"Little, Big, and Far" | © Little Magnet Films

Little, Big, and Far, a Crítica | Jem Cohen regressa ao IndieLisboa

Jem Cohen é um nome de referência no cinema independente americano e está de volta ao IndieLisboa com mais uma grande obra. O documentário “Little, Big, and Far” integra a secção Rizoma.

Uma criança brinca com uma pinha, fascinada com os padrões espiralados. Dessa geometria natural passamos à criação do Homem, uma escadaria, também ela em espiral. Estas associações de imagens acabam por criar uma ponte entre a meninice e a perspetiva adulta, o trabalho de um homem mais velho que dedica tudo à observação dos céus. Jem Cohen tudo exibe sem palavra, a colisão de planos a criar significados em jeito de puro cinema, sugerindo tudo ao espectador sem nada verbalizar. Ao som de Alice Coltrane, o filme precipita-se para a abstração, como um recital de jazz manifesto noutra forma artística. Assim começa “Little, Big, and Far.”

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Já honrado como Herói Independente na 14ª edição do IndieLisboa, Jem Cohen é uma figura de peso no mundo do cinema independente e uma referência na História deste festival. Apesar de não ser um novo píncaro no percurso artístico, o seu mais recente documentário representa uma continuação do trabalho que lhe tem marcado a carreira. Aqui, a graciosidade de um humanismo artístico dá as mãos às estruturas do filme-ensaio, arriscando a folia do experimental sem, no entanto, promover a alineação entre o espectador e os objetos em estudo. Pelo contrário, o aspeto mais alienante da obra será o mistério no íntimo dos seus protagonistas, com principal destaque para Karl, um astrónomo austríaco, e sua esposa que estuda física e vive do outro lado do Atlântico.

É um filme, um ensaio, ou um concerto?

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© Little Magnet Films

Quase a fazer 70 anos, ele encontra-se num momento de autorreflexão, ponderando os capítulos finais da vida enquanto olha para trás. Nesse gesto, contém-se a possibilidade do arrependimento, mas também existe a convicção de alguém cujos objetivos nunca se alteraram. Mais especificamente, Karl vive a olhar para as estrelas e decidiu embarcar na missão de encontrar o céu mais negro do planeta. Quando se diz mais negro, referimo-nos à escuridão natural que a expansão humana pelo mundo natural tornou em raridade. A poluição luminosa prova ser uma barreira cada vez mais intransponível entre o astrónomo e os astros.

Cineastas menores teriam pegado nessa realidade e iluminado paralelismos entre essa dificuldade e as fraturas na vida privada do homem. Especialmente quando nos apercebemos que o documentário se constrói com base em ficção e palavras transpostas de pessoa real para personagem em cena. As ideias de Karl e seu raciocínio são tirados da vida. Só que a figura dele é um papel interpretado por Franz Schwartz. Ou seja, o risco de cair em teatros simplórios era muita. Mas Jem Cohen não se fica pelo lugar-comum e muito menos pelo sentimentalismo barato. O seu exercício é sincero, até mesmo generoso, mas não será definido pelo melodrama corriqueiro. Ao invés disso, elabora um documentário onde o mecanismo retratista serve como acesso a questões mais fundamentais da experiência humana.


Na sua forma mais essencial, “Little, Big, and Far” é a contemplação do pensamento. Ainda cedo, fala-se do caos ilusório das estrelas e o mundo natural a que pertencem, como tudo tem a sua ordem até quando ela não se consegue percecionar a uma primeira análise. Assim se compara a astronomia com a música, essa arte pela qual o ser humano dá ordem ao som, dá forma e manipula suas vertentes, introduz novas ideias e assim constrói algo que se poderia justamente chamar um milagre. Cohen usa estas ideias para realizar uma escavação arqueológica na mente de Karl e daí partir para teorias mais abrangentes. Sente-se, por exemplo, uma ênfase na nossa necessidade de impor regras de pensamento antropocêntrico em todo o fenómeno.

Para exemplificar isso, pensa-se na racionalização do espaço e seus componentes ao longo da História, indo além da ciência moderna em busca do divino que os nossos antepassados atribuíam à abóbada celeste. E do divino se chega à curiosidade do padre que primeiro formulou a teoria do Big Bang, levantando-se a questão se a o terá ajudado. E não é a fé mais uma tentativa de racionalizarmos o irracional? De dar ordem àquilo que existe fora das fronteiras do entendimento? Não é a procura pelo céu menos poluído uma espécie de peregrinação? O cosmos liga-se à esfera pessoal, ao espírito, ao intelecto e à política – que se democratize tudo! O seguimento é semelhante à colisão imagética que começa a fita, sempre o mesmo mecanismo em revolução e retorno.

