15º IndieLisboa | Uma Mulher Doce, em análise
“Uma Mulher Doce”, o mais recente filme de Sergei Loznitsa a entrar na competição oficial do Festival de Cannes, é uma bizarra odisseia pelos horrores desumanos e absurdezas sem compaixão do sistema judicial russo e uma das mais inesperadas experiências cómicas nesta edição do IndieLisboa, onde o filme integra a secção Silvestre.
A conclusão onírica de “Uma Mulher Doce” é uma das maiores bofetadas na cara do espectador que o cinema dos últimos tempos tem oferecido. Depois de duas horas a imergir o espectador numa Rússia venenosamente absurda e maliciosa, o cineasta ucraniano Sergei Loznitsa, tão conhecido pelos seus esforços narrativos como pelos seus documentários observacionais, catapulta as audiências para um registo completamente diferente. Mesmo no contexto da filmografia do realizador, o tipo de filme em que “Uma Mulher Doce” se transfigura nestes derradeiros momentos é algo inédito, um gesto quase violento na sua inesperada radicalidade. É também uma ilustração gritada e brutalmente repetitiva dos temas até aí desenvolvidos num guião que, já por si, não era dono de muita subtileza ou soporíferas redundâncias. Quer dizer, é isso, até Loznitsa decidir esbofetear outra vez o espectador, desta vez com uma explosão de violência capaz de deixar estarrecido até a mais estoica das audiências.
Enfim, não se quer com isto dar a ideia de que “Uma Mulher Doce” vive e morre no choque estupidificante que é o seu final. De facto, tais passagens só têm o poder chocante que têm se considerarmos o que veio antes, que, por sua vez, é uma das mais cáusticas representações da Rússia contemporânea e suas teias de opressão que o cinema europeu se atreve a produzir nos tempos que correm. Em “Loveless”, um dos filmes contra o qual esta obra competiu na secção principal da 70º Festival de Cannes, o cineasta Andrey Zvyagintsev quase que olha diretamente para o espectador e escreve no ecrã “A Mãe Rússia é uma mãe que não ama seus filhos”. Em “Uma Mulher Doce”, longe de tais subtilezas temáticas, Loznitsa parece apontar um canhão à audiência para disparar a sua mensagem com a máxima força, “A Rússia é uma prisão e todo o seu populus é culpado da monstruosa perpetuação desta realidade, quer seja pela sua ação, inação ou indiferença”.
O mais bizarro disto tudo, é que Loznitsa faz desse disparo uma inesperada comédia, se é que uma odisseia pelos infernos da burocracia russa pode ser considerada uma comédia. Inspirando-se muito livremente num conto de Dostoiévski, “Uma Mulher Doce” conta a história de uma cidadã russa cujo nome nunca é proferido uma única vez ao longo dos 143 minutos do filme. Esta mulher sem nome tem o seu marido na prisão e, certo dia, descobre que uma das caixas com bens de primeira necessidade que ela lhe havia enviado para a prisão foi retornada ao remetente. Decidida a entregar a caixa e descobrir por que razão a sua entrega normal não foi possível, ela viaja até à cidade da cadeia.
Num dos muitos momentos de humor insólito da narrativa, a colega de trabalho da mulher mostra-se invejosa da protagonista. Afinal, com um marido preso, ela tem razão e possibilidade de ir à cidade, enquanto as senhoras menos afortunadas cujos maridos nunca foram condenados por homicídio nunca saem dos seus ambientes rurais. Como seria de esperar, contudo, nem a viagem nem o destino têm muito de invejável ou minimamente aliciante. É claro que este é um filme onde, num dos farrapos de conversa que flutuam até ao ouvido do espectador na banda-sonora saturada de informação, alguém afirma que a Sibéria é um bom sítio para passar férias. Ou seja, as pessoas desta Rússia imaginada por Loznitsa parecem viver há tanto tempo na mais pura das misérias, que a sua visão do mundo está, no mínimo, deturpada.
No final, as expetativas da colega de trabalho provam ser bem ingénuas, pois pensar o contrário seria ainda mais horrendo. Afinal, depois de ter sido revistada, interrogada e múltiplas vezes ofendida ao longo da sua travessia, a esposa do presidiário lá chega à cidade e lá encontra uma espécie de inferno Kafkiano. Como que por demoníaca influência, a prisão parece ter infetado todo o mundo em seu redor e a cidade tornou-se numa espécie de microcosmos centrado nessa materialização arquitetónica das absurdezas e imperdoáveis crueldades do sistema judicial russo. Até o submundo criminal da região está virado para a prisão, havendo toda uma indústria de prostituição focada nos guardas prisionais como seus principais clientes. Neste contexto, não admira que uma pobre trabalhadora da agência que luta pelos direitos humanos esteja num constante estado de crise nervosa.
Muitos críticos, desde que “Uma Mulher Doce” foi vaiado no Festival de Cannes, têm vindo a acusar o filme de ser demasiado enfadonho no seu miserabilismo, mas tais afirmações parecem ignorar o brilhante jogo tonal de Loznitsa. Ao longo da sua odisseia, a mulher sem nome vai sendo ciclicamente rejeitada, atacada e insultada, até ao ponto em que até se começa a duvidar se a existência do marido não terá sido obliterada da matéria da realidade, tal é a opressão do sistema judicial. Para se aguentar tamanha coleção de degradações humanas, o filme torna a miséria em fonte de comédia, levando os horrores a extremos absurdos que poderiam provocar lágrimas, não fosse o olhar de Loznitsa cheio de ironia e uma boa dose de escárnio.
Como sempre o realizador filma a narrativa em grandes planos sequência, cheios de multidões e paisagens sonoras complexas, mas fá-lo, desta vez, com um toque de irreverência jocosa, quase reminiscente de Tati, outro grande mestre do cinema que levava os olhos do espectador a vaguear pelas suas composições em busca de informação. A cereja no topo desta deliciosa confeção é como o humor lacerante e a crítica sociopolítica nunca invalidam a componente humana do filme, mesmo quando a protagonista está rodeada de arquétipos cruéis. Muito disso se deve ao elenco, nomeadamente a Vasilina Makovtseva no papel principal, uma atriz cuja face magra parece uma caveira pintada de pele e que, orientada pela direção magistral do seu realizador, tanto consegue transmitir a resignação resiliente e pragmática desta mulher doce, como uma certa inocência embasbacada face aos horrores do seu mundo. Nessa inocência, esta mulher não exibe a ingenuidade de quem não compreende a sua realidade, mas sim quem ainda tem força para esperar algo de bom do mundo e, nesse aspeto, Loznitsa construiu aqui a mais fascinante personagem na sua filmografia, um raio de esperança em forma humana para uma Rússia caída em apocalíptica desgraça.
Uma Mulher Doce, em análise
Movie title: Krotkaya
Date published: 28 de April de 2018
Director(s): Sergei Loznitsa
Actor(s): Vasilina Makovtseva, Liya Akhedzhakova, Valeriu Andriutã, Sergey Kolesov, Boris Kamorzin, Viktor Nemets, Marina Kleshcheva,
Genre: Drama, Mistério, 2017, 143 min
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Cláudio Alves - 90
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José Vieira Mendes - 85
CONCLUSÃO
“Uma Mulher Doce” é um implacável retrato absurdista da Rússia contemporânea, sendo um filme tão miserabilista quão surpreendente e infernalmente hilariante. Sergei Loznitsa raramente experimentou tanto com tom e variações formais na sua filmografia, pelo que, mesmo quando a experiência ameaça resvalar em catástrofe, há que reconhecer o valor de tais riscos e obstinada bravura.
O MELHOR: O inesperado humor que, num belíssimo exemplo do caráter colaborativo do cinema, nasce da perfeita união de texto, trabalho, de ator e construção formal.
O PIOR: A estética vagamente Fellinesca das passagens sonhadas do final denotam uma certa falta de conforto na mise-en-scène de Loznitsa, um realizador nada habituado a tais registos mirabolantes, mas corajoso o suficiente para os experimentar.
CA