Cartaz promocional de "Luzzu" de Alex Camilleri © Noruz Films

Luzzu | Entrevista a Alex Camilleri sobre o filme mais realista de Malta

Em Luzzu, Alex Camilleri evoca um novo olhar sobre Malta e a sua paixão pelos filmes do neorrealismo italiano.  

Luzzu é o nome dos barcos com olhos mais icónicos de Malta, originários da vila piscatória de Marsaxlokk e é agora o nome do primeiro filme do realizador maltês-americano Alex Camilleri. A obra foi aclamada no Festival de Sundance em janeiro de 2021, e foi o primeiro filme maltês a conseguir representação no festival. O ator principal Jesmark Scicluna acabou mesmo por vencer o Prémio Especial do Júri em Interpretação.

Desde então, muitos compararam “Luzzu” aos filmes do neorrealismo italiano de Roberto Rossellini, embora tenha mais associações a “A Terra Treme“, um dos projetos essenciais da cinematografia de Luchino Visconti que aborda a complexidade das relações humanas e a decadência de um ser humano em condições precárias na costa da Sicília. Apesar de partilhar esse universo, “Luzzu” não é uma imitação dos filmes italianos dos anos 40 e 50, senão uma abordagem muito própria e moderna sobre os problemas de um homem num país europeu em mudança.

Seleccionado para representar Malta nos Óscares 2022, “Luzzu” é já considerado um dos maiores filmes da história do país. Aliás, é um filme feito por um maltês , sobre o dia a dia em Malta e completamente falado na língua nacional. É uma obra que remete para a imensidão de culturas e etnias presentes naquele pequeno paraíso mediterrâneo. Mesmo assim os temas que aborda sobre a família, o medo perante a mudança e a dificuldade da geração dos anos 90 de encontrar emprego são todos de uma universidade arrepiante que toca facilmente o coração dos espectadores, independentemente da sua origem. Temos a certeza que quem vive em vilas piscatórias e passa pelos mesmos problemas que o nosso protagonista conseguirá ligar-se de maneira intensa à obra.

Alex Camilleri
Alex Camilleri na rodagem do filme “Luzzu” © Noruz Films

O jovem cineasta Alex Camilleri muda por completo o paradigma e não mostra Malta de maneira turística como tantos projetos já o fizeram. Basta pensarmos no musical “Popeye” (Robert Altman, 1980) filmado em Mellieha e cujo set deu origem a uma das principais atrações turísticas da ilha, a “Popeye Village”; ou os mais contemporâneos “Gladiador” (Ridley Scott, 2000), “O Conde de Monte Cristo” (2002), “Tróia” (2004) e a tão popular série da HBO “Guerra dos Tronos” (2011-2019). Em “Luzzu” observamos o que há de belo em Malta, assim como os seus edifícios degradados, as suas casas humildes e as ruas repletas de tráfego. Vemos claramente o quotidiano de quem habita o país.

Essa, que era a principal intenção de Alex Camilleri, só poderia acontecer ao filmar com pessoas reais, para a história ter algo de puro. Foram precisos quatro anos para que “Luzzu” pudesse finalmente chegar às salas de cinema, dois dos quais foram especificamente orientados à encenação dos atores, pescadores na vida real. Apesar desse teor de verdade, a obra abre portas para um outro mundo, provavelmente mais divino, sejam pelos olhos dos luzzu que enchem o ecrã, sejam pelo caminho que o protagonista faz.

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A entrevista exclusiva da MHD com Alex Camilleri aconteceu já depois do anúncio dos finalistas aos Óscares 2022, na categoria de Melhor Filme Internacional, no qual o filme infelizmente não marca presença. De qualquer maneira, Alex Camilleri está a ser aclamado por diferentes associações de críticos nos EUA, como os Spirit Awards, onde concorre ao prémio “Someone to Watch Award” e só o facto de oferecer um novo olhar sobre o cinema maltês vale mais do que qualquer prémio. O talento de Alex Camilleri não se delimita a esta obra e tem um vasto trabalho como editor. Fez parte da técnica de “Fahrenheit 451″ (2018), “99 Casas” (2014) ou “A Qualquer Preço” (2012), todos realizados por Ramin Bahrani, aclamado produtor de “O Tigre Branco” responsável também pela produção de “Luzzu”.

Antes de leres a nossa entrevista com o Alex Camilleri, assiste ao trailer de “Luzzu” e conhece ainda a sua sinopse oficial em português. No final da entrevista anunciamos mais informações sobre a estreia de “Luzzu” em Portugal.

Jesmark é um jovem pescador com dificuldade para manter a sua família e que vê o seu sustento e a sua tradição familiar de gerações serem ameaçados por uma indústria pesqueira implacável e um ecossistema estagnado. Desesperado para sustentar sua esposa e seu filho recém-nascido, cujo impedimento de crescimento requer tratamento médico, Jesmark entra para numa rede pesca ilegal que colocarão em causa tudo aquilo que mais ama.

MHD: O que dizem os barcos luzzu sobre a identidade maltesa?

Alex Camilleri: Assim que qualquer turista chega à ilha de Malta depara-se imediatamente com a imagem dos luzzu. Eles estão por todo o lado. Eu lembrei-me deles quando apanhei o meu último avião desde Paris  – onde estive para celebrar a estreia do filme -, e aqueles grandes olhos estavam já a olhar para mim. Portanto, de certa forma, os malteses e as pessoas que viajam para as ilhas maltesas estão muito familiarizados com a imagem destes barcos, que se tornou num símbolo marcante do país.

Contudo, como sabemos, as imagens são reutilizadas a tal ponto que acabam por perder o seu significado e acabam por tornar-se um cliché. Pensei que fosse um lugar interessante para intervir como cineasta, da minha tentativa de desafiar o cliché. Queria mudar o significado dos luzzu ao longo do filme. Acabou por ser algo poderoso, porque – sem relevar demasiado do enredo – acabo por distorcer as expectativas dos espectadores e levo-os numa outra direção. Quero advertir que algo tão típico sobre a identidade maltesa é imortal e foi-me útil para evocar a história de um homem e o que se está a passar com ele.

Essa viagem que o Jesmark faz no barco queria que fosse uma viagem existencialista. Quando olhamos para os barcos o que vemos primeiro são os Olho de Horus ou de Osiris pintados na parte da frente e isso dá-lhes alguma conotação espiritual, que não tem necessariamente que ser religiosa. Não se parece com um muçulmano, um cristão, um hindu, um judeu… Quis dar a conotação num sentido mais ancestral. Por isso é que a imagem dos luzzu precisava de estar ali.

Luzzu
Uma das cenas de “Luzzu” © Noruz Films

MHD: No filme, um pescador diz “a madeira é um ser vivo”. Na verdade, pareceu-nos que os luzzu estão cheios de vida, afinal sobreviveram a centenas de anos de tempestades, de mortes e desaparecimentos de pescadores no mar, de falta de peixe, etc.. As restantes personagens parece mortas ou perdidas. Bastaria olhar para os olhos fantasmagóricos do protagonista Jesmark. Isso tem alguma coisa a ver com a forma como a sociedade contemporânea lida com os problemas e procura um escape fácil? 

Alex Camilleri: É uma reflexão bastante interessante. O Jesmark realmente depara-se com um desafio tão extraordinário, que nenhum dos seus antepassados teve que enfrentar. Durante a minha pesquisa, percebi-me que o Jesmark seria feliz se tivesse crescido 20 anos antes. Isso agora não parece mais possível. Ele cresceu com uma herança pesada, que o definiu a si e à sua família. A fonte de alimento está relacionada com as técnicas tradicionais de pesca em Malta e apesar de saber como tudo funciona parece não ter lugar no mundo. A sua vida é uma bomba-relógio prestes a explodir.

Portanto perguntava-me como poderá este homem mudar? Como pode resgatar o destino de sua família? Eu consigo identificar-me pessoalmente com a trama, embora não seja um pescador. Todos nós, durante determinado momento, navegamos no mar um pouco perdidos a tentar perceber quem somos. O Jesmark não consegue responder àquilo que o mundo lhe está a pedir. Isso faz parte do processo de amadurecimento, mas quis explorar a forma como uma pessoa tem que deixar algo para trás para tornar-se na pessoa que precisa ser. Quis explicar esse processo.

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Jesmark Scicluna e Michela Farrugia são os protagonistas de “Luzzu” © Noruz Films
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MHD: Parece que o teu protagonista procura sempre satisfazer as exigência da tradição, da sociedade que lhe deu colo…

Alex Camilleri: Precisamente. Gosto do facto, nesta história, da sua esposa Denise, ter o mesmo problema, mas lida com ele de uma maneira diferente. O filho de ambos rejeita-os. Por um lado, a Denise tem que lidar com o facto do seu filho rejeitar o leite materno, enquanto que o Jesmark não consegue ser o principal provedor da família, ou seja, não consegue garantir o sustento do seu filho. Ambos estão envolvidos numa crise que além de ser existencial é familiar. Será que não são bons o suficiente para cuidar do seu filho? O que vão fazer a esse respeito?

MHD: O Jesmark pouco fala com o seu filho, até que a pediatra diz para fazê-lo. Esse momento é bastante tocante e emotivo, porque abre os seus olhos e também abre os nossos olhos enquanto espectadores. 

Alex Camilleri: Essa foi uma das coisas que obtive enquanto fazia a pesquisa para “Luzzu”. E foi quando eu descobri que um dos conselhos dos médicos para os pais é que eles devem falar com os seus filhos desde muito novos. Parecia-me algo tão perfeito para a história, porque estou a retratar um homem de ação e não um homem de muitas palavras.

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Jesmark Scicluna e Michela Farrugia são os protagonistas de “Luzzu” © Noruz Films

MHD: Como se a presença do protagonista se fizesse através da ausência de palavras. 

Alex Camilleri: Ele é o tipo de homem forte e calado. Acabou por ser uma personagem díficil, porque nunca chega realmente a dizer o que sente e, por isso, haveria que lhe dar uma oportunidade de algo se concretizar através do diálogo. O facto de falar com o bebé foi, em termos de ação, aquilo que lhe permitiu seguir em frente. Quando a médica pede-lhe isso, estava a quebrar uma regra no argumento. Abre-se uma nova porta e um novo significado, que talvez assuma um tom poético. Esta é a história de um homem que ganha noção do que significa ser pai, que não se reduz apenas ao colocar comida na mesa.

MHD: Da mesma forma que o seu pai, o seu avô o educaram, certamente. 

Alex Camilleri: Exato. Essa era a única definição que ele tinha. Lembro-me por exemplo de uma das personagens do filme, um velho pescador, contar ao Jesmark algumas histórias sobre o seu avô. Ou o David – outra personagem – a contar-lhe histórias sobre o seu pai. Na verdade, percebemos que o Jesmark não teve tempo suficiente com essas pessoas e o contacto que teve passou por um lado de fábula. Quero dizer, o seu acesso ao passado foi feito através desses homens mais velhos com quem gosta de passar o tempo, de uma maneira quase mitológica.

O Jesmark sabe perfeitamente aquilo que o pai lhe diria num determinado momento e não precisa de ouvir. Porque nunca chegou a ouvir… Cabe a ele não só receber histórias, mas entender que é importante transformar-se num contador de histórias. Eu acho que há algo tão essencial neste ato de contar histórias no filme, porque o Jesmark tira alguma aprendizagem.

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Benção dos barcos luzzu numa das sequências do filme de Alex Camilleri © Noruz Films

MHD: Acho que o público português irá emocionar-se com estas sequências.

Alex Camilleri: Fico orgulho em sabê-lo.

MHD: E quais foram as localizações utilizadas para a rodagem do filme? 

Alex Camilleri: Eu adoro o processo de encontrar as localizações para as minhas histórias. Acho que é fácil ganhar inspirar diretamente nos locais. Para “Luzzu” eu escrevi para lugares muito específicos e que acabam por ser óbvios. Não havia outra maneira se não ambientar a história em Marsaxlokk, que é a vila de pescadores mais típica de Malta. É onde estão todos os peixes. E, claro, deu-me oportunidade para trabalhar cenas incríveis, como a benção dos barcos. Quando tens um orçamento apertado, não precisas inventar. Eu não conseguiria fazer o filme no lado oposto da ilha, pois teria que levar os barcos para lá. Eu fui direto e Marsaxlokk deu-nos tanto, que disparámos em todas as direções da vila, mesmo nas áreas adjacentes que não são cartão-postal.

Eu insisti com os meus produtores que a missão não ia ser uma visão turística de Malta. Não vamos mostrar os ângulos que todas as outras produções de Hollywood ou estrangeiras vêm, usam e abusam nas nossas ilhas. Vamos levar o espectador não como turista, mas como um cidadão. Vamos caminhar nas ruas, vamos entender o que é realmente viver em Malta, onde por um lado tens imagens arrebatadores e, por outro, tens alguma construção arquitectónica a ganhar corpo ou um cais com estrondosos navios de carga. Durante o dia como um maltês, encontras uma enorme beleza e algo muito normal, muito quotidiano. Não conseguiria, de todo, alimentar as vidas das minhas personagens em fotos que persuadem qualquer um de nós.

Alex Camilleri
A equipa de produção de “Luzzu” na rodagem do filme © Noruz Films

MHD: E porque a utilização da técnica de câmara à mão para a rodagem?

Alex Camilleri: Uma das minhas principais influências para “Luzzu” foram os filmes do neorrealismo italiano. Por isso o filme confunde-se perfeitamente com um documentário. Não me pareceu somente uma escolha prática, porque eu já sabia que queria contratar pessoas comuns, mas foi também uma escolha ética. E eu digo ética, sim, porque há algo que remonta aos filmes do neorrealismo italiano que aproveitaram a realidade de pessoas genuínas, e foram rodados em localizações que ainda não haviam sido tocadas pela presença cinematográfica. Com isso relevam os desafios da sobrevivência.

E quando colocas esses rostos reais e as suas almas no ecrã, isso torna o filme mais do que uma obra de ficção. Acaba por ir para outro patamar. Eu queria que o “Luzzu” se parecesse à vida real, à vida que se desenrola diante dos nossos olhos e queria que a câmara estivesse simplesmente lá. Os não-atores são um dos principais instrumentos para se chegar a esse sentimento. Para mim fez sentido fazer isso, sobretudo quando temos pouca representação no ecrã das ilhas maltesas e das suas gentes.

neorrealismo italiano
A TERRA TREME (1948) de Luchino Visconti

MHD: Praticamente pareces contar a tua história no mesmo universo que “A Terra Treme” de Luchino Visconti, mas em Malta. Quase como um combater do facto do país ser muitas vezes visto de uma forma idílica. Achas que é difícil rodar em Malta da mesma forma como tu o fizeste?

Alex Camilleri: Absolutamente. Malta tem sido retratada como uma ilusão, em tantos meios de comunicação. Tivemos a oportunidade de quebrar essa ilusão para mostrar a verdadeira Malta, e damos acesso a algo mais profundo do que a sua beleza terrestre. A beleza em “Luzzu” vem da cultura, da linguagem, desses rostos incríveis que só encontram aqui. Porquê contratar um ator francês ou um ator italiano e trazê-los para aqui para interpretar um pescador maltês? Não fazia sentido.

MHD: Uma vez em Malta qualquer um poderá perceber a diversidade de cores, culturas e etnias nos rostos dos habitantes locais. 

Alex Camilleri: É incrível. Sinto-me feliz por se perceber isso. É certo que ninguém pode filmar e mostrar a totalidade de um lugar. Mas, mesmo neste filme, consegui mostrar que em Malta há uma diversidade de rostos. Eu filmei no sul com pessoas dali e tentei dizer alguma coisa sobre isso. Há um encontro com a cultura maltesa, num país que se tornou num ponto de encontro do Mediterrâneo.

Passámos por sucessivas ondas de colonização, ao longo dos séculos. Foi algo que permitiu à nossa cultura ser enriquecida com a influência dos fenícios, dos gregos, romanos, franceses, italianos, e naturalmente dos ingleses. Para alguém que trabalha em qualquer arte em Malta esse é o melhor presente.

Alex Camilleri
Alex Camilleri dá indicações à equipa de “Luzzu” © Noruz Films

MHD: Como é que encontraste os atores, como por exemplo, o Jesmark Scicluna? Encontraste-o em Marsaxlokk ou noutra zona de Malta?

Alex Camilleri: O processo começou cedo porque eu sabia que esse filme só poderia ser feito com não-atores. Eu só poderia começar a fazer o filme quando tivesse o elenco todo. Comecei a procurar os pescadores no início de 2018, e passei muitos meses a conduzir de vila em vila. Mantinha os meus olhos abertos para jovens pescadores, algo que não é fácil de encontrar porque a média de idade dos pescadores em Malta é de mais de 50 anos, e isso é evidente no filme. As viagens que fiz pelas estradas foram a única maneira de encontrá-los, não os poderia procurar num banco de dados online e ligar-lhes para um teste.

Eu tive a sorte de trabalhar com um diretor de casting realmente fenomenal, que além de ser um cinéfilo, é também um pescador em tempo parcial. Foi ele que me fez conhecer os Jesmark e o David, cujas personagens têm os seus nomes. Eu estava à procura de homens entre os 25 e os 40 anos e consegui-o. Foi uma sorte enorme, porque quando os encontramos eu estava prestes a regressar a Nova Iorque, cidade onde vivo e onde divido o meu tempo. Tivemos de sair de Marsaxlokk e fomos até uma pequena baía chamada Għar Lapsi.

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Os pescadores numa cena intensa de “Luzzu” © Noruz Films

Nós encontramo-os lá. É uma pequena baía, um local lindo. E ali estavam eles, o Jesmark e o David Scicluna que são primos na vida real. No primeiro dia no qual estive com eles apresentei-me e contei-lhes o que estava a fazer. Voltei no dia seguinte para perceber se estavam interessados em fazer um teste foi então que concordaram. O teste aconteceu no terceiro dia. Aí disse, ‘tenho uma pequena câmara comigo e poderíamos começar a filmar algo agora mesmo. Porque não vamos para um barco?’.

Foi então que aconteceu. Eu queria saber o que aconteceria se pescassem um peixe-espada que pode valer muito dinheiro fora da temporada de pesca. Eu dei um objetivo a cada homem, no qual um quereria ficar com o peixe, e o outro deitá-lo no lixo. Eu não lhes disse mais nada e deixei-os improvisar. Em um minuto tinham atingido muito mais do que eu esperava. Estou a falar de pessoas que nunca representaram.

MHD: Quem vê o filme não consegue entender se são atores profissionais ou não-atores. 

Alex Camilleri: Quando vês filmes com não-atores muitas vezes as pessoas comentam e dizem que foi uma boa performance de um não-ator. O que eu gosto neste filme é que as pessoas não conseguirão distinguir. As interpretações são bastante precisas. A grande maioria dos espectadores não conhece o cinema maltês, nem os atores malteses, portanto irão acreditar que são atores. Será confuso inicialmente, mas o que para mim foi mais bonito em “Luzzu” foi ter um verdadeiro pescador, que tem feito isso a vida toda, a representar um pescador.

Alex Camilleri
Os pescadores reais do filme “Luzzu” © Noruz Films

Estes são homens que sabem bem o que é apanhar um peixe fora da temporada. Eu precisava de saber o quanto iriam improvisar e o quanto eu poderia retirar dali algum de emocional. Há verdade, porque eu queria mostrar o que se passa quando alguém vive a cena. Eu queria encaminhar o filme para um realismo documental, e para isso precisava de perceber os factos. Queria alguém que mostrasse qual a sensação de estar no mar sozinho e o que os pescadores sentem.

MHD: Será que nos poderias contar mais sobre o barco do filme? É mesmo do ator que interpreta Jesmark? 

Alex Camilleri: O barco foi comprado para a produção. O Jesmark tem um barco muito semelhante, mas por questões de privacidade, achámos quer faria mais sentido colocar outro barco. Mesmo assim, fui beber de aspetos biográficos do Jesmark, como por exemplo, o nome do barco no filme ser Ta’ Palma, que é o nome pelo qual a família dele é conhecida. Em Malta temos muito o hábito de atribuir o alcunhas às famílias, algo que remonta a gerações passadas. Portanto, temos uma personagem que não só herda a profissão, o barco, a forma de ser e estar dos seus antepassados, como ainda herda a alcunha. Isso é algo que não consegues apagar, ninguém consegue.

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Jesmark Scicluna é uma grande revelação em “Luzzu” © Noruz Films

MHD: Sim, e acontece também em alguns sítios de Portugal…

Alex Camilleri: Não o sabia. É interessante perceber essas proximidades. Eu fui tentar perceber porque razão a família dele tinha aquela alcunha. E segundo a minha pesquisa descobri que o seu bisavô tinha as orelhas pontiagudas e chamam-lhe assim como se ele fosse um rádio e conseguisse captar tudo o que ouvia.

MHD: E o pé pintado no barco? É tradição em Malta?

Alex Camilleri: Todo o barco acaba por ser um híbrido entre a realidade do Jesmark e a minha própria vida. Aproveitei pequenos detalhes da minha vida e acabei por integrá-los. É o que eleva o filme… O público não precisa de saber isso à priori, mas é obviamente muito mais simples do que inventar algo do nada.

Quanto ao pé pintado, lembro-me do meu pai que durante o verão costumava arranjar uma parede de cimento que temos ao lado da nossa garagem. O que ele fazia era praticamente criar uma nova camada de cimento. Enquanto e ficava a vê-lo trabalhar. Tornou-se um hábito colocar as minhas mãos no cimento. Eu não estava muito consciente disso quando escrevi o argumento, foi algo misterioso que surgiu e talvez seja o segredo de quem escreve filmes.

MHD: Certamente quem verá o filme pensará que se trata de uma tradição maltesa e acabará por dar inicio a uma trend em Malta. 

Alex: Sim, eu adoro isso.

MHD: O que é te reserva o futuro? 

Alex Camilleri: Agora mesmo estou atarefado com o meu segundo filme. Desenrola-se na mesma filosofia que o “Luzzu”, pois é uma história sobre Malta, sobre o povo maltês e sobre a língua maltesa e incorporo não-atores. A escrita do argumento está muito relacionada com as pessoas com as quais me estou a cruzar. Mas é aí que terminam as semelhanças. Na verdade, o meu novo filme como realizador é sobre a música folk tradicional maltesa. Quero brincar com o género e acredito que será um desafio. Acho que me poderei surpreender e, com sorte e esforço, surpreender o público.

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“Luzzu” estreia brevemente em Portugal © Noruz Films

MHD: Obrigado Alex por esta conversa preciosa. Estamos ansiosos pela estreia do filme em Portugal. 

Alex Camilleri: Eu é que agradeço o interesse. É muito bom ser convidado a falar sobre “Luzzu”. E gostava muito de ir a Portugal. É um país que quero conhecer há bastante tempo.

A distribuição de “Luzzu” em Portugal já está assegurada pela Legendmain Filmes. O filme estreia brevemente numa sala de cinema perto de ti.



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