IndieLisboa ’22 | Cette Maison, em análise
“Cette Maison” passou pelo IndieLisboa ’22 nos dias 28 de abril e 8 de maio e ainda venceu o Prémio Silvestre Para Melhor Longa Metragem. De que trata esta obra que forja para si, a partir do luto, uma nova temporalidade?
A meias com “Nous, étudiants.!” de Rafiki Fariala, “Cette Maison”, da canadiana Miryam Charles, venceu o Prémio Silvestre Para Melhor Longa Metragem na 19ª edição do IndieLisboa. O filme, que previamente teve estreia mundial na Berlinale, é um tratado sobre perda e também uma corajosa e invulgar biografia imaginada que recupera eventos traumáticos para uma família, um povo, um país, e cria uma nova linha de espaço e tempo que permite tentar sarar as feridas profundas que persistem.
De acordo com o júri do Festival, este filme representa: um gesto de grande coragem, mergulha na terra dos mortos para inventar um espaço-tempo para todos aqueles que procuram o lugar a que pertencem.
“This House”, no título inglês, é uma longa-metragem que resiste à categorização, apresentando-se como um documentário fantasiado, imaginado, verdadeiramente livre de amarras e convenções fílmicas – experimental e não-conformista. “Cette Maison” é capaz de nos arrebatar em vários momentos, ao criar uma linha narrativa em que o lugar da ausência se torna presente. Sem nunca cair no melodramático, algo notável considerando o seu ponto de partida, Miryam Charles cria uma obra que é específica ao seu contexto pessoal, familiar e também migratório. Este é um filme sobre alienação e as feridas do Colonialismo que persistem nos territórios da América do Norte. Todavia, é também um filme que presta homenagem a uma jovem que abandonou o mundo cedo de mais, sem nunca encontrar o seu sentido de individualidade, sem nunca vivenciar pertença.
A nossa protagonista Tessa nasceu em Stamford, Connecticut, uma pequena cidade não muito longe de Manhattan, em 1994. Viria a morrer aos 14 anos, em Bridgeport. Esta jovem, que faleceu em circunstâncias tristes e inicialmente mascaradas, era prima da realizadora. Anos depois, Miryam cria um diálogo imaginado com a jovem que já não é capaz de falar por si e imagina o que poderia ter sido a sua vida e qual poderia ter sido o seu corpo adulto.
O filme não se cinge ao drama pessoal da família da realizadora, estabelecendo desde o início da obra uma tríade de sentido que se estende do Canadá aos Estados Unidos e destes territórios ao Haiti – a casa ancestral da família de Charles e da família representada no grande ecrã. Nesta longa-metragem – a primeira assinada pela realizadora – filmada num belo formato de 16mm, a distinção entre “casa” e “lar” é para lá de transparente. Mãe e filha sonham com o Haiti, com o seu território, as suas belezas naturais, sonham também com a casa que perderam ao imigrar para territórios estranhos onde sentiram os efeitos da marginalização.
A memória coletiva, o luto comunitário, são importantes ferramentas nesta obra que nos oferece múltiplos fragmentos de sentido mais ou menos separados entre si. Extremamente onírico, “Cette Maison” pensa os sonhos por concretizar desta família e de todo o povo haitiano. As três temporalidades confundem-se e tentam operar uma nova criação de sentido mas, no fim, sentimos acima de tudo o peso de tudo o que foi perdido. Este é, em primeira instância, um espaço de luto sóbrio e seguro, convidativo.
Em termos do design de produção e cenários, “Cette Maison” é bastante rico e diversificado. Contém espaços interiores, exteriores, em geografias distintas. Algumas fazem parte do sonho, outras mapeiam a mais crua realidade. Este híbrido arrepia por mais do que uma vez e convida à reflexão através dos seus tenebrosos diálogos e monólogos. Entre os simbolismos da casa, da natureza e das cenas profundamente estilizadas e mais teatrais, “Cette Maison” acaba por não ser a mais coesa das obras. Não obstante a ocasional falta de foco e de hierarquização das imagens, o seu gesto destemido não deixará espectador algum indiferente.
TRAILER | CETTE MAISON – PRÉMIO SILVESTRE PARA MELHOR LONGA-METRAGEM
O 19º IndieLisboa decorreu entre os dias 28 de abril e 8 de maio, com sessões de vencedores até dia 11. A edição de 2023 regressará no final de abr
Cette Maison, em análise
Movie title: Cette Maison
Movie description: Como re-imaginar uma tragédia da primeira década dos anos 2000? É essa a centelha que ilumina este filme. Dez anos depois do aparente suicídio de uma adolescente, repensa-se o passado desta perda, que ainda afecta o presente, com a promessa do que o futuro desta rapariga poderia ter sido. Numa história que triangula o Haiti, o Canadá e os Estados Unidos, Tessa regressa ao mundo pelo poder do cinema.
Date published: 14 de May de 2022
Country: Canadá
Duration: 73'
Director(s): Miryam Charles,
Actor(s): Schelby Jean-Baptiste, Florence Blan Mbaye
Genre: Drama, Fantástico, Biografia
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Maggie Silva - 75
CONCLUSÃO
“Cette Maison” é um filme ambicioso, que resiste à categorização, capaz de conciliar memórias pessoais e também aquelas que definem um povo, os seus costumes e os seus traumas.
Pros
- O audaz gesto de homenagem e de preenchimento das lacunas que por vezes persistem na nossa traiçoeira memória;
- A exploração dos limites do documentário, os quais por vezes são capazes de aprisionar o sujeito fílmico – não aqui;
- A temática do colonialismo abordada de forma inteligente, subtil e incisiva;
- A opção de gravar em película;
- O belíssimo e introspectivo diálogo, entregue na perfeição pelas duas protagonistas.
- Uma breve nota acerca do poster que aqui se apresenta – a sua beleza é notável, bem como a sua concordância e continuidade em relação ao filme. As flores que a mãe da protagonista plantou no seu jardim são o testemunho da sua resiliência, do seu ímpeto de sobrevivência, da sua homenagem, do seu desespero;
Cons
- Os momentos de maior intensidade vão sendo intercalados por outros em que as ideias se vêem repetidas. Na marca dos 73 minutos, “Cette Maison” consegue por vezes parecer demasiado longo. Isto tendo em consideração que os momentos verdadeiramente impactantes de construção de sentido estão espalhados pelo filme e são cíclicos. Na realidade, para não sacrificar a tensão e importância de cada plano, a obra poderia ter sido perfeitamente sumariada numa curta-metragem de 40 minutos de duração;