Perante o infinito, somos nada e somos tudo.

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© Little Magnet Films

A descrição que fazemos pode parecer convoluta, talvez até esotérica, mas devém da construção fílmica. Uma construção que replica o pensamento – esse aspeto basilar da consciência – e faz coerir todos os elementos de “Little, Big, and Far” num ponto brilhante no céu escuro da tela. Por isso, quando estamos a experienciar o seu fluxo de ideias, não nos perdemos. De facto, somos levados, como que flutuando nas ondas, embarcando numa aventura que não sabemos onde vai dar. Só sabemos que Jem Cohen está connosco, qual capitão, e que, acontecer o que acontecer, ele nos atracará em porto seguro. O filme assim nos convida e nos abraça sem partilhar o mesmo tipo de intimidade patente na relação dos sujeitos, de Karl e Jem.

Porque, apesar deste documentário celebrar a conetividade que nos une a todos, também tem espaço para a conversa. Em certas passagens, assemelha-se mais a um diálogo fechado que um debate em que a audiência tem direito a participar. Isso não é uma observação negativa, somente uma chamada de atenção para as facetas fortemente pessoais que orientam o projeto. Podemos ficar surpreendidos pelo modo como os dois partem do telescópio e acabam a considerar taxidermia, como a efemeridade dos eclipses leva a uma discussão da Áustria enquanto ensaio do apocalipse durante a Segunda Guerra Mundial, como uma incursão por um cinema museológico leva ao pó estelar que parece neve. Mas no fim, nenhuma divagação parece despropositada porque nos deixa descobrir mais sobre as pessoas em torno da câmara.

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O coletivo faz-se de indivíduos e só um filme capaz de seguir as idiossincrasias de cada um, seus processos mentais mais rebuscados, poderia fazer justiça ao pensamento humano enquanto tema. E nessa dinâmica, depois de se ter afastado da astronomia, “Little, Big, and Far” regressa à ciência dos céus para nos espicaçar a curiosidade e rematar o ponto. Nós que olhamos para cima e tentamos perceber as estrelas sentimo-nos pequenos perante o infinito. Contudo, se nos contextualizarmos nesse infinito, se nos entendermos enquanto parte dessa esmagadora ideia, talvez nos possamos exultar. Talvez possamos ver a luz na escuridão e agarrar a esperança com as mãos. Olhando o espaço, ou nos sentimos insignificantes ou como parte de uma glória maior que nós, algo criado a partir das conexões uns com os outros e com tudo o resto. Cabe a cada um ver o pesadelo ou o sonho. “Little, Big, and Far” vê os dois e acaba por escolher a via do otimismo. Qual a tua escolha?

Little, Big, and Far, a Crítica
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Movie title: Little, Big, and Far

Date published: 2 de May de 2025

Country: EUA, Áustria

Duration: 121 min.

Director(s): Jem Cohen

Actor(s): Franz Scwartz, Jessica Sarah Rinland, Leslie Thornton, Mario Silva

Genre: Documentário, 2024

  • Cláudio Alves - 85

CONCLUSÃO:

Toda a glória da existência se pode conter na imaginação humana e toda essa maravilha pode ser capturada pelo olhar de uma câmara. Pelo menos, o cinema de Jem Cohen faz-nos crer nisso e “Little, Big, and Far” não difere. De facto, trata-se de um trabalho que inspira o êxtase e nos põe um sorriso no rosto, que nos alivia o espírito e revela verdades que já sabíamos sem saber. Trata-se de um cinema gentil e muito ambicioso, estranhamente aberto no contexto de trabalhos ensaístas onde este pseudodocumentário justamente se inclui.

O MELHOR: Perto do fim, Cohen apresenta-nos aquela que poderá ser a melhor gravação de um eclipse na História do Cinema. Ocorre em tempo real, carregado de carga simbólica e todas as ideias subjacentes que a fita tem vindo a levantar até esse momento. A inclusão de uma criança a testemunhar tudo, espantada, só ajuda a levar o filme e sua audiência à transcendência.

O PIOR: Não obstante o lado caloroso da obra, “Little, Big, and Far” continua a ser um filme-ensaio. Muita gente não tolera tais formatos e podemos entender esse impulso sem, no entanto, o partilharmos. Tirando isso, o maior senão do projeto será o modo como introduz outros pensadores, mas sempre os descarta em prol de Karl. Nesse sentido, até sua esposa é vítima dessa miopia autoral de Cohen, especialmente quando consideramos a sua natureza semifictícia.

CA

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