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La Caja – A Caixa, em análise

O cineasta Lorenzo Vigas traz até ao nosso país “La Caja – A Caixa”, uma obra protagonizada por Elián Gonzalez e Hatzín Navarrete!

SER E NÃO SER, NO DESERTO MEXICANO.

Em 2015, o realizador do agora estreado LA CAJA (A CAIXA), 2021, surpreendeu os meios cinematográficos habituados a uma certa rotina de prémios e a uma sistemática orientação para nomes e geografias premiadas, ao alcançar o Leão de Ouro no Festival de Veneza com o filme DESDE ALLÁ (À DISTÂNCIA), 2015, ficção sobre um homem maduro que contrata a companhia de um adolescente que saberemos pertencer a um gang da capital da Venezuela, Caracas. Estamos a falar de Lorenzo Vigas, nascido no ano de 1967 em Mérida, Venezuela. Desde cedo, não se ficou pelo seu país natal e rumou aos Estados Unidos, onde se formou em Biologia Molecular na Universidade de Tampa, Florida. Depois foi para Nova Iorque, onde estudou cinema na NYU, New York University. Depois de um breve regresso ao seu país, onde produziu e realizou alguns documentários, foi viver para o México. Aí, a sua carreira cinematográfica atingiu uma nova dimensão que lhe abriu as portas para novos horizontes em que a sua capacidade de observação da realidade quotidiana e o seu espírito crítico puderam ser materializados enquanto produtor em obras como LAS HIJAS DE ABRIL (AS FILHAS DE ABRIL), 2017, e SUNDOWN, 2021, ambos de Michel Franco, assim como ON THE ROCKS, 2020, de Sofia Coppola. Por fim, não resisto a dizer que para o meu programa ONDA CURTA seleccionei o que provavelmente foi a sua primeira obra exibida em Portugal, uma notável e poderosa curta intitulada LOS ELEFANTES NUNCA OLVIDAN, 2004.

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Para o mais recente filme, produção mexicana e americana, o realizador concentra a acção nas simultaneamente belas e desoladoras paisagens do norte do México. Logo de início vemos um rapaz dentro de um compartimento que adivinhamos fechado, como o interior de uma caixa. Ele bate com violência e compassadamente com os pés na parede e no chão metálico desse espaço acanhado, provavelmente a casa de banho de um comboio. Nesta altura não sabemos ainda que raio de desespero ou de angústia existencial o atacam, mas pouco depois iremos constatar a razão de ser da sua atitude. Na verdade, ele fez uma viagem a partir de um local, que ao longo do filme, por um ou outro diálogo mais ou menos revelador, podemos identificar como sendo a Ciudad de México, que por aquelas bandas usam chamar de D. F. (Distrito Federal). Mas não a fez por gosto ou vontade própria, antes pelo contrário. O rapaz, Hatzín (personagem interpretada no filme pelo actor não profissional Hatzín Navarrete), foi encarregado pela avó, com quem vive, de ir recolher, num pedaço de deserto perdido do México profundo, os restos mortais do seu pai encontrados junto com diversos outros corpos numa vala comum. Este legado macabro ser-lhe-á entregue no interior de uma caixa metálica depois de cumpridas umas breves cerimónias burocráticas, a papelada da ordem, no meio da maior indiferença por parte das autoridades, e digo indiferença na falta de uma palavra mais agreste, o que nos faz pensar na fragilidade da vida humana e sobretudo no pouco ou nenhum valor que ela possui numa região que mais parece o fim do mundo, um universo infernal onde impera a lei do mais forte e a obrigação imposta do silêncio, mesmo quando o desejo das vítimas de numerosas prepotências seria o de gritar alto e bom som a sua revolta. Para os devidos efeitos, o filme que ainda há poucos minutos começara parecia estar resolvido no plano do conflito principal, podendo o desenrolar futuro da narrativa chegar a um beco sem saída. Mas Lorenzo Vigas no papel de autor do argumento, que co-assinou com Paula Markovitch e Laura Santullo, decidiu de outra maneira. No regresso a casa, Hatzín passa por uma pequena cidade onde de repente pensa ver o seu pai, vivo, a distribuir casacos por quem o rodeia: nem mais nem menos do que a figura de um homem corpulento, confiante, dominador e aparentemente feliz consigo próprio, que Hatzín insiste, quando por fim lhe fala directamente, reconhecer de fotografias e de memórias que guardava do pai. Passamos então a saber, ou a desconfiar, que ele foi alguém que não partilhou boa parte da vida com o filho. Este homem literalmente apanhado na curva do destino, que não quer confusões com ou sobre paternidades alheias, resiste e apresenta-se com o nome Mário (papel desempenhado pelo veterano Hernán Mendoza). Numa primeira fase procura ver-se livre daquela espécie de contratempo em forma de garoto que assim interfere na sua vida pessoal e ainda nos seus negócios muito privados. Mas, pouco a pouco, as circunstâncias vão mudando, o clima de desconfiança inicial vai-se desvanecendo e a dúvida instala-se no espectador, no que constitui uma das formas mais rebuscadas de encenação ao longo do filme. Será verdade? Não será? Será mesmo ele o pai? Se assim for, quem era afinal o homem que estava dentro da caixa? Ou será que o rapaz inventou a situação com alguma matreirice escondida na manga? Mas a verdade nua e crua acaba por vir ao de cima e ferir a sensibilidade de Hatzín quando, após ser adquirida alguma confiança mútua entre ele e Mário, este último não hesita em abrir o jogo sujo da sua “profissão”: primeiro, as manhosas contratações de homens e mulheres para serem mão-de-obra dócil e barata nas fábricas da região; depois, os esquemas de roubo de máquinas de costura para sustentar o sonho de Mário montar o seu próprio negócio, no fundo a reprodução, mais coisa menos coisa, do modelo desenfreado de exploração capitalista que por ali impera destinado a produzir roupa barata e em condições, como dizem os recrutadores para convencer os proletários renitentes, de fazer frente aos chineses e aos perigosos efeitos no mundo laboral da sua alegada concorrência. Mas nada disso supera o pior momento da relação de um homem experimentado, com muitos segredos escondidos, com um jovem em perda gradual e acelerada da sua frágil inocência. Numa determinada noite, o mal sem filtros acaba por se revelar, espoletando o ponto de ruptura entre o suposto filho daquele suposto pai, ou seja, Mário vai encobrir um crime praticado numa fábrica contra uma activista que podia ser noutro contexto uma simples e legítima sindicalista, e Hatzín não irá conseguir superar de um ponto de vista meramente humano a frieza com que Mário “despacha” o assunto. Mais não digo, e acrescento apenas que este filme podia, aqui chegado, desenvolver de uma maneira mais sólida esta contradição, a luta interior entre o que um rapaz considerava até ali ser um mal menor (a associação a um indivíduo com altos e baixos de personalidade) e a visão do episódio sombrio que passa a ver como o mal maior de alguém de quem, quer queira quer não, foi cúmplice. Os derradeiros minutos e sequências seriam muito seguramente um retrato preto no branco do inferno gerado por gente sem escrúpulos que vive de expedientes que muitas vezes não passam de actos de pura e dura criminalidade, gente feia, nem sempre de corpo mas de alma, que paradoxalmente habita uma das mais belas e emblemáticas paisagens da América Latina, o deserto de Chihuahua.

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De qualquer modo, pela positiva fica na memória de quem veja LA CAJA o excelente desempenho dos actores, incluindo alguns secundários, e a fotografia de Sergio Armstrong, que alterna planos médios, próximos e grandes planos com os planos gerais das paisagens circundantes sem lhes dar a função de bilhetes-postais, o que em muitos outros projectos acaba por ser motivo de distração do essencial, factor pernicioso que nos desvia o olhar da matéria sobre a qual importa realmente concentrar a atenção. Nota alta para a sonoplastia, em que os sons que se ouