"Chungking Express" | © LEFFEST

LEFFEST ’20 | Chungking Express, em análise

O 14º Lisbon & Sintra Film Festival continua a deslumbrar audiências com uma retrospetiva do trabalho do mestre do cinema de Hong Kong, Wong Kar-Wai. “Chungking Express” de 1994 é um dos primeiros grandes triunfos do cineasta.

Feito enquanto Wong Kar-Wai fazia uma pausa da dura pós-produção das “Cinzas do Tempo”, seu épico de artes marciais, “Chungking Express” é um desses filmes que vibra com amor pelo cinema e converte seus espetadores em apaixonados pela sétima arte, se estes já não o eram. Trata-se de uma fantasia pop que convida o espetador a mergulhar numa piscina de euforia sintetizada, rendendo-se ao assombro dos sentidos e da paixão elétrica.

De forma muito básica, “Chungking Express” é uma parelha de histórias de amor centradas nas desventuras românticas de dois polícias e as mulheres impossíveis que eles adoram. Há muita folia, obsessões com fruta em calda, McDonald’s e “California Dreaminng”, invasões domiciliares e uma montanha de peluches. Tudo isto podia ser irónico, mas os cineastas não têm paciência para tais cinismos do espetador. A sinceridade do filme é tão extravasante que caminha na corda bamba por cima de um poço de absurdo.

chungking express critica leffest
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Wong Kar-Wai e companhia lá vacilam de vez em quando, mas nunca caem por completo. É um balanço precário, mas o perigo, a instabilidade tonal, é uma das fontes do sucesso de “Chungking Express”. Mais do que qualquer um dos filmes de Wong Kar-Wai, este projeto renega a razão e cospe na cara da lógica. O realizador transporta-nos para um mundo onde o sentimento delineia os limites da realidade e onde a mundanidade é constantemente rompida pelo devaneio sonhador das personagens.

Embalados por canções deliciosas e imagens super-coloridas, somos seduzidos, tal como as pessoas da história. Não se trata de uma atração intelectual, mas sim de um magnetismo visceral. Até o mais pretensioso cinéfilo tem o seu quê de bebé dentro de si e fica deslumbrado por matizes coloridas no ecrã e ritmos chamativos. A música que se ouve parece mutar o espaço, entortando a câmara e fazendo a imagem vagar em slow motion, a luz explode em supernovas de cor e a textura do grão torna o mundo numa alucinação de polaroide.

É como se os dotes de DJ do realizador fossem a força que impulsiona o trabalho do diretor de fotografia, o genial Christopher Doyle que também teve ajuda de Andrew Lau. As personagens sonham com vidas melhores enquanto aparentam já viver num universo de expressão onírica, tal é a magia desses cinematógrafos. Em certa medida, os atores têm de negociar humanidade e arquétipo, dançar com o espetáculo audiovisual e entender as limitações do seu papel. Felizmente, “Chungking Express” é daqueles filmes em que tudo funciona em sublime harmonia e o elenco não é exceção.

Por exemplo, não fosse a alquimia formalista do realizador e o primor das suas atrizes, as personagens femininas, uma mafiosa e a empregada de um restaurante fast-food, poderiam colapsar devido ao charme maníaco com que são escritas. Elas não são pessoas reais, mas miragens cinematográficas, princesas de contos-de-fadas atiradas para o mundo deliberadamente irreal que é a Hong Kong de “Chungking Express”.

Faye Wong, uma estrela da Cantopop no seu primeiro papel de protagonista, é particularmente notável. Ela assume-se como a derradeira “Manic Pixie Dream Girl”, mas sabe como sombrear esse cliché com idiossincrasia humana. Nas suas mãos, esta ninfa urbana converte-se numa heroína cativante, num espectro de loucura que não conseguimos deixar de amar. Tal como o polícia embasbacado de Tony Leung, apaixonamo-nos pela donzela de cabelos curtos e olhos de Bambi que parece ser Jean Seberg renascida.

Como esse último nome sugere, o ar da Nouvelle Vague sopra pelo romance enlouquecido de “Chungking Express”, mas o filme não é uma homenagem babada ao cinema de outrora. De facto, trata-se de uma obra com os olhos postos no futuro. Tanto assim é que, mesmo 26 anos depois da sua estreia, ela continua a parecer arrojada e maravilhosamente moderna. Além disso, continua a ser capaz de puxar pelo coração das audiências, apurando o sentimento tanto quanto a execução técnica.

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O melhor de tudo é que essa manipulação emocional do cineasta nunca sabe a mentira ou traição. Os mecanismos do sentimento que ele emprega não são um subterfúgio nem são um engano. São, na verdade, uma forma de ele nos envolver na sua mente criativa, de partilhar a loucura romântica que nutre com os espetadores seus fãs. O cinema é comunhão, do espetador com o ecrã, do cinéfilo com o artista. No caso de Wong Kar-Wai, é uma comunhão que se faz com ananás enlatado ao invés de hóstias.

Chungking Express, em análise
chungking express critica leffest

Movie title: Chung Hing sam lam

Date published: 17 de November de 2020

Director(s): Wong Kar-Wai

Actor(s): Tony Leung, Takeshi Kaneshiro, Faye Wong, Brigitte Lin, Valerie Chow, Jinquan Chen, Lee-Na Kwan, Zhiming Huan, Liang Zhen, Songshen Zuo

Genre: Comédia, Drama, Crime, 1994, 102 min

  • Cláudio Alves - 95
  • José Vieira Mendes - 99
97

CONCLUSÃO:

Um sonho de cinema, tão doce como um beijo a saber a ananás de conserva. Energético e delicioso, cheio de folia e muita euforia, “Chungking Express” é daquelas obras que parece um antidepressivo em forma de celuloide.

O MELHOR: A fotografia alucinante, a banda-sonora inesquecível, a sensualidade do elenco e a inocência do sentimento. Este é um filme que foi feito para ser amado sem limites e sem pudor.

O PIOR: A energia frenética de “Chungking Express” não é para todos e entendemos que há quem veja todo o filme como um videoclip comprido e superficial. Não concordamos com tais críticas, mas temos que as apontar.

CA

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