"Lingua Franca" | © Queer Lisboa

Queer Lisboa ’20 | Lingua Franca, em análise

Apoiado pela Netflix e promovido por Ava DuVernay, “Lingua Franca” é um belíssimo filme que está agora programado no 24º Queer Lisboa, onde integra a Competição e Longas-Metragens de Ficção.

“Lingua Franca” é a terceira longa-metragem de Isabel Sandoval, mas o primeiro filme que a realizadora assina com esse nome. Trata-se da estreia da cineasta após a sua transição de género, tanto a nível legal como pessoal, um facto que é posto em inexorável evidência considerando que Sandoval não só trabalhou atrás, mas também à frente das câmaras. Na tradição de tantos outros realizadores multifacetados, a artista de origem filipina tanto realizou, como escreveu e protagonizou seu mais recente filme.

Na obra, ela dá vida a Olivia, também ela uma imigrante filipina a viver nos Estados Unidos. Ao contrário de Sandoval, contudo, a personagem não se aventura pelo mundo do cinema, fazendo a vida como a cuidadora de uma idosa que está a sofrer os primeiros sinais de demência. Olga é o nome da senhora, também ela uma imigrante se bem que a sua viagem foi feita há muitas décadas. Entender-se-ia que as duas mulheres sentissem alguma irmandade pela experiência comum. Infelizmente, com Olga envolta na neblina da incompreensão, Olivia não encontra nela um ouvido amigo.

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© Queer Lisboa

É fora do apartamento sombrio onde vivem as duas mulheres, que a protagonista encontra companhia. Amigas, também elas imigrantes filipinas trans, servem de confidentes, de apoio moral numa América infetada pelo vírus do conservadorismo Trumpiano. Com a voz do 45º Presidente dos EUA a sair da TV como um hino do Diabo, uma canção de ódio contra imigrantes e pessoas de cor, Olivia bem precisa de algum apoio. Se por nenhuma outra razão, ela precisa de um ombro amigo para manter a sanidade.

A esta alquimia de angústias e ansiedades, de trabalho penoso e solidão doméstica, chega um terceiro elemento. Ele é Alex, um neto de Olga que está a tentar reconstruir a vida depois de problemas com o abuso de substâncias. O tio arranjou-lhe emprego num matadouro industrial e a avó ofereceu-lhe moradia, mas Alex parece sempre no precipício da desolação, do desespero, do fracasso. Talvez seja esse mal-estar mental que acaba por atrair Alex e Olivia, cada um a ver no outro um bálsamo para a solidão.

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No caso de Olivia, Alex também pode ser um bilhete para a salvação. Afinal, se ela se casar com o Americano, os serviços de imigração não poderiam expulsá-la do país. Enquanto realizadora e argumentista, Sandoval delineia como o interesse de Olivia é tão sexual e amoroso, como é mercenário e calculista. Não há juízo moral pejorativo, mas uma aceitação das complexidades das personagens, seus desejos e necessidades individuais, seu egoísmo e capacidade para magoarem os outros e a si mesmos.

De forma geral, “Lingua Franca” é uma narrativa que prima pela generosidade para com as suas personagens. O problema é que tal benesse só é concedida aos protagonistas, ambos brilhantemente interpretados por Sandoval e Eamon Farren em performances que não ousam limar as arestas vivas da história. Fora do par romântico, o filme deixa-se perder na indefinição e a figura de Olga, em particular, é vilmente ignorada pela obra. Considerando que esta foi um dos últimos desempenhos de Lynn Cohen antes da sua morte, a marginalização do papel é particularmente infeliz.

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© Queer Lisboa

No que diz respeito à forma, a obra de Isabel Sandoval caminha a corda bamba entre o realismo lúgubre e uma noção de poesia onírica. Quando o desejo de Olivia vem ao de cima, diluindo a cronologia da montagem e mergulhando o espetador numa alucinação sónica, uma valsa do pensamento, “Lingua Franca” atinge um patamar de sofisticação pouco explorado no resto da fita. Esse lirismo é de curta duração, uma passageira variação de luz e esperança num filme sombrio e deprimido que, tristemente, reflete o estado do mundo contemporâneo.

Lingua Franca, em análise
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Movie title: Lingua Franca

Date published: 20 de September de 2020

Director(s): Isabel Sandoval

Actor(s): Isabel Sandoval, Eamon Farren, Lynn Cohen, Lev Gorn, Ivory Aquino, Megan Channell, Mark Nelson, Christine Spang, Shiloh Verrico, Andrea Leigh

Genre: Drama, 2019, 89 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Um estudo de personagem envernizado em miséria, estranhamente belo e sentido. Isabel Sandoval é uma voz criativa que queremos seguir, tanto pela elegância do seu engenho cinematográfico como pela franqueza das suas histórias.

O MELHOR: A leitura de uma carta, quando a voz do neto evoca o fantasma do avô, a poesia carnal transcende a palavra e suscita o desejo erótico. Oxalá Sandoval se deixasse levar por esse êxtase sensorial mais vezes.

O PIOR: A marginalização da personagem de Olga, que praticamente desaparece na segunda metade da história.

CA

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