Grey Gardens IndieLisboa

15º IndieLisboa | Grey Gardens, em análise

Grey Gardens”, estreado originalmente em 1975, é um dos mais importantes e celebrados documentários americanos da década de 70. É também um dos filmes em exibição no IndieLisboa, dentro da secção Director’s Cut.

Mrs. Havisham, a perpétua noiva de “Grandes Esperanças”, vive no momento congelado do seu matrimónio arruinado e é uma das figuras mais fascinantes e icónicas da literatura europeia. Uma mulher espectral, ainda envergando o seu vestido de casamento comido pelas traças e vivendo num casarão que o tempo impiedosamente devastou, ela é um fantasma de sangue quente. No entanto, tal e qual como o banquete que apodrece há décadas na sua sala de jantar, ela é também uma ruína em lenta decomposição. Talvez seja a sugestão de alegria passada, de fausto de outros tempos, agora transfigurada em cruéis lembranças da miséria presente que fazem desta criatura algo tão enervante e inesquecível. Talvez seja a mistura de tragédia e esplendor ressequido, o paradoxo entre a riqueza do seu mundo e a podridão do mesmo. Talvez seja somente o seu papel na narrativa de Dickens.

O facto é que Mrs. Havisham é uma presença icónica que tem vindo a seduzir e enfeitiçar leitores há mais de um século. Não contando com as muitas adaptações dessa magnum opus da literatura inglesa do século XIX, o cinema também conta com a sua coleção particular de Mrs. Havishams, estando, em lugar de primazia, as duas protagonistas de “Grey Gardens”. Afinal, se há algo capaz de superar o impacto da figura Dickensiana é a estarrecedora verdade que Edith Bouvier Beale e sua mãe do mesmo nome, conhecidas como Little Edie e Big Edie, não foram o produto da imaginação de nenhum autor inspirado. Pelo contrário, elas foram bem reais e “Grey Gardens” não é nenhum épico narrativo, mas sim um dos documentários mais seminais no cânone do cinema americano.

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“(…)tragédia e esplendor ressequido(…)”

Inicialmente, Albert e David Maysles, os realizadores do filme, não estavam a planear fazer nenhum filme sobre as duas senhoras Beale. De facto, eles só tiveram conhecimento da existência delas quando estavam no processo de desenvolver um filme sobre Lee Radziwill, a irmã mais nova de Jacqueline Kennedy Onassis. Durante a infância das irmãs Bouvier, Edith Beale tinha sido a sua tia predileta e era Little Edie que parecia destinada a ser um dia primeira-dama dos EUA, pelo que a irmã de Jackie O. achou bem apresentar os cineastas a essas figuras tão importantes na sua vida.

O que os Maysles encontraram na residência Beale depressa os fez esquecer a ideia de um documentário focado somente em Radziwill. Tal como com a figura trágica de “Grandes Esperanças”, as marcas de prosperidade ainda estavam manifestas na propriedade caída em ruína, o cadáver do luxo ainda se fazia sentir por entre a putrefação metafórica e literal. Mais interessante ainda que o jardim outrora glorioso tornado num ninho gigante de ervas daninhas ou o casarão cheio de lixo, era o estado das duas solas habitantes desse mundo fantasmagórico. Ao invés de se terem reduzido a espectros sem vida ou energia, as duas Beale pareciam compensar a natureza moribunda do seu lar com a sua vibrante energia.

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Em tempos imemoriais, a matriarca, conhecida como Big Edie, havia sido uma senhora da alta sociedade e seu marido havia-lhe comprado a propriedade dos Hamptons que dá nome ao filme. Durante anos, ela viveu aí em glória milionária, enquanto a filha se afirmava como uma das grandes socialites da era, chegando a ir viver para Nova Iorque em busca de triunfos maiores e romance. No entanto, tal fausto era temporário e, quando Phelon Beale deixou a mulher e Little Edie voltou de Nova Iorque com o coração partido, mãe e filha tornaram-se nas residentes quase eremíticas da casa.

Sem dinheiro para as sustentar, a propriedade foi caindo na ruína e, em 1971, as condições de vida haviam deteriorado ao ponto de a casa estar praticamente inabitável. Ratos, pulgas e gatos vadios passeavam livremente por entre pilhas de lixo, pratos sujos e tralha acumulada ao longo de uma vida. Retratos dos anos 30 agora serviam de caixa de areia e eletricidade e água já tinham deixado de correr nessa habitação. Foi preciso mesmo a intervenção da antiga primeira-dama e sua irmã para que a situação se resolvesse um pouco e para que as duas Edies não fossem forçosamente despejadas. Os Maysles conheceram-nas depois dessa intervenção, que nada tinha feito para atenuar as suas bizarras presenças ou amortiçar a sua vitalidade.

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“(…)apesar de tudo isso, elas persistem(…)”

Aliás, apesar de haver algo de horrendo nesses olhares sempre virados para realidades há muito extintas que ambas as Edies partilham, é impossível negar quão eletrizantes as duas mulheres são quando a câmara se foca nelas. Little Edie, em particular, era uma estrela. Com os seus figurinos improvisados em estilos bizarros, com camisolas a enfaixarem a cabeça e capas presas por alfinetes na forma de uma saia, ela era certamente uma figura um tanto ou quanto grotesca, mas é rara a instância em que nos queiramos rir dela. O mesmo se pode dizer em relação aos seus maneirismos afetados, cicatrizes de uma vida na alta sociedade. Como a Daisy de Fitzgerald, a sua voz estava cheia de dinheiro.

Na boa tradição do então jovem movimento do direct cinema, é essa mesma voz endinheirada que conta a sua própria história, tal como é Big Edie que nos mostra quem é. Por essa mesma razão, e graças à estrutura leve e antidramática do projeto, muito do contexto e detalhes mais específicos do definhar e relação das duas mulheres não são bem expostos no filme. Explorações seguintes, incluindo outros documentários viriam esclarecer alguns desses detalhes, mas as pistas já estão em “Grey Gardens”. Veja-se o ressentimento latente no tratamento de um retrato, a constante condescendência de mãe para filha, o olhar resignado de uma prisioneira na expressão de Little Edie. Estas são figuras de complexa humanidade e talvez seja mesmo por isso que gravitamos, enquanto audiência, para o seu peculiar esplendor.

Talvez também seja por isso que nos sentimos atraídos pelo mito trágico de Mrs. Havisham. Porque, no seu exagero grotesco, estas mulheres representam alguns dos lados mais feios de nós próprios, nosso orgulho, nossas idiossincrasias pessoais, a nossa capacidade para crueldade e sofrimento. No entanto, apesar de tudo isso, elas persistem, elas resistem a tudo, mesmo ao olhar da câmara e nessa peculiar bravura, conquistam-nos. No final, “Grey Gardens” pode parecer uma tragédia, mas é um documento vital, um hino humanista à resiliência de Little Edie, uma celebração dos talentos musicais de Big Edie, e um espelho virado para nós que nos pergunta se somos tão diferentes destas criaturas bizarras. É um exercício de empatia radical, um retrato de personalidade apurado e um dos melhores documentários dos anos 70.

 

Grey Gardens, em análise
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Movie title: Grey Gardens

Date published: 5 de May de 2018

Director(s): Albert Maysles , David Maysles

Genre: Documentário, 1975, 94 min

  • Cláudio Alves - 95
95

CONCLUSÃO

As duas senhoras Beale são duas das figuras mais fascinantes do cinema documental, e com razão. Esta obra-prima cinematográfica não perdeu nenhum poder nos últimos 42 anos, sendo ainda um maravilhoso documento de vidas levadas ao extremo da melancolia nostálgica, afogadas em remorsos de sonhos nunca concretizados e sempre prontas a enfrentar outro dia com a cabeça erguida e um figurino extravagante.

O MELHOR: Os muitos monólogos de Little Edie.

O PIOR: O modo como “Grey Gardens” atualmente parece ser uma obra necessariamente complementada pelos outros filmes, documentais e narrativos, feitos sobre as suas figuras centrais. É difícil experienciar este documentário por si só, sem ponderar as informações e perspetivas pessoais partilhadas nessas outras obras.

CA

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