Baronesa

15º IndieLisboa | Baronesa, em análise

Baronesa”, o primeiro filme de Juliana Antunes, é um dos documentários na competição internacional do IndieLisboa e um belíssimo exercício de observação humanista em cinema.

Perto do fim dos seus parcos 71 minutos, “Baronesa” choca o espectador como poucos filmes nesta 15ª edição do IndieLisboa. Depois de cerca de uma hora de observação meio documental do dia-a-dia da Vila Mariquinha no Brasil, a câmara da realizadora Juliana Antunes encontra-se mais uma vez a capturar as conversas e brincadeiras casuais de Andreia e Leidiane, duas amigas e vizinhas da favela. De repente, ouvem-se tiros não muito distantes e ambas as não atrizes deixam imediatamente a cena e correm para encontrar abrigo. No terror e correria, a câmara quase cai no chão, mas acaba por se refugiar no interior de um dos casebres, juntamente com as amigas e o resto da equipa de filmagens. Lá fora, o inferno de violência armada continua a desenrolar-se.

Depois disso, cortamos para um longo plano que, como a maioria das imagens de “Baronesa”, é estático e pacífico. Um tableau de uma paisagem natural com duas pessoas a caminharem ao longo da estrada de terra. O tiroteio é algo tão habitual na vida das figuras aqui observadas que um foco demasiado enfático no possível trauma desse evento seria uma forçosa construção dramática. Estas são as vidas que estamos ver. Vidas já moldadas ao terror instantâneo de um tiroteio. Vidas que já aprenderam forçosamente a lidar com tais eventos como rotina. Na sua rigidez estrutural, “Baronesa” encontra um estranho tipo de integridade representativa, evitando condescender ou menorizar as experiências das mulheres que observa, ao mesmo tempo que é capaz de dar um murro no estômago do espectador.

baronesa critica idielisboa
“(…)um murro no estômago(…)”

Tal choque é manifesto e coerente com o resto do filme pois “Baronesa” é apresentado com uma espécie de exercício em curadoria cinematográfica da realidade, realismo social em modo docudrama executado com rigor formal e um certo lirismo meio reminiscente de Pedro Costa. Como tal, a relação reflexiva dos ritmos estabelecidos pelo filme com as vidas em cena acaba por ser a sua mais poderosa dinâmica. Muitos poderão ver tais escolhas como resultantes numa experiência enfadonha, mas há uma admirável bravura nas escolhas de Juliana Antunes.

Quando nos referimos a tal bravura não nos referimos ao facto de a realizadora, que aqui assina o seu filme de estreia, ter ido aventurar-se pela favela com plena consciência que podia levar um tiro. Aparentemente, ela chegou a passar os primeiros dias de filmagens com um quite de primeiros socorros sempre à mão, com medo de ter de tratar inesperadamente de um ferimento de bala. A sua proximidade potencialmente mortífera com a comunidade em questão provou-se frutífera, no entanto, especialmente pelo modo como, não obstantes os seus receios e possíveis ideias pré-concebidas, Antunes raramente permite que a sua presença autoral se manifeste inoportunamente sobre as vidas retratadas.

Lê Também:   14º IndieLisboa | Arábia, em análise

Ao longo de vários tableaux domésticos e da vida quotidiana, onde nada consequente parece acontecer a não ser o pacato convívio entre amigas e conhecidos, entre namoradas e namorados, mães e filhos, “Baronesa” vai mergulhando o espectador numa ideia de intimidade pessoal. Vamo-nos convencendo que conhecemos estas pessoas, que estamos próximos da sua realidade. O susto do tiro remove-nos um pouco dessas noções, mas o jogo empático do filme já por essa altura nos afetou.

O modo como Antunes desenvolve tal empatia é peculiar, contudo. Como já dissemos há um certo piscar de olho ao cinema português de Costa e a outras vozes importantes da etnografia cinematográfica, mas “Baronesa” evita cair no tipo de alienação que muitos desses filmes intencionalmente evocam. É certo que as imagens do filme trespassam, como já dissemos, uma grande curadoria, assim como a sua cuidada montagem e paisagem sónica. No entanto, não obstante a artificialidade das composições fixas e meio pictóricas, há algo de tão aberto e despretensioso nas ações capturadas em câmara que vamos sendo seduzidos.

baronesa critica indielisboa
“(…)o filme transcende o gesto etnográfico(…)”

Ajuda, é claro, que as protagonistas do filme sejam o tipo de figuras que dão a ideia de ter nascido para um dia terem uma câmara apontada para a sua cara. Entre sorrisos rasgados, momentos de folia despreocupada e ocasionais instantes de seriedade trágica, Andreia e Leidiane são presenças carismáticas e magnéticas, suas faces de expressões abertas ótimos sujeitos para as pinturas de luz natural e pele escura que a câmara tão devotamente traça para o espectador.

Há quem veja nesse exercício de observação uma exotização da miséria ou uma exploração da pobreza alheia. Essas são críticas válidas e apropriadas a todos os projetos deste género, mas “Baronesa” tende a elevar-se acima de tais retóricas redutoras. De facto, no seu jogo empático, na sua observação rigorosa, o filme transcende o gesto etnográfico e antropológico, sendo algo mais próximo da homenagem humanista em registo documental. Pelo menos, é essa a impressão com que ficamos ao sair da sala de cinema, com as conversas das duas amigas a ainda ressoarem nos ouvidos, com seus movimentos a ainda perdurarem no olho da mente e suas esperanças e desejos por uma vida melhor a apertarem-nos o coração.

 

Baronesa, em análise
baronesa indielisboa critica

Movie title: Baronesa

Date published: 4 de May de 2018

Director(s): Juliana Antunes

Genre: Documentário, 2017, 71 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO

“Baronesa” é um elegante documentário sobre duas amigas numa favela pobre do Brasil. A estreia de Juliana Antunes na cadeira de realização é extremamente promissora e um belo exercício em humanismo visualmente virtuoso.

O MELHOR:
O choque do tiroteio.

O PIOR:
Este tipo de exercício observacional tem muitos limites e “Baronesa” torna-os particularmente óbvios ao recusar-se em explorar mais enfaticamente um discurso político latente à sua criação.

CA

Sending
User Review
4 (2 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending