivas nuances psicológicas das suas personagens. Esta forma de paternidade fragmentada, entre Manuel e Sara, estende-se para outras leituras sobre os laços entre pais e filhos. Temos a maternidade inocente de Sara com o seu bebé, a maternidade carinhosa que se estende de Sara para com o seu irmão Martín (Tomás Martín) e temos ainda uma maternidade entre Sara e a bebé da amiga com quem partilha casa. Aparentemente a maternidade / paternidade só pode ser vivida intensamente do lado feminino, porque nem Manuel, nem o pai do bebé de Sara conseguem ser capazes de tamanho amor.

Mas afinal como poderíamos definir a maternidade e a paternidade? Serão estes conceitos fechados? A câmara de Bélen Funes como autêntica sombra de Sara, abre assim espaço para o debate, mas curiosamente sem nunca julgar a sua protagonista, nomeadamente pelo facto de ter sido mãe tão jovem.

Trailer de “La hija de un ladrón”

La hija de un ladrón” é quase uma proposta principiante dardenniana ou loachiana, num contexto espanhol de crise, crise essa económica, crise social e, obviamente, crise dos valores familiares. Belén Funes dão-nos a ver os fragmentos do dia a dia de uma jovem de 22 anos e mergulha-nos no seu meio e na forma como tenta sobreviver às situações que lhe vão surgindo. A Sara de Greta Fernández é uma jovem de poucos sorrisos, a quem sucedem uma série de coisas, que parecem não ter muita importância, mas que vão sendo subtilmente absorvidas pelo seu subconsciente, e que lhe irão afetar o decurso da sua vida. A visão de Bélen Funes passa essencialmente por mostrar uma jovem que afinal de contas sempre esteve um pouco desorientada, mas que sempre conseguiu dar a volta por cima.

Aqui não há o cinema explosivo e extravagante de cineastas espanhóis como Pedro Almodóvar, onde o realismo é substituído para uma visão melodramática e kitsch dos sentimentos. O cinema de Bélen Funes é um cinema introspectivo, do silêncio, do sentir profundo, de alguma forma do sabor amargo que os desafios da nossa vida vão deixando. Não há como não fazer associações ao cinema de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne e em particular a “Rosetta” (1999) que retratava a vida difícil de uma jovem de 17 anos que vive numa caravana com a sua mãe alcóolica e cujo única ambição é encontrar um trabalho digno. Ou até ao filme “A Criança” (2005), sobre o casal Bruno e Sonia que tenta encontrar uma forma de sobreviver à paternidade e aos custos que lhe estão inerentes. 

estreia de “La hija de un ladrón” no Atlàntida Film Fest disponível na FILMIN Portugal é uma maneira importante de contemplarmos um cinema espanhol que muitas vezes não tem o foco que merece. Um cinema angustiante que foge dos grandes centros urbanos e que destaca os rostos espanhóis  marginalizados para os bairros mais degradantes.

Sem relevar demasiado, “La hija de un ladrón” oferece ainda um final dramático, com emoções à flor da pele que tanto faltava neste ano. É precisamente nesse momento que iremos perceber a humildade e a pureza de Sara, uma mulher que sobrevive às lutas do presente, e que não quer que o seu irmão passe pelo mesmo que passou. Uma mulher que contrariamente ao pai criminoso defini-se como uma “pessoa normal”. Mas então o que é isto de ser normal? Não sabemos ao certo, mas é essa análise introspectiva que Sara faz de si mesma. Talvez porque consegue amar, mas do que os demais. Talvez por ser demasiado boa para um mundo que a isola e que lhe dá sempre chapadas. Enfim, são de alguma maneira as questões levantadas por Bélen Funes que lhe acabaram por valer o Goya para Melhor Estreia em Realização.

Belén Funes nos Prémios Goya 2020

Para além de “La hija de un ladrón” podes conheceres outros filmes do Atlàntida Film Fest disponíveis na FILMIN Portugal (clica aqui)

La hija de un ladrón, em análise
La hija de un ladrón poster

Movie title: La hija de un ladrón

Movie description: Sara esteve sozinha toda a sua vida. Tem 22 anos, um bebé e quer formar uma família com o irmão mais novo e o pai do filho. O seu próprio pai, Manuel, decide voltar às suas vidas depois de anos de ausência e a sua libertação da prisão. Sara sabe que ele é o principal obstáculo perante os seus planos e toma uma decisão difícil: distanciar-se do próprio pai.

Country: Espanha

Duration: 97'

Director(s): Belén Funes

Actor(s): Greta Fernández, Àlex Monner, Tomás Martín, Adela Silvestre, Frank Feys e Eduard Fernández

Genre: Drama

  • Virgílio Jesus - 80
80

Summary

La hija de un ladrón é uma história realista e sincera sobre os novos órfãos, sobre os jovens desamparados, deixados sozinhos num mundo cada vez mais ausente de sentimentos afetivos, e que só provoca dores insuportáveis. É o cinema social de Ken Loach e dos irmãos Dardenne realizado por uma mulher e protagonizado por uma mulher.

Pros

A jovem Greta Fernández oferece aqui um salto importante para uma grande carreira cinematográfica.

Cons

Apesar da sequência final ser a mais impactante e emocionante para o espectador, não deixa de haver uma certa falta de esperança e positividade para o futuro da protagonista.

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