"Regresso ao Pó" | © Alambique Filmes

LEFFEST ’22 | Regresso ao Pó, em análise

Estreado na Berlinale onde competiu pelo Urso de Ouro, “Regresso ao Pó” tornou-se alvo de polémica aquando da sua distribuição no mercado chinês. Banido no seu país de origem, o filme de Ruijun Li tem ganho renome mundial e continua a ser aclamado pela crítica internacional. No 16º Lisbon & Sintra Film Festival, o júri presidido por Olivier Assayas condecorou a obra com o Prémio João Bénard da Costa. Depois de toda esta aclamação e controvérsia, “Regresso ao Pó” terá estreia comercial em cinemas portugueses no próximo dia 15 de dezembro pela distribuidora Alambique Filmes.

Quando o totalitarismo uma nação domina, a censura reina sobre toda a forma de arte. Quando essa mesma arte atinge inesperada popularidade, a pressão daqueles no poder torna-se maior e mais forçosa. Assim aconteceu com “Regresso ao Pó” cujo único crime foi retratar a vida como ela é, recusando floreados e idealizações, repudiando melodramas fáceis ou benesses falsas. Se o filme de Li Ruijun é crítica política, atinge tal poder pelo medo que inspira no coração daqueles para quem dizer a verdade se afirma pecado capital. Na conjetura atual, até mencionar o título é proibido nas redes sociais chinesas.

Quiçá o filme nunca tivesse sido banido não fosse o seu estrondoso sucesso, um fenómeno estranho que salienta a sede das audiências por um cinema que as represente, suas mágoas de mãos dadas com qualquer felicidade passageira. Só isso explica como um drama tão solene como este, feito com orçamento paupérrimo, se tornou na fita mais vista na China durante o curto período em que esteve disponível nos cinemas e serviços de streaming nacionais. Também esse fenómeno reflete o poder implícito ao trabalho dos cineastas, uma façanha de impacto profundo capaz de resistir até aos finais alternativos que o estado lhe tentou impor.

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© Alambique Filmes

Mas o que é este trabalho que tanto furor causou? Qual a história que conta que tanto o poderio assustou? De forma sumária e um tanto ou quanto enganadora, podemos dizer tratar-se de uma história de amor. Não que as suas primeiras cenas sugiram qualquer pontada de romance. A cena passa-se em 2011, na província rural de Gansu no Noroeste da China, onde o casamento arranjado ainda é costume comum e a vida se define pelos deveres do trabalho e pouco mais. É neste contexto que encontramos Ma Youtie e Cao Guiying, duas almas solitárias cujas famílias combinam o matrimónio quiçá numa tentativa de se livrarem delas.

Guiying, em particular, é presença indesejada no seio familiar, estando além da tenra idade em que mulheres se devem casar na cultura local. Vários problemas acrescem-se à idade, como a infertilidade e a incontinência, talvez até traços de doenças mentais sem diagnóstico. Tais factos fazem da união no centro da narrativa uma conveniência com leituras cruéis, não fosse a dinâmica pragmática que se estabelece entre os dois esposos. Tomando proveito da condição desértica da região, o casal anda de casa em casa, vendendo as sucessivas habitações ao governo que as demole enquanto, paralelamente, fazem esforços para construir um domicílio permanente.

A câmara de Ruijun Li tudo captura com rigorosa solenidade, criando tableaux que parecem autênticas pinturas vivas, motivos pastorais delineados com o preceito do naturalismo bruto. A fotografia de Weihua Wang é rica em cor forte, realçando os vermelhos nupciais que acompanham as personagens desde o casamento até aos fados tristes que os esperam. Há aqui grande beleza apesar da desolação omnipresente, inclusive nas casas pobres ciclicamente reabitadas e destruídas. As sequências em que se constrói o lar muito desejado são especialmente memoráveis, tijolos de argila e estruturas lamacentas afigurando a gradual forma de um casarão.

Tal como essa estrutura se ergue, também a familiaridade entre as duas personagens se vai elaborando pouco a pouco, gentilezas trocadas e trabalho conjunto enquanto a forja que os une. Não é o amor a que estamos habituados no romance cinematográfico, mas uma vertente mais resiliente da questão, como a flor delicada que cresce em terreno agreste e resiste às forças dos elementos. Afetos são ações ao invés de sentimentos expressos por palavra ou expressão apaixonada, a linguagem amorosa sustentada pelo trabalho árduo de cada dia, partilhado no contexto do bendito casamento.

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© Alambique Filmes

Há um possível tenor de romantismo enquanto estética, essa nobreza projetada sobre os pobres que vivem na miséria por condição e não por princípio. Contudo, todo o engenho fílmico contradiz essas potenciais leituras, também renegando a leitura apolítica que daí poderia surgir. É aí que os censores devem ter encontrado problemas, pois, neste filme, não se equipara miséria à superioridade de espírito. Apenas tudo se relata com franqueza e desafetação total, visceralidade dos sentidos, um frágil tom de humanismo áspero. Muito isso depende das visões que a câmara encontra e dos detalhes textuais, mas os atores também merecem aplausos.

O realizador apoiou-se na família e nos amigos para formar o elenco de “Regresso ao Pó,” uma estratégia arriscada que se provou genial. Nos papéis principais Renlin Wu e Hai-Qing relembram as interpretações clássicas na “Aurora” de Murnau e os protagonistas temerosos no “Viver” de Zhang Yimou. Em anos vindouros, é possível que o filme recente seja considerado na mesma linha histórica que essas obras-primas passadas. Seria um destino justo e uma final vitória sobre aqueles que procuram silenciar os seus criadores, destemidos cineastas que merecem toda a glória negada, todo a ovação proibida.

Regresso ao Pó, em análise
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Movie title: Yin ru chen yan

Date published: 22 de November de 2022

Director(s): Ruijun Li

Actor(s): Renlin Wu, Hai-Qing, Guangrui Yang, Dengping Zhao, Cailan Wang, Jiangui Zeng, Yunzhi Wu, Zhanhong Ma, Cuilan Wang, Caixia Hu, Shengfu Li, Min Zhang

Genre: Drama, 2022, 131 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Entre o realismo rural e o romance resiliente, “Regresso ao Pó” representa um dos mais interessantes trabalhos de cinema chinês dos últimos anos. As tentativas de obscurecer a sua dura perspetiva sobre a pobreza em certas partes do país tem gerado polémica, mas também atiça a atenção cinéfila. Este é um filme que todos deviam ver, tanto em revelia contra a censura como em celebração do trabalho de cineastas inspirados com rigor formal e uma veia humanista.

O MELHOR: A fotografia pastoral de Weihua Wang, seus rubros vermelhos e belíssimas pinturas da vida rural, trabalho árduo de cada dia e noites cansadas sob o azulão do céu estrelado.

O PIOR: O final alternativo que os censores tentaram impor ao filme. Não revelaremos em que medida diverge da conclusão real, mas apontamos para o modo como muito tenta limar as arestas da comunidade retratada e das forças estatais em cena.

CA

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