13º IndieLisboa | Kate Plays Christine, em análise

Em Kate Plays Christine, Robert Greene, com a ajuda da atriz Kate Sheil, constrói um desconcertante estudo meta cinematográfico sobre Christine Chubbuck, uma repórter televisiva que, nos anos 70, se suicidou em direto.

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A 15 de Julho de 1974, Christine Chubbuck, uma repórter televisiva que trabalhava para um canal local no estado da Florida, suicidou-se. Tal seria trágico, mas tristemente banal, não fosse o facto de ter ocorrido em direto. Depois do vídeo de uma reportagem não ser apresentado por acidente, Christine virou-se para a câmara que a filmava e disse que, seguindo a tradição do seu canal de sempre mostrar as notícias mais repletas de blood and guts (sangue e vísceras), ela apresentaria um exclusivo inédito na televisão, uma tentativa de suicídio ao vivo e a cores. Seguindo-se a estas palavras ela retirou um revólver que tinha escondida e deu um tiro na cabeça. Tanto pelo facto de Christine ter pedido que esta emissão fosse gravada em película, assim como pelo bizarro texto que ela deixou para ser lido nos noticiários que reportassem a sua morte, sabemos que este suicídio em direto foi algo claramente premeditado. Porém, tal informação pouco ilumina sobre as razões que levaram à sua ocorrência, ou resolver as contradições ideológicas presentes em tal ação. Se Chubbuck estava a criticar esses sangrentos gostos voyeurísticos do seu público e seus patrões, então porque decidiu criar este espetáculo de morte tornada choque televisivo? Se ela se opunha a tais realidades porque se decidiu reduzir eternamente à mulher que se suicidou em direto?

Essas e muitas outras questões assombram Kate Plays Christine, o mais recente filme do realizador Robert Greene. Depois de Actress, este autor documental regressa ao mundo da performance, decidindo examinar e explorar a figura de Christine Chubbuck a partir de um exercício meta textual em que o filme é construído em volta do trabalho de pesquisa e preparação feito pela atriz Kate Lyn Sheil, aqui escolhida para interpretar Christine. No entanto, tal preparação está notoriamente longe de ser algo que é simplesmente observado pela câmara objetiva de Greene. Para além do mais, a acrescentar-se a esta confusa, mas fascinante, estrutura, o realizador acaba mesmo por usar a atriz para filmar dramatizações de vários momentos da vida de Chubbuck, tudo dirigido num estranho tom de estilização descarada à la telenovela barata dos anos 70.

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Tal tempestade de realidades e artifícios baseados em realidades quase relembra as ensandecidas e geniais experiências de Abbas Kiarostami e outros mestres do cinema iraniano, sendo que, tal como esses filmes, a obra de Greene é um monumento de cinema multifacetado, estando longe de ser um mero retrato do processo de um ator. Aliás, esse processo é tão ficcionado e manipulado que, tal como a ordem pela qual as palavras do título aparecem no ecrã, Kate nunca é o centro do filme, mas sim uma espécie de veículo humano ou âncora estrutural, pois o conceito de Christine Chubbuck é sempre a enorme questão à volta de qual tudo neste filme orbita. E desengane-se quem se surpreender com a palavra conceito aplicada a um ser humano, pois, devido ao impacto da sua morte e à implacável passagem do tempo, a realidade dessa mulher esbateu-se de tal modo que ela é como que um abstrato, um puzzle de ideias em que as peças não parecem encaixar umas nas outras. Na sua procura por informação sobre a sua personagem, sobre suas motivações e sobre a realidade do suicídio e depressão, Kate acaba por ir tecendo uma tapeçaria que tenta desvendar esse abstrato, ou pelo menos estar mais perto de observar a sua totalidade.

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Num dos momentos mais visualmente brilhantes do filme, Kate observa fogos-de-artifício na cidade em que a sua personagem vivia. Enquanto ela olha os céus, a câmara apenas foca a sua silhueta, com o sujeito mais explosivo da imagem a ser completamente desfocado, tornando-se uma abstração de círculos de luz colorida em indefinido movimento pela escuridão e os seus sons, de rebentamentos pirotécnicos, depressa se fundem com o disparar de uma arma. É assim que o filme se ideologicamente inicia e se desenvolve face ao enigma de Christine, como alguém confuso a olhar o abstrato e nele a tentar encontrar algo que não a violência mortífera que cessou uma vida e despoletou uma tempestade de contradições.

Talvez, para muitos cinéfilos o documentário seja inerentemente um meio mais respeitoso e autêntico para refletir sobre tais eventos verídicos, mas o que é a “autenticidade” a que nos referimos neste contexto? Na sua examinação da performance de Kate como a repórter e da própria natureza performativa do suicídio de Christine, Kate Plays Christine vai investindo violentamente contra tais noções binárias de autêntico e falso, real e artificial, verídico e dramatizado. Ao colocar a câmara entre as audiências e o mundo que lhes é apresentado, Greene está ciente que vai ativamente criando uma imagem virtual, uma mera impressão que nunca poderia ser mais que um microscópico fragmento da realidade. Dizer-se que é objetivo na sua captura da autenticidade de Christine parece, portanto, um conjunto de palavras sem significado ou interesse., com a incerteza e perplexidade face à complexidade humana e ideológica a serem a única resolução deste exercício de pesquisa e recriação.

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Isto traz-nos a um fascinante problema que é encarado de frente pelo filme, seus cineasta e sua atriz principal. É moralmente legítima esta recriação da vida de Christine Chubbuck? Ao longo da pesquisa de Kate, vamos ouvindo diversos relatos e opiniões diretamente sobre a mulher que a atriz pesquisa, ou indiretamente em conversas sobre o que leva uma pessoa ao suicídio. Nesses relatos, um tom de julgamento ou forçada empatia parece quase sempre estar presente, como se, ao examinarem e projetarem as suas ideias sobre a figura desta mulher, estes indivíduos estivessem a violar a sua existência, legado e dignidade. Quando Kate finalmente tem acesso a algumas filmagens de Christine, um antigo colega de trabalho da repórter confronta a atriz com a moralidade da sua procura. Afinal, o que é que resultará de tal trabalho? Um espetáculo sangrento a ser apreciado por cinéfilos em busca de ver a crise psicótica de uma mulher desesperada? Será correto criar um filme sobre esta realidade humana? Será, na verdade, de todo defensível, a existência de tantos filmes que se dedicam exclusivamente a explorar e dissecar realidades alheias e cuja complexidade nos é impossível completamente percecionar?

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Quando Kate vê esse vídeo de Christine, apesar de abalada, parece que efetivamente pouco de valor se ganhou, a não ser um perverso prazer de voyeur por parte de uma audiência de cinema sedenta por ver a mulher que tanto tem sido motivo de indagação geral. Será que se percebeu mais da sua realidade a partir de tal visionamento, ou foi tudo mesmo mais um exercício de voyeurs cinemáticos? Greene, ciente de tal conflito, parece querer exacerbar o artifício declarativo das suas recriações, com o seu estilo telenovelístico. Especialmente nessas cenas, a barreira entre atriz, personagem, documentário, ficção e meta cinema começa a diluir-se criando algo de natureza quase indescritível por linguagem cinemática. A montagem é a principal culpada disto, completamente obliterando os limites que nos permitiriam perceber quão Kate está a interpretar Christine, ou quanto está, na verdade, a explodir com as suas frustrações pessoais em relação ao projeto, seus desafios e sua amoralidade, ou se tais frustrações são mais uma ficção.

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Toda esta carga ideológica e montanha de cortantes contradições chega a um clímax na última sequência do filme. Nesses finais minutos, somos testemunhos de algo que, quer queiramos admitir ou não, todos estivemos à espera desde o primeiro minuto de Kate Plays Christine, a apresentação dramatizada do suicídio. Toda a proposta de ter uma atriz a interpretar a infame repórter nos indica para este momento decisivo, com o discurso final de Christine, que foi obsessivamente repetido em várias formas por todo o filme, a finalmente ser proferido dentro de um contexto aparentemente apropriado. No entanto, parece que Kate não consegue realizar este exercício, ficando crescentemente mais frustrada com a sua incapacidade. No entanto, tal é a complexa teia de realidades indefinidas que o filme conjurou que, neste ponto final da sua duração, é impossível verificar se tal conflito interior e profissional da parte de Kate é genuíno e factual ou apenas mais uma performance dentro de uma performance sobre uma performance. As questões morais, éticas, artísticas e pessoais ganham forma nos ataques verbais da atriz que, tal como em Network, se tornam numa espécie de mantra acusatório. Ela aponta a arma para a câmara, para os cineastas e para a sua audiência, ameaçando-os com o adereço como uma versão louca e genialmente subversiva do assaltante de The Great Train Robbery. Mesmo este ato de rebelião contra o propósito do filme se torna num triunfo de dramatização e artifício cinematográfico e a atriz é assim soterrada pelo peso da completa indefinição em que Christine e sua interioridade se mantiveram e da futilidade da sua própria indecisão. No final, a atriz acaba por dizer “fuck it” e termina a cena do suicídio, com sangue falso e efeitos especiais incluídos e o filme acaba, morre tal como a sua personagem. Kate matou Christine mais uma vez e cortou a vida de Kate Plays Christine com essa bala.

Como nota final, lembremo-nos de quando, numa das muitas entrevistas que Kate realiza na sua pesquisa, é dito que todos morremos duas vezes, primeiro quando realmente deixamos de viver e em segundo lugar quando o nosso nome é proferido pela última vez. Apesar de já ter sido esquecida por muitos, Christine Chubbuck dificilmente chegará a essa segunda morte nos próximos tempos. Não enquanto artistas como Greene se sentirem fascinados pelos seus dilemas e complexidades. No entanto, a final tragédia do filme e desses momentos de falsa conclusão é que, a garantir a sua longevidade enquanto memória e ideia, Christine também acabou por se sentenciar a uma constante barragem de mortes, pois é a isso que ela mesma se reduziu, e a ser para sempre preservada não como um ser humano mas como uma série de questões nunca respondidas. É algo ingrato e injusto, mas não por isso menos fascinante.

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O MELHOR: As questões com que Kate Plays Christine força a sua audiência a se confrontar com o seu próprio papel enquanto espetadores. É raro o filme que de forma tão violenta torna os membros do seu público em agentes ativos e não apenas observadores passivos de uma apresentação distante.

O PIOR: Com quase duas horas, é fácil de imaginar que certas sequências poderiam ser cortadas. No entanto, tendo em conta o monumento de complexidade conceptual que todo o filme acaba por ser, é bastante difícil especificar que minutos seriam dispensáveis.


 

Título Original: Kate Plays Christine
Realizador:  Robert Greene
Elenco: Kate Lyn Sheil, Stephanie Coatney, Marty Stonerock
Documentário, Drama | 2016 | 112 min

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