IndieLisboa ’22 | The Immoral Three, em análise
A retrospetiva Doris Wishman do 19º IndieLisboa chega a uma das obras mais ambiciosas da cineasta – “The Immoral Three.” O filme, originalmente estreado em 1975, foi exibido na Cinemateca Portuguesa e combina o sexploitation com as histórias de espiões e um cheirinho de carnificina proto-slasher.
Chesty Morgan é uma das figuras mais importantes no legado de Doris Wishman. A stripper polaca do busto lendário foi estrela de dois grandes sucessos para a carreira da rainha do sexploitation. “Deadly Weapons” e “Double Agent 73” foram filmados ao mesmo tempo como parte de uma trilogia planeada em volta do tema dos thrillers de espionagem. Wishman queria pegar nos preceitos desse subgénero e dar-lhes desconjuntura erótica, afigurando Morgan como uma espécie de James Bond no feminino e em topless. Contudo, trabalhar com a atriz não foi fácil.
Sempre atrasada para as rodagens e com atitude de diva consagrada, Chesty Morgan foi um pesadelo para Doris Wishman. Tanta era a animosidade entre as duas que o terceiro filme da trilogia foi completamente reconfigurado. Em jeito de castigo diabólico, “The Immoral Three” abre com um funeral. Chesty Morgan morreu, que se faça a festa! É um dos gestos mais vingativos no repertório da cineasta, assim como uma das grandes piadas meta-textuais na sua oeuvre. De facto, seguindo a tradição 007, Morgan nem aparece nos flashbacks da fita.
Como os filmes de James Bond mudam de ator de vez em quando, também Wishman assim fez. Nesta nova história, Cindy Boudreau é a Agente 73, agora rebatizada como Jane Trennay. A atriz também dá vida a Ginny, uma das irmãs que compõem o trio titular. São elas Ginny, Sandy e Nancy – filhas da espiã que nasceram como produtos de relações acabadas ou danos colaterais das suas missões. O primeiro ato da narrativa é mesmo sobre a sua conceção destas mulheres, relembrando os esquemas da senhora 73 e suas desventuras eróticas em Moscovo e Berlim.
Também aqui Wishman introduz o motivo sanguinário que se prolifera pelo resto do filme. Depois do sexo vem a morte, não em estilo de condenação moral, mas como extensão do entretenimento lascivo. Para quem goste de ver estes trabalhos de série-B (ou será Z?) para disfrutar deles ironicamente, as mortes a tiro são uma delícia. Vemos muito sangue escarlate com consistência de tinta e origem incerta. Devia haver buracos de balas na carne, só que Wishman deixa os massacres para a imaginação do espetador.
Por outras palavras, não havia dinheiro para efeitos especiais. Também não havia dinheiro para bons atores ou bons cenários, como é habitual na filmografia desta perita em cinema sem vergonha. Como sempre, o apartamento de Wishman é o principal espaço cénico, servindo de casa para a espiã, suas filhas, e até de agência funerária. De facto, uma das imagens mais fortes deste trio imoral encontra as raparigas nesse apartamento, posadas atrás do caixão da mãe. Longas cortinas verdes emoldurando o quadro lúgubre com uma planta falsa ao canto.
É desse ponto que se desenrola a ação principal da fita. “The Immoral Three” preocupa-se com o mistério da matriarca morta, especialmente quando mais assassinatos começam a ocorrer em torno das suas filhas. Há uma vaga continuidade lúcida que resvala para a loucura sempre que Wishman interrompe a ação para alguma cena de sexo inusitado. Sempre dentro dos padrões do soft-score, a realizadora não mostra muito, mas sugere o suficiente. Diríamos, no entanto, que o erotismo é mais forte quando os corpos estão vestidos.
Apesar de não haver figurinista creditado para o filme, “The Immoral Three” é um festim de absurdidades estilísticas dos anos 70. A certa altura, até vemos a cintura de Sandy embelezada por uma fivela que escreve “Oh Shit” em brilhantes. Essa é talvez a melhor destilação do cinema de Doris Wishman, uma imagem que contém em si a essência do seu trabalho, todo o seu gozo babado e sensualismo desajeitado. Enfim, não há tempo a perder em modas pois as personagens estão a aparecer mortas em ritmo acelerado. Se não se descobre o assassino, acaba o filme por falta de elenco.
Para os fãs do terror, essa vertente mortífera é certamente o elemento mais curioso da trama. Sente-se uma certa dívida para com os giallos de Itália, ao mesmo tempo que a estrutura narrativa aponta para uma consolidação do slasher antes mesmo de o termo existir. O que é curioso é quanto aquela premissa eterna do horror juvenil não se admite no mundo de Wishman. Aqui não morre quem é promíscuo. Pelo contrário, a única figura principal que vive até aos créditos finais é quem tem mais sexo no filme inteiro. Que viva o hedonismo sem vergonha! Que viva o cinema de Doris Wishman!
The Immoral Three, em análise
Movie title: The Immoral Three
Date published: 5 de May de 2022
Director(s): Doris Wishman
Actor(s): Cindy Bourdreau, Sandra Kay, Michele Marie, Robert S. Barba, Joe Saverio, Bud Irwin, Frank Silvano, Roger Caine, Ed Marshall, Levi Richards, David Hausman
Genre: Ação, 1975, 74 min
-
Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
Uma desventura sexual pelo mundo dos espiões, do melodrama e da carnificina à la giallo, “The Immoral Three” é uma das obras mais espetaculares na filmografia de Doris Wishman. A rainha do sexploitation excele na comédia acidental, na montra de modas e inadvertido surrealismo. Seu cinema vive num limbo entre a loucura e a luxúria, transcendo o medíocre para chegar ao génio. Por muitos defeitos que tenha, não trocávamos os filmes de Wishman por nada deste mundo.
O MELHOR: O estilo aveludado dos anos 70 e o modo como influenciam a estética do filme. “The Immoral Three” é uma das fitas mais influentes de Wishman, vivendo na contemporaneidade através de cineastas como Anna Biller.
O PIOR: Podemo-nos rir com a vingança de Wishman, mas sentimos falta de Chesty Morgan.
CA