IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #1
A edição de 2023 do IndieLisboa está a decorrer, dando a conhecer algumas das suas principais curtas-metragens!
COEURS BRISÉS HÔTEL, 2023, de Emma Axelroud Bernard (França). No ecrã vemos uma mancha de luz branca e logo depois o segmento de um corredor profusamente iluminado. No interior, ao fundo uma porta, e na esquerda do enquadramento, um fragmento de janela voltada para o exterior. No plano, onde sobressai a cor azul dominante, estruturas brancas deixam-nos adivinhar outros espaços, agora fechados ao interior que nos ocupa o olhar. Mas os nossos sentidos irão ser pouco a pouco orientados para o que se passa fora de campo. Do ponto de vista visual, os azuis e brancos darão lugar a afloramentos de vermelho. Na banda sonora, a respiração ofegante do que parece ser um casal, sugere aquilo que parece óbvio mas, mesmo assim, cautela. Nunca se sabe se nestes casos a surpresa, em vez do pecado, mora ao lado. Finalmente, a coisa adensa-se e complica-se quando ouvimos uma voz pedir para interromper o que entretanto já parecia uma certeza, uma sessão de sexo. Logo a seguir ficamos esclarecidos quando, sempre fora de campo, algo nos diz que aconteceu uma acção violenta, quem sabe, fatal. Mas a realização antes de dar ao espectador a satisfação final de saber o que realmente se passou, ainda nos dá uma curiosa sequência em que o corpo nu de uma jovem mulher limpa no duche os vestígios de sangue no seu corpo após o crime que rapidamente descobrimos. Tudo muito estético e bem filmado. Naturalmente, a partir daquele ponto, aparentemente sem retorno, para fazer avançar a narrativa a autora do assassinato iria precisar da nossa, mesmo que limitada, cumplicidade para resolver o problema que se lhe depara nesta história de corações partidos, ou seja, como libertar-se de um cadáver (curiosamente, ou melhor, significativamente, o único homem que aparece no filme). Não podendo fazer mais do que assistir ao desenrolar dos acontecimentos (e sem compreender ao certo porque carga de água vai uma mulher para a cama com um rapaz que afinal não quer que a penetre nem que siga em frente até ao previsível orgasmo), ao espectador resta ir colocando no sítio as peças de um intrincado puzzle construído a partir da fragmentada memória do que vai vendo, leia-se, os percursos coincidentes ou não das diversas personagens femininas que pelas mais variadas razões se misturam neste exercício sobre como mudar de vida depois de limpar o rasto da morte. Pelo meio ouvimos uma emissão da Radio Panthère, seja lá o que isso for, e para dar mais sainete ao conjunto por diversas vezes será invocado em vão o santo nome do rei, o senhor Elvis Presley, cuja fotografia, pendurada na parede kitsch do quarto de hotel onde o drama sem ejaculação ocorrera, revela que algumas coisas são eternas e não mudam, como os ecos longínquos do seu Heartbreak Hotel.
CLASSIFICAÇÃO: 30/100
TODAY, I WILL BE THE BREAD, 2022, de Andy Cahill (EUA). Este só visto, porque contado ninguém acredita. Na verdade, não há muito a dizer a propósito de um projecto que, para além dos seus inenarráveis valores estéticos no plano visual e musical, não encontra nos seus poucos mas longos dez minutos, um mínimo de coerência. Nem sequer algo que justifique ao menos essa enigmática referência HOJE, SEREI O PÃO. Desde que não seja o pão nosso de cada dia, haja esperança na restante programação.
