©Legendmain Filmes

Luzzu, em análise

Alex Camilleri, vencedor do prémio “Someone to Watch Award” do Film Independent Spirit Awards, dá a conhecer “Luzzu” a Portugal.

E A TERRA TREME, DENTRO E FORA DA UNIÃO EUROPEIA

No espaço de uma semana estrearam nos ecrãs nacionais dois filmes relacionados com o mar, sendo curiosa a análise que se pode fazer dos seus diferentes pontos de vista na abordagem das matérias “líquidas” que influenciam as respectivas narrativas. O primeiro situa-se nas frias, agrestes e rendilhadas costas da Noruega e nas plataformas petrolíferas que dão hoje ao país escandinavo um estatuto de potência económica. Intitula-se significativamente NORDSJOEN (MAR DO NORTE), 2021, e foi realizado por John Andreas Anderson. O segundo, LUZZU, 2021, primeira longa-metragem de Alex Camilleri, pertence a um imaginário mais solar e quente, o do Mar Mediterrâneo. Na verdade, neste último, o mais interessante do ponto de vista ficcional e mais consistente no plano da composição das personagens que lhe dão corpo e alma, os produtores situaram a acção num espaço geográfico e humano não apenas voltado para o mar, mas completamente rodeado de Mediterrâneo, a Ilha de Malta.

Luzzo
©Legendmain Filmes
Lê Também:   Donbass, em análise

Num país como a Noruega, muita da actividade cinematográfica beneficiou seguramente do bom desenvolvimento económico que impulsionou os seus mais diversos sectores produtivos, sobretudo a partir da valiosa descoberta na segunda metade do Século XX, com posterior exploração em larga escala, do chamado ouro negro, o petróleo do Mar do Norte. Por isso não admira que MAR DO NORTE – obra composta por umas pitadas de suspense, por uma dose generosa e algo ambígua de má-consciência político-ecológica e pelos meios digitais necessários e suficientes para se inserir com distinção no género catástrofe – concentre a atenção numa sucessão de desastres e situações limite gerados por diversos factores naturais e também humanos, misturando os acontecimentos vividos nas estruturas de exploração petrolífera com perigos oriundos das entranhas da Terra, onde uma falha geológica aponta para o eclodir de uma actividade sísmica invulgar e um consequente derramamento de petróleo de proporções bíblicas, uma ameaça ao equilíbrio existencial daquelas paragens de águas revoltas e, naturalmente, ao “status quo” de um dos países mais ricos do mundo. MAR DO NORTE foi produzido pela mesma equipa que nos deu BOLGEN (ALERTA TSUNAMI), 2015, de Roar Uthaug, e SKJELVET (O TERRAMOTO), 2018, do mesmo realizador deste NORDSJOEN. Para quem gosta de efeitos especiais e de uma narrativa, pelo menos até aos minutos finais, com alguma parcela de credibilidade, nada contra. Não hesitem, vão vê-lo e apreciar o “state of the art” da produção digital norte-europeia. Mas, se gostarem de juntar ao espectáculo alguma componente sobre relações humanas dignas de nota, não esperem grande coisa do delinear esquemático da personalidade e acção atribuída a cada personagem, que aqui se limita a preencher com mais ou menos rotina o relativo vazio entre uma e outra sequência da responsabilidade de uma, sem dúvida, competente equipa de efeitos digitais. Na classificação numérica da MHD diria que as contas se fazem assim: Narrativa = 40 + Efeitos Especiais = 60, resultado final 50.

Lê Também:   La Caja - A Caixa, em análise
Luzzo
©Legendmain Filmes

De facto, muito diferente do que vemos em LUZZU, onde a verdade intrínseca da representação, assumida por actores quase sempre não-profissionais, vem ao de cima com uma inegável força e energia, sobretudo no que toca ao protagonista, o jovem pescador herdeiro da arte marítima de muitos homens do mar, Jesmark (Jesmark Scicluna). De início, Jesmark está sozinho no seu barco de pesca, e o mar naquele dia não parece muito simpático para quem necessita mais do que nunca de ganhar a vida e conseguir algum dinheiro, sobretudo para poder cobrir as despesas de um filho ainda de colo que necessita de cuidados intensivos de saúde, em geral aqueles que são incompatíveis com as bolsas dos mais desfavorecidos. Para piorar as coisas, o seu Luzzu – nome que se dá ao barco pintado de cores azuis e amarelas muito utilizado na pesca artesanal e que constitui uma espécie de ex-libris do património sociocultural da Ilha de Malta – não está nas melhores condições e deixa entrar água pelo casco, o que põe em risco a continuidade da actividade laboral de Jesmark, sem a qual o sustento da família fica comprometido. Neste ponto, podemos pensar que estes pressupostos – que noutros filmes mais apostados nos aspectos melodramáticos acabam por descambar numa espécie de actualização modernaça do clássico neo-realismo – podem contaminar o futuro desenvolvimento dos conflitos dramáticos. Mas não. Confesso que cheguei a recear que assim fosse, mas felizmente o realizador e argumentista deu uma guinada valente no leme do “barco” que até ali dirigira com mestria, e sem deixar de erguer uma personagem maior do que a vida fez mergulhar o pescador num mundo muito diferente do que se esperava. Um mundo que pouco ou nada se relaciona com o que Jesmark sente ser o seu espaço vital, o mesmo que os seus antepassados usufruíram. Dali para a frente iremos vê-lo a percorrer os caminhos cruzados de uma sociedade que usa e abusa de expedientes e onde se jogam valores e princípios morais que não são os mais recomendáveis. Não admira que se sucedam as contradições e os conflitos dramáticos, retratados com uma acutilante visão das questões sociais e das relações de classe. Por exemplo, numa lota onde cheira a corrupção e crime organizado mais do que a peixe, assim como nos meandros da restauração local onde Jesmark procura desesperadamente vender o pouco peixe da faina a preços indecentes, uma actividade lucrativa mas que não gosta de recompensar quem vai ao mar, negócio quase sempre orientado mais para os estrangeiros do que para os nacionais, ou seja, para quem paga bem e viaja até Malta por puro lazer, muitas vezes nem se dando ao cuidado de descobrir a verdade de um país por debaixo do bilhete postal, da genuína gastronomia das ilhas ou de, por exemplo, ouvir a bela língua local, a língua maltesa, preferindo o omnipresente inglês. Sim, as palavras e frases que dominam os diálogos de LUZZU dão-nos a ouvir a sonoridade dessa língua oficial, derivada do árabe e influenciada pelo italiano e siciliano, bem como pelo francês e mais recentemente o inglês, sendo esta outra das apostas ganhas pela produção no processo de credibilização da história que nos conta. Uma história com pessoas verdadeiras, uma língua própria e problemas específicos, que não nos importamos de partilhar, antes pelo contrário. Por esta razão, os passos que o pescador Jesmark de Marsaxlokk (uma das mais emblemáticas vilas piscatórias de Malta) dá em busca de uns euros que o mantenham a flutuar num oceano de remoinhos e correntes adversas são passos que os espectadores sentem como seus, e de cada vez que ele decide enveredar por um esquema manhoso o público reage intimamente dizendo para com os seus botões, “não, não vás por aí…!” De facto, há uma clara e crescente noção de solidariedade com quem percebemos aceitar situações insustentáveis, no plano ético e profissional, porque as soluções que se perfilam ao desencantado Jesmark não coincidem com a urgência da resolução dos seus principais problemas existenciais, a que se junta uma relação de certa fragilidade com a mulher, Denise, interpretada por Michela Farrugia. Nem são claras as relações que se estabelecem a bordo de um navio onde Jesmark aceita relutantemente navegar (uma embarcação onde não se pesca, mas antes se concretizam negócios ilícitos), um espaço híbrido onde nem sempre se distingue quem manda ou quem obedece, nomeadamente um conjunto de emigrantes de origem asiática que vivem no mar e nos barcos porque estão proibidos de desembarcar na ilha. Finalmente, após sucessivas desilusões, vemos o jovem pescador a aceitar uma proposta de compensação financeira, ou melhor, de ilusão financeira (que nos faz lembrar situações similares ocorridas noutros países, nomeadamente em Portugal) que o obriga a desmantelar o velho Luzzu, o barco que fazia parte do seu património pessoal, por um preço que não paga nem a memória histórica da pesca artesanal que atravessara várias gerações, nem a herança familiar do homem Jesmark nem o futuro do pescador de espírito independente que afinal ele sempre fora.

Lê Também:   Crónicas de Oberhausen | Internationale Kurzfilmtage (Parte 1)

Na derradeira sequência vemo-lo já num qualquer outro negócio, mas o apelo do mar sobrepõe-se e ele lança o fio de uma cana de pesca na direcção do horizonte para onde dirige o seu olhar nostálgico, onde seguramente vislumbra os caminhos da liberdade perdida, por momentos reencontrada nesse gesto simples e primordial.

Para saber mais sobre LUZZU, não deixem de consultar uma boa entrevista ao realizador que o meu colega da MHD, Virgílio Jesus, publicou aqui a 27 de Dezembro de 2021. Fica ainda o convite e o apelo para não deixarem este filme ser arrastado pela onda das estreias em cascata, algumas das quais serão lançadas inevitavelmente para fora de pé, não lhe concedendo a atenção no grande ecrã que realmente merece.

Luzzu, em análise
Luzzo Poster

Movie title: Luzzu

Director(s): Alex Camilleri

Actor(s): Jesmark Scicluna, Marlene Schranz, David Scicluna

Genre: Drama, 2021, 94min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Excelente escolha do elenco não profissional, sobretudo do protagonista Jesmark Scicluna (No Festival de Sundance de 2021 recebeu, muito justamente, o Prémio Especial do Júri para a Melhor Interpretação). Boa Direcção de Fotografia e boa utilização da luz natural, com particular incidência na maioria das sequências rodadas em exteriores. Uma história que respira verdade, rodada na Ilha de Malta e maioritariamente na língua maltesa, que não se fala aqui para dar um jeitinho folclórico ao conjunto, mas sim para reforçar uma credibilidade acrescida no desenvolvimento narrativo e no desempenho dos actores.

Existem ecos do neo-realismo italiano, sim, até podemos sentir a memória do LA TERRA TREMA (A TERRA TREME), 1948, do grande Luchino Visconti. Todavia, essa memória, e sobretudo o modelo do género, não foi copiado, mas sim reinterpretado para um TERRA TREME dos dias de hoje, em que se observa uma exploração mais oculta do trabalho, cerceado pelos meandros burocráticos da União Europeia.

CONTRA: Nada que seja imperioso referir.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply