Iceage, Beyondless | em análise

Em Beyondless são as fronteiras do pós-punk dos Iceage que se estendem e esbatem, enquanto todo o mundo se converte no ácido palco de Chicago, o musical.

Elias Bender Rønnenfelt tem tudo para não ser levado a sério. Periclitando no palco e à frente das câmaras, respondendo em lacónicos e arrastados monossílabos, regozijando-se em versos do seu inelutável pecado (não por acaso Richard Hell se lembrou de Baudelaire), num canto cujo andamento e inflexões derrapam e hesitam entre Nick Cave, Robert Smith e Julian Casablancas, o jovem dinamarquês parece querer pendurar no seu cabide todos os casacos (demasiado largos) que vão do poeta maldito ao músico rock debochado, ou simplesmente perdido. Tudo nele, particularmente no contexto do rosto ingénuo e da banda impassível, parece fabricado e em demasia. E, no entanto, em todo este excessivo aparato há qualquer coisa de genuíno, de inseparável do conteúdo comunicado pela obra de arte que são os Iceage e a sua música. É tudo encarnado e representado, mas só porque se acredita no papel a desempenhar. Torna-se impossível não o aceitar nos próprios termos, impossível resistir à defensiva dádiva, que aí se aninha, de si e do desejo desavergonhado de uma vida para lá da vida.

Iceage - Beyondless
Elias Bender Rønnenfelt (vocalista), Johan Surrballe Wieth (guitarrista), Dan Kjær Nielsen (baterista) e Jakob Tvilling Pless (baixista)

Numa paisagem musical onde as bandas vão progressivamente rareando (que um cantautor multi-instrumentalista acompanhado de músicos em digressão não conta), os Iceage são uma benesse. Dinamarqueses de Copenhaga, amigos e todos à volta de 17 anos, formaram os Iceage em 2008. New Brigade, agressivo, atmosférico e pouco polido, revelava bem a adesão incondicional da banda ao pós-punk e ao hardcore, sem pruridos de, em pleno 2011, soar a um álbum que tivesse sido lançado nos subterrâneos da década de 80. Atraiu a atenção de muitos e os Iceage assinaram com a Matador.

Os dois registos seguintes, You’re Nothing (2013) e Plowing Into the Field of Love (2014), viram os Iceage experimentar com a sua sonoridade, acrescentando teclados ominosos, nebulosas de agressiva distorção e guitarras ziguezagueantes, quase melódicas. O andamento da voz de Elias Rønnenfelt foi-se atrasando, muitas vezes a contracorrente de um fundo instrumental mais saturado e célere (pelo menos em várias das linhas melódicas individuais da textura). Mesmo se podia muito bem gritar a todo o vapor, recordando e retomando num ápice as raízes punk da banda. Num e noutro caso começou a ser habitual aquela silabada expiração das entranhas até à falta de fôlego, aliada a um canto cada vez mais maleável, que caracteriza hoje em dia o vocalista dos Iceage.

BEYONDLESS | “CATCH IT”

Em Beyondless, este experimentalismo continua mas emerge agora mais deliberado e sistemático. São integradas ideias anteriores que, de tentativas avulsas, se convertem em traços estruturantes do novo álbum, em função da imagem coerente que este, mais ou menos conscientemente, procura comunicar. Os Iceage já tinham usado metais em “Glassy Eyed, Dormant and Veiled” ou “Forever”, mas em Beyondless não só o trompete, o saxofone e trombone fazem parte da textura do álbum como contribuem para a imagem shakespeariana do mundo inteiro como um palco. Em “Showtime”, os metais, sempre alusivos ao jazz e ao mundo do espectáculo que com ele surgiu, dominam no que é uma canção de punk vaudeville sobre a idolatria e destruição da fama. O violino que, em “Forever”, tocado com o minimalismo de Steve Reich, servia apenas para rimar com guitarras metálicas à Keith Levene e intensificar a sombria atmosfera pós-punk, reaparece ubiquamente em Beyondless para ajudar a tecer, juntamente com os metais, o tom épico e eufórico da mentira universal de que todo o homem é cúmplice.

Na realidade, contudo, é a própria sonoridade dos Iceage que, desenvolvendo um traço seu em benefício do sentido global do álbum, o transforma no equivalente auditivo de Chicago, o musical. Os Iceage sempre revelaram uma certa habilidade em mimetizar traços de identidades sonoras alheias. Aqui esta capacidade camaleónica é hipertrofiada, com o instrumental a encarnar papéis distintos em cada canção e a estender ilimitadamente, em diferentes direcções, tema após tema, o pós-punk e hardcore originais. “Under the Sun”, com a sua guitarra acústica, brinca com a nossa memória do grunge dos Pearl Jam. “The Day the Music Dies” arranca como a “All Day and All of the Night” dos Kinks e a “Catch It” podia muito bem ser um cover hardcore da “Venus in Furs”, dos Velvet Underground. “Thieves Like Us” é ragtime para o século XXI e “Take It All” e “Beyondless” são duas invejáveis incursões, uma mais delicada, a outra agressiva, no campo do shoegaze.

BEYONDLESS | “THE DAY THE MUSIC DIES”

O teor sombrio do conteúdo lírico transforma em humor negro a expansividade épica do instrumental. Nos momentos mais circenses de Chicago, a encenação sumptuosa e as cores saturadas inflamam a máscara impudente sob a qual se esconde a podridão do crime. Assim também, em Beyondless, a densa e eufórica textura assinala, num excesso que se torna atroz, a prodigalidade com que os homens se entregam ao mal e nele se regozijam. Em “Hurrah” são os traficantes de armas e os senhores da guerra que desmascaram e glorificam o instinto de predador, começando por dar por inevitável o que depois convertem em dever. Não são só eles, contudo, mas todos nós a invocar a Quinta Emenda, a recusarmo-nos a confessar os nossos crimes e a reincidir impenitentes a coberto de teorias e justificações. “Hush, as I spill my wayward theories” canta gutural Elias Rønnenfelt, enquanto dá voz aos ladrões deste mundo.

BEYONDLESS | “UNDER THE SUN”

Beyondless seria apenas um protesto político, uma acusação puritana lançada por quem se arrogaria, sabe-se lá porquê, de não merecer as pedras que atira, se Elias Rønnenfelt não se colocasse no coração desta humanidade decaída: “The coordinates are off track/ Makes one want to file a restraining order/ On humanity or myself.” É ele quem se entrega a uma “anesthetic liaison” que, em vez de amor, traz a morte. A culpa não é só de Eva, porque diz-lhe este Adão que “if you think I am that pillar which you needed/ Believe me, dearest, it ain’t me.” O mal reina por todo o lado, a começar pelas próprias fibras, tão omnipresente que arranca das entranhas o grito de sempre: “Lord, do you need a savior/ Have you lost the steering wheel again?”

Ainda assim, o ideal existe, nas bordas fugidias, sempre vislumbradas mas nunca alcançadas, da experiência de queda permanente: “But should you ask me/ for those truest of loves/ I’d have to set you free”. À mentira pelagiana de pensar que a salvação esteja nas nossas mãos só se pode responder: “How can one kill an impulsion/ When it’s still kicking and breathing?/ Forces are a cut above the will of the self”. Como poeta maldito, Elias sabe que o mal não se vence, mas pode apenas ser aceite como a humilhante estrada para o bem: “Anything grown under the sun/ Or subterranean slums/ If it brings me closer to God/ I’ll go there at any cost.” Quem se atreveria a não o levar a sério?

Iceage, Beyondless | em análise
Iceage - Beyondless

Name: Beyondless

Author: Iceage

Genre: Pós-punk, Pós-hardcore, Noise-rock, Fusão Jazz

Date published: 4 de May de 2018

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  • Maria Pacheco de Amorim - 87
  • Rui Ribeiro - 86
87

Um resumo

Em Beyondless, o ímpeto criativo e a energia intrépida dos Iceage beneficiam de um propósito mais claro e do poder da contenção. Menos sinuoso, divagante, espraiado de que os anteriores registos, Beyondless constrói uma imagem coerente e poderosa do mundo tal como Elias Rønnenfelt o vê. Saliente na mistura, a voz contrasta com algumas das linhas melódicas mais eufóricas da textura, só para rimar com a sonoridade global, no seu andamento vagaroso, imponente e pesado. Comentário sardónico sobre o lado mais obscuro da humanidade própria e alheia, Beyondless não deixa, contudo, de entreabrir a porta mais estreita, na expectativa de que uma mão dela saia e se nos estenda.

Incontornáveis: “Hurrah”, “Catch It”, “Take It All”, “Beyondless”

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