CLASSIFICAÇÃO: 10/100
LES DIEUX DU SUPERMARCHÉ, 2022, de Alberto Gonzalez Morales (Suíça). Está classificado como documentário experimental e, antes de aterrar no INDIELISBOA, passou pelo Festival de Locarno, onde em 2022 participou na respectiva selecção oficial. Desde cedo, o narrador confessa que aos seis anos ficou fascinado pela secção de roupa interior masculina de um supermercado. Sem conseguir perceber de imediato o que se passava com ele, mais para a frente passou a olhar a correspondente oferta comercial, sobretudo de boxers e slips, com renovado prazer, cada dia mais intenso, assim como os corpos musculados e a firmeza das partes íntimas que se adivinhavam nas fotografias impressas nas capas das embalagens de underwear. Bom, até aí o realizador não precisava de nos fazer um desenho para que percebêssemos as motivações e desejos da personagem que concebeu, provavelmente o auto-retrato de si mesmo. Todavia, com o andar da carruagem, o discurso confessional cruza-se com uma série consecutiva de imagens e sons que não fazem mais do que destruir a primordial e singela verbalização da descoberta do corpo do outro, e eventualmente do seu próprio, opção que acaba por reduzir a cinzas o que restava da evocação dos anos de brasa e de um passado cuja representação, com base na colagem áudio e visual de materiais recolhidos na internet, acabam por consolidar um exercício fílmico relativamente eficaz, se bem que nada inovador. Seja como for, a esta abordagem breve de um ainda mais breve período existencial da juventude, a que felizmente não voltaremos mais, segue-se uma proposta de leitura da idade adulta do protagonista que decide então avançar para uma escalada onanista de figuração gay, que não passa disso mesmo, um olhar sobre vidas e musculaturas alheias, onde a alma de quem nos conta os seus amores e angústias já conta pouco. Tal como na pornografia que, ao mostrar demais, destrói o mistério que alimenta a fúria do desejo.
CLASSIFICAÇÃO: 20/100
EURIDICE, EURIDICE, 2022, de Lora Mure-Raveau (Suíça): Interior de um carro. Duas mulheres, Ondina (Ondina Quadri) e Alexia (Alexia Sarantopoulos), fazem amor. Pouco depois, mais um momento de intimidade, mas este será bruscamente interrompido pelo pai da mais jovem das protagonistas. Questão de chaves e posse de objectos no apartamento, nada de muito estranho. Só que funciona como um pauzinho enfiado na engrenagem da partilha física e emocional, o estado de graça que já déramos conta nos primeiros segundos desta ficção. Relação que se quer e sente verdadeira e que aponta para outros horizontes, que não apenas os limitados pelas paredes de um quarto e pelo perímetro dos lençóis desalinhados de uma cama. Todas as informações que precisamos saber para localizar o seu espaço preferencial de acção são-nos dadas através de conversas informais quando ambas se confrontam, para o melhor e para o mais que for, com os outros. Pouco a pouco damos conta de que o horizonte de Alexia passa pela Grécia. Na estrada, fica mais clara a viagem que ambas podiam realizar para um lugar seguramente desejado. Mas só uma irá partir. E, uma vez no destino, desaparece em circunstâncias que fazem lembrar referências bíblicas ao mito da serpente e do Paraíso, que afinal o não era completamente. Na Primavera seguinte abre-se um novo ciclo e regressamos ao início. Mas agora Ondina, porque a vida continua, faz amor com outra mulher. Mas a relação com ar de ser casual não a prende a nenhum compromisso e ela está aberta a outros caminhos. Por isso vai aceitar um desafio, participar numa espécie de workshop que mistura arte e expressão corporal, para o qual vai ser convidada por uma outra mulher, Daria (Daria Menichetti), personagem algo misteriosa na sua maneira de abordar o que realmente deseja na relação com Ondina. Neste ponto, o filme apresenta o reverso do que víramos na primeira parte, antes da ruptura gerada pelo fim do Outono e pela consumação do Verão. Trata-se agora de procurar o eu interior, a plataforma espiritual que abra as portas para alcançar a visão do invisível. Já não estamos no domínio da pura fruição carnal do sexo movido pela paixão, mas sim no reino da fantasia por onde circulam os fantasmas e a suave imponderabilidade entre razão e coração. Sem dúvida, um belo filme. Os melhores quarenta minutos desta primeira sessão competitiva, geralmente fraquinha.
No Festival de Locarno de 2022 recebeu o Leopardo de Ouro para a Melhor Curta-Metragem Suíça.
CLASSIFICAÇÃO: 70/100
HOTEL KALURA, 2022, de Sophie Koko Gate (Reino Unido). Confirmando o que dissemos a propósito desta primeira sessão, este filme proposto a seguir ao anterior, EURIDICE, EURIDICE, funciona como um corte, um ponto final que mais valia ser um penúltimo. Na verdade, esta animação de cores fortes e grafismos modulados que fazem lembrar alguma pintura naif, supera a mediocridade global da anteriormente exibida, TODAY, I WILL BE THE BREAD, mas não consegue ir mais longe do que esse limbo de mero exagero e especulação formal ao redor de uma mulher que num hotel da Sicília procura a sedução pela sedução. Há quem goste. Eu passo…!
CLASSIFICAÇÃO: 20/100