"O Sangue" | © Midas Filmes

IndieLisboa ’21 | O Sangue, em análise

Para contextualizar a estreia do documentário “Diálogo de Sombras”, sobre o cinema de Pedro Costa, o IndieLisboa programou a primeira longa-metragem desse autor português. “O Sangue” estreou em 1989, representou Portugal nos Óscares, e marcou o início da carreira de um dos nossos melhores cineastas.

Pesquisar as origens de um artista, seus primeiros passos no caminho da criação, pode ser uma experiência curiosa. Pedro Costa tem um dos percursos mais interessantes na História do Cinema Português contemporâneo, sendo que podemos traçar uma evolução bem linear na sua filmografia. Depois de filmar “A Casa de Lava” em Cabo Verde, o realizador levou cartas dos seus figurantes ao bairro lisboeta das Fontainhas e aí veio a apaixonar-se pelo local, suas pessoas, sua luz. “Ossos” marcou a sua primeira tentativa de capturar as Fontainhas em cinema, mas veio-lhe à língua o sabor da falsidade, da mentira em celuloide.

Rodar essa fita com atores profissionais e toda a parafernália vulgar do cinema narrativo evidenciou quanto o método não era condutor a uma cristalização do real. Apesar do fulgor social que deflagrou em Portugal, “Ossos” é uma obra transitória, uma prova de desonestidade que viria a ser repudiada pelos seguintes filmes que Costa fez nas Fontainhas. “No Quarto da Vanda” encontrou o cineasta a explorar novo tipo de realismo, com atores não-profissionais a interpretar-se a si mesmos e toda uma estética minimalista. Depois vieram as fitas com Ventura e a progressiva imersão numa espécie de realismo Barroco.

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© Midas Filmes

Apesar de o chiaroscuro fotográfico de “O Sangue” o poder assemelhar a “Juventude em Marcha” ou “Vitalina Varela”, esta é claramente a obra de um jovem ainda a descobrir-se. Não se quer com isto dizer que se trata de um fracasso. É impossível considerar este poema audiovisual sem denotar valor, nem que seja puro virtuosismo técnico. A questão, quando visto retrospetivamente, é que não parece um filme de Pedro Costa. Mais claramente, parece o tipo de filme que o realizador viria a repudiar com seus trabalhos futuros. Inebriado em romantismos, o trabalho tende a pecar pela rapsódia do estilo. Por outro lado, é esse sentido de cinema imaturo que lhe dá vitalidade.

Em termos narrativos, esta é a história de dois irmãos, Vicente e Nino, que vivem num ambiente ruinoso, algures nos arredores de uma Lisboa imaginada. A mãe há muito que não está presente e, um dia, seu pai também desaparece. As ausências paternas não são novidade, mas, desta vez, ele não volta. Confrontando-se com a possível morte do patriarca, os jovens escondem a verdade do resto do mundo. O segredo vem iluminar uma história de pecado geracional, heranças de violência e crueldade que passam de pai para filho num ciclo vicioso, sem fim no horizonte. Um tio misterioso vem separar os rapazes e o desabrochar do romance desperta novas possibilidades sentimentais.

“O Sangue” é um filme de segredos sussurrados e engolidos, silêncios que pesam sobre os ombros das personagens e da audiência. Contudo, não é um filme que se deixe estrangular pela promessa do segredo guardado. A impossibilidade de expressão direta explode das personagens, infetando e transmutando o modo como a câmara as captura. A expressividade que o comportamento não pode transcrever é sublimada em formalismo cinematográfico, em sonoplastias soturnas, branco-e-preto cristalino, câmaras dançantes e uma montagem musical. De facto, iríamos ao ponto de classificar “O Sangue” como um dos filmes mais belos do nosso cinema nacional.

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Para iluminar e capturar sua primeira longa-metragem, Costa recrutou uma equipa de diretores de fotografia sem comparação na História do Cinema Português, quiçá na História do Cinema de modo geral. Acácio de Almeida já filmou mais de uma centena de projetos, incluindo uma série de obras que primam pela majestade visual. Recentemente, a “Raiva” de Sérgio Tréfaut foi um milagre de iconografia western consumida pela severidade monocromática de um Alentejo ancestral. Elso Roque tem no currículo uma série de nomes sonantes, como que uma listagem dos cineastas portugueses mais importantes do século XX, de Paulo Rocha a Manoel de Oliveira, passando pelas desventuras terroríficas de António de Macedo.

Foi Roque que, aliás, filmou as primeiras obras de Rocha, mestre e influência, inspiração de Pedro Costa na sua carreira e legado. O seu trabalho em “Os Verdes Anos” e “Mudar de Vida” é um deleite para os olhos assim como a documentação preciosa de um Portugal perdido no tempo. Finalmente, Martin Schäfer era um Ás do Novo Cinema Alemão quando ajudou a rodar “O Sangue”. Ele morreu antes da estreia, mas a obra está entre os seus melhores trabalhos, ao lado de “Paris, Texas” e “O Estado das Coisas” de Wim Wenders. Esse trio concedeu seus talentos à obra de Pedro Costa e daí formularam um sonho, um festim para os olhos que inebria.

O estilo visual que eles formularam é feito de pretos profundos, como poços de alcatrão, e luz reluzente, céus perpetuamente cinzentos, e espaços cheios de texturas contrastantes. Juntamente com as escolhas musicais, a fotografia faz muito para recordar o trabalho de outros cineastas, conectando “O Sangue” às vanguardas Europeias que tinham vindo a mudar o panorama cinematográfico desde os anos 60. Essa referencialidade nem sempre beneficia a película, há que se dizer. Há uma aura de fotocópia palimpséstica a toldar a qualidade do projeto. Sentimos a influência de Bresson e de Carax, Erice, quiçá até o beijo mais antigo de Murnau.

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© Midas Filmes

Enquanto os filmes mais recentes de Pedro Costa são unicamente seus, “O Sangue” pertence tanto aos seus antecessores históricos como ao realizador. Talvez por isso nos deixe insatisfeitos. Queremos singularidade e esta canção de amores perdidos soa a hino passado de boca em boca, o fim de um jogo do telefone que dura séculos. Por outro lado, no contexto da filmografia Costa, ver “O Sangue” prova ser experiência educacional e preciosa fonte de variação. Jamais o cineasta voltaria ao tenor romântico desta estreia, o que dá importância a estes devaneios amorosos, esta poesia do coração partido. Agradecemos esse fado, pois há uma anemia arquetípica neste conto, mas as tonalidades emocionais fascinam mesmo assim.

Testemunhar as deambulações e danças de Pedro Hestnes e Inês de Medeiros pelo espaço abstrato, pelas sombras e luzes desse exterior teatralizado, é recordar os amantes trágicos de “Os Verdes Anos”, é vislumbrar o fantasma da “Aurora” de Murnau. Em última análise, mesmo que Pedro Costa tivesse perpetuado esta pesquisa entre o lirismo fatalismo e o onírico fotográfico, não teria sido enorme perda para o cinema português. Independentemente de comparações com trabalhos futuros, “O Sangue” é estreia estonteante, um filme a transbordar com promessas e esperanças. Na conjetura presente de Pedro Costa, pode ser um esforço menor, mas não é por isso merecedor de escárnio. Oxalá que todos os realizadores conseguissem criar filmes tão belos como este.

O Sangue, em análise
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Movie title: O Sangue

Date published: 30 de August de 2021

Director(s): Pedro Costa

Actor(s): Pedro Hestnes, Inês de Medeiros, Nuno Ferreira, Luís Miguel Cintra, Canto e Castro, Isabel de Castro, Henrique Viana, Luís Santos, Manuel João Vieira, José Eduardo, Miguel Fernandes

Genre: Drama, Mistério, Romance, 1989, 95 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

“O Sangue” canta um poema de romantismo e fatalismos lusitanos. Um deslumbro de fotografia, musicado com sonoridades pop e melodias sinfónicas, a fita representa uma estreia promissora para o percurso cinematográfico de Pedro Costa.

O MELHOR: A cinematografia a preto-e-branco. Críticas aparte, a beleza de “O Sangue” é inegável.

O PIOR: A condição primordial da narrativa, seu teor meio bíblico, pode encantar alguns. Na nossa perspetiva, tende a resultar em facilitismos textuais e anemias interpretativas. Voltando ao jogo de comparação, “O Sangue” soa a falso, vivendo sob a sombra da trilogia das Fontainhas e as outras obras-primas de Pedro Costa.

CA

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