"Late Night with the Devil" | © Shudder

Late Night with the Devil, a Crítica | O Diabo está à solta no IndieLisboa

“Late Night with the Devil” de Cameron e Colin Cairnes tem sido alvo de grande controvérsia desde a sua estreia. Agora, chega à secção Boca do Inferno do IndieLisboa, onde se celebra o melhor do cinema de terror independente.

O “found footage” no terror é uma tradição já quase tão antiga quanto o “mockumentary” entre o mainstream. Contudo, foi com a “Blair Witch” de 1999 que o subgénero se consolidou enquanto potência comercial, capaz de capturar a atenção das audiências e da cultura de forma geral. Desde então, este género de pesadelo cinematográfico proliferou e, como não podia deixar de ser, a quantidade de exemplos logo serviu para evidenciar os pontos fortes e fracos implícitos neste modelo. Por um lado, promove-se a imersão do espetador na realidade simulada do filme, apelando a idiomas audiovisuais que sugerem maior autenticidade que o cinema comum.

Lê Também:   As melhores Scream Queens do cinema

Por outro lado, as limitações do registo são difíceis de manter numa narrativa convencional, levando a que muitos destes projetos comecem num estilo e acabem noutro. Infelizmente, há pouca coisa mais irritante que uma fita covarde, incapaz de implementar as medidas estabelecidas no seu início, perdendo fé no engenho à medida que se desenrola o horror. É triste dizer, mas esse é o caso de “Late Night with the Devil,” filme-sensação de Cameron e Colin Cairnes que tem dado muito que falar, nem sempre pelas melhores razões. Mas enfim, antes de escorraçarmos a obra, convém apresenta-la devidamente, talvez até fazer os elogios merecidos.

Em estilo de documentário sobre media antigo, “Late Night with the Devil” começa com um acervo de imagens em semelhança a documentos arquivais. Vemos fotos envelhecidas e filmagens ilícitas, filmagens de programas ainda mais velhos que aquele que domina a ação final e somos contextualizados na América dos anos 70. No centro da informação, a figura de Jack Delroy assume-se como o foco da peça. Um comediante com ambições desmedidas, ele fez fama através de ligações a figuras de poder – fala-se de um clube misterioso chamado “The Grove” – e tornou-se numa estrela da TV noturna. De facto, dentro da fantasia, ele estaria em competição direta com o célebre “Tonight Show Starring Johnny Carson.”

late night with the devil critica indielisboa
© Shudder

No início de carreira, tudo lhe corria bem, com grandes números de espetadores e nomeações para os Emmys a rematar o sucesso. Só que aquela vontade de ser o melhor de todos ficou encravado como uma espinha na garganta. Por muito que fizesse, o seu “Night Owls with Jack Delroy” nunca alcançou a glória mais desejada. Nem mesmo quando Madeleine, a esposa do apresentador, foi diagnosticada com cancro e fez entrevista exclusiva em direto, proporcionando um pico de audiências. Depois de ela morrer, o programa definhou e, em 1977, encontrava-se no desespero total, tentando tudo para conquistar o apreço do público.

Segundo a narração, isso manifestou-se principalmente em conteúdo feito para chocar, desde histórias sensacionalistas até à exploração do oculto. É nesse segundo assunto que se focou um episódio lendário, aquele acontecimento sobre o qual este “documentário” se debruça. Foi na noite de Halloween, quando o “Night Owls with Jack Delroy” reuniu um grupo de convidados caricatos e arriscou tudo. Primeiro, foi Christou, um médium com ares de charlatão que, em momento fulcral, se parece sobressaltar com certa presença violenta. Em cuspidelas de sangue e muita angústia, ele lá sai de cena durante as pausas para intervalos.




Depois temos Carmichael Haig, um ilusionista reformado que dedica a vida a expor os praticantes do oculto como artistas do engano, revelando os engenhos por detrás das supostas sessões espíritas. Por fim, temos June Ross-Mitchell, uma estudiosa da parapsicologia, e sua jovem paciente, Lilly D’Abo. Esta última será a única sobrevivente de um culto satânico que, no êxtase da fé e em cerimónia ritualista, cometeu suicídio coletivo. Essa figura menina é quem mais perturba o espetador, suscitando uma série de fenómenos inexplicáveis em direto, prendendo todos numa espiral de crescente violência. Haigh é um cético até ao fim, mas o mesmo não se pode dizer de Delroy.

De facto, o melhor elemento deste “Late Night with the Devil” será a personagem principal. Há grande autenticidade no seu jeito de apresentador janota, carismático, mas só até certo ponto. O sobrolho suado, o sorriso falso, o cabelo oleoso e fato de polyester – está lá tudo, cada detalhe apurado para a maior autenticidade possível. Mas acima do visual é a carga psicológica que o ator David Dastmalchian traz ao papel, delineando as diferenças entre a persona televisiva e o homem genuíno, o peso de crimes passados, da culpa, de um pacto com alguma força do além. Quando o filme colapsa sobre si mesmo e entra no foro mental da personagem, é o ator quem sustenta o projeto. No seu esforço, quase justifica a inconsistência estética.

late night with the devil critica indielisboa
© Shudder

Quase é a palavra certa, pois nem a melhor atuação do mundo conseguiria salvar “Late Night with the Devil.” À primeira vista, o filme tem tudo para ter sucesso, incluindo um engenho de pastiche em boa réplica da televisão antiga, seus trejeitos e limitações. Até o trabalho de som reflete a preocupação com autenticidade, usando as deturpações de microfones ultrapassados para dar textura à paisagem sónica da fita. Figurinos remetem bem para o passado e até os efeitos de maquilhagem têm um charme vintage, fazendo referência ao cinema de terror dos anos 70. Nesse aspeto, até há mais amor dado a tais obras que ao documentário ou talk show do formato.

Fazem-se referências visuais aos prodigiosos monstros de Tom Savini e ao “Exorcista,” enquanto o diálogo traz ao barulho as investigações paranormais que resultaram no franchise de “Amityville.” O problema começa a surgir quando as loucuras mais sobrenaturais se manifestam, puxando pelo efeito digital e por um descurar nos limites da apresentação “found footage.” Chegado o clímax, a narração já foi e qualquer tentativa de contextualizar o filme enquanto um documentário também se perdeu. Aqui se vê uma falta de disciplina, quiçá até um desrespeito pelo espetador, como se este fosse incapaz de permanecer dentro do formato sem perder a paciência.

Lê Também:   20 filmes odiados pelas razões erradas (Parte I)

Enfim, qualquer que seja a razão, o resultado é desastroso. Mas esse nem será o maior faux pas do filme, pois há questões éticas a discutir. Numa conjetura contemporânea em que a inteligência artificial ameaça a profissão de inúmeros artistas, não há desculpas para o seu uso no material gráfico e cenografia de “Late Night with the Devil.” Ainda para mais, é um visual que destoa do detalhe histórico e quebra a ilusão proposta. Para além disso, quando os cineastas brincam com a loucura do dito “Satanic Panic,” arriscam uma queda no mau gosto, especialmente ao retratarem o cético como figura mesquinha cuja desgraça parece pedir aplauso.

Enfim, não há regras na arte e esperamos mau gosto do cinema de terror. Só que as claras tentativas de legitimar o pesadelo dão a este projeto um ar de prestígio contraditório. Se fosse um filme de série B que chega ao Shudder sem aparato, até se desculpava. Só que estamos a ver a fita em contexto de festival e com um aparato publicitário considerável, o que não ajuda a manter a mente aberta ou a desculpar a queda na mediocridade, na irresponsabilidade e na insipiência. Pelo menos, Dasmalchian está cá para justificar o preço do bilhete. Diríamos até que o seu trabalho é o suficiente para tornar “Late Night with the Devil” em visionamento obrigatório para fãs do terror. Oxalá que o resto do filme estivesse ao seu nível.

Late Night with the Devil, a Crítica
late night with the devil critica indielisboa

Movie title: Late Night with the Devil

Date published: 27 de May de 2024

Duration: 93 min.

Director(s): Cameron Cairnes, Colin Cairnes

Actor(s): David Dastmalchian, Laura Gordon, Ian Bliss, Ingrid Torelli, Rhys Auteri, Fayssal Bazzi, Georgina Haig, Josh Quong Tart

Genre: Terror, 2023

  • Cláudio Alves - 50
50

CONCLUSÃO:

Entre cenografias geradas por inteligência artificial e brincadeiras de mau gosto, incoerências estéticas e narrativas malformadas, “Late Night with the Devil” é uma experiência meio dececionante. Felizmente, há efeitos em homenagem histórica e uma grande caracterização no centro de tudo. Esses aspetos não compensam as outras falhas, mas estão perto desse milagre. Desejamos melhor sorte para a próxima aos realizadores, Cameron e Colin Cairnes.

O MELHOR: A personagem central de Jack Delroy e todo o trabalho do ator David Dastmalchian. Num mundo ideal, ele seria uma estrela em ascensão no panorama do terror, capaz de vender um filme só com a sua presença.

O PIOR: O uso de IA não se desculpa e a falha em manter o registo de “mockumentary” proposto no início também é difícil de engolir.

CA

Sending
User Review
4 (1 vote)


Também do teu Interesse:


About The Author


Leave a Reply