IndieLisboa | Alice T

16º IndieLisboa | Alice T., em análise

Alice T.”de Radu Muntean é um drama romeno que, no ano passado, conquistou o prémio de Melhor Atriz em Locarno. Agora, o filme chega a Portugal dentro da Secção Silvestre do 16º IndieLisboa.

Apesar de ter realizado filmes tão aclamados como “Terça, Depois do Natal”, Radu Muntean é um dos nomes menos conhecidos do Novo Cinema Romeno. É certo que os seus trabalhos exemplificarem perfeitamente os maiores alicerces estéticos desse movimento, mas é difícil negar os limites do cineasta. Há uma certa falta de ambição temática ou complexidade dramatúrgica na filmografia de Muntean que o separa de outros cineastas seus colegas e compatriotas. Não obstante essas fragilidades, há aspetos em que Muntean é um mestre assumido. O trabalho de direção de atores, por exemplo, é um clarividente talento do realizador.

Em “Alice T.”, isso é óbvio desde o primeiro instante, quando o espectador é convidado a examinar um plano geral no meio do qual se destaca a figura de uma adolescente. O seu rosto é emoldurado por uma nuvem de cabelos ruivos e tanto a postura como a voz transbordam confiança obstinada e a agressividade de um animal feroz, sempre pronto a atacar. Esta é a Alice do título que, aos 16 anos, se encontra inesperadamente grávida. Com economia e brevidade, Muntean mostra-nos, com estas cenas iniciais, quem esta jovem é e adverte-nos a não nos deixarmos iludir pela potencial vulnerabilidade da sua situação.

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Enquanto desafio para uma atriz, Alice é um papel formidável. No entanto, há sempre uma barreira entre ela e o espetador, como uma janela de vidro texturado que distorce e esconde.

Alice é interpretada por Andra Guti, uma rapariga que o realizador encontrou através de um casting que chegou a reunir mais de 800 candidatas. Só esse facto prova a astúcia do cineasta em relação a atores pois, como o prémio conquistado em Locarno indica, Guti é miraculosa no papel. Seguindo a boa tradição do Novo Cinema Romeno, Muntean orienta os atores na direção de um estilo de naturalismo absoluto, cheio de gestos abortados e fragmentos verbais. Pelo que lhe compete, Guti corresponde sem mácula às exigências desta abordagem, ao mesmo tempo que emprega alguma ambiguidade expressiva para fazer de Alice alguém tão volátil como inescrutável.

Tal dinâmica nunca é mais impossível de ignorar que nas cenas entre a protagonista e a principal vítima dos seus tormentos, a mãe adotiva. Bogdana é uma mulher divorciada que não consegue entender a filha e muito menos controlá-la. A primeira vez que as vemos juntas é numa elaborada cena, onde Muntean excisa qualquer tipo de montagem em prol de uma observação prolongada das duas mulheres em conflito no campo de batalha doméstico. O ar reverbera com a tensão entre mãe e filha e há quase uma ameaça implícita de violência a tingir as provocações de Alice para com a figura materna. Felizmente, a única fatalidade da altercação é um telemóvel.

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Mihaela Sirbu é uma veterana do cinema de Muntean e é com ela que Guti assim partilha as suas melhores cenas. Enquanto Guti brilha pelo magnetismo animal e pela parede que coloca entre a interioridade da personagem e o espectador, Sirbu excele através de uma série de escolhas quase diametralmente opostas à da atriz juvenil. A sua Bogdana é uma criação de constante modulação tonal, estando Sirbu sempre a telegrafar as negociações não verbalizadas entre a figura materna e as várias presenças antagónicas que se manifestam ao longo da narrativa, com especial destaque, é claro, para Alice que, melhor do que ninguém, sabe exatamente quais são os pontos fracos da mulher mais velha.

Em suma, “Alice T.” é um espetáculo do mais alto gabarito para quem aprecia bom trabalho de interpretação, especialmente dentro do contexto de uma abordagem naturalista. No entanto, bons atores e extraordinárias prestações não fazem um filme e muito menos indicam qualquer tipo de qualidade textual. Nesses parâmetros, as limitações de Muntean são incontornáveis, a começar pela construção e caracterização da personagem principal no argumento. Por um lado, a ambiguidade psicológica de Alice possibilita um desafio exemplar para os atores. Por outro, a alienação resultante destas escolhas faz com que Alice se torne num monstro unidimensional.

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Três gerações de mães e filhas, unidas pelo dilema da mulher mais jovem.

Ao longo do filme, vemos como esta adolescente é uma narcisista e mentirosa patológica, incapaz de interagir com quem quer que seja sem cair em jogos de manipulação emocional. A gravidez traz-lhe dilemas, é evidente, mas, do ponto de vista do espectador, esses ditos dilemas são mais uma arma a usar para conquistar a compaixão de forças de autoridade do que uma realidade tangível e com consequências pesadas para a vida adolescente. Se Muntean se mostra mais interessado em desenterrar a possível nuance das motivações de Alice, talvez a dinâmica entre mãe e filha não fosse tão facilmente reduzida a um binário de agressor e vítima.

Pontualmente, “Alice T.” permite-nos ver alguma variação nas interações entre as duas mulheres. Aquando de uma ida às compras e, mais tarde, uma festa de família, Alice e Bogdana revelam uma cumplicidade que contrasta radicalmente com o antagonismo presente nas suas outras interações. Nesses instantes, “Alice T.” sugere uma dimensão mais complexa neste retrato de amor maternal e agressão filial. No entanto, tais cenas são breves e escassas, estando sempre desprivilegiadas em relação às explosões mais hostis da adolescente grávida. Também os poucos momentos em que Alice contradiz a sua fachada monstruosa são sempre ofuscados, a não ser quando Muntean os usa como mecanismos de choque para pontuar a estrutura indefinida do filme. O choque e o suspense nos filmes deste autor tendem sempre a esmagar as facetas mais complicadas das narrativas. Já assim foi em “Un etaj mai jos” de 2015 e assim se repete em “Alice T.”.

Alice T., em análise
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Movie title: Alice T.

Date published: 9 de May de 2019

Director(s): Radu Muntean

Actor(s): Andrea Guti, Mihaela Sirbu, Cristine Hambaseanu, Ela Ionescu, Teodor Corban, Bogdan Dumitrache, Alina Berzunteanu, Serban Pavlu, Maria Popistasu, Alexandrina Halic, Viorel Comanici

Genre: Drama, 2018, 105 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

“Alice T.” é uma montra para um elenco excecional a dar tudo o que tem para trazer uma série de personagens complicadas ao grande ecrã. Infelizmente, para além desta faceta interpretativa, o filme é muito limitado. O virtuosismo formal do realizador está em evidência, especialmente no que diz respeito ao uso de planos sequência, mas não há nenhuma escolha particularmente inspirada que eleve a obra acima dos problemas resultantes do argumento.

O MELHOR: O trabalho das duas atrizes principais, especialmente Sirbu.

O PIOR: Além dos problemas de argumento que já referimos bastante nesta análise, convém referir como a perspetiva fria e putativamente objetiva com que Muntean nem sempre beneficia o seu trabalho. Aqui, ele aplica isto a um tema polémico de abortos, filhos adotivos e gravidez na adolescência, acabando por, inadvertidamente, abrir as portas a uma leitura extremamente moralista da história e das personagens, não obstante a sua especificidade.

CA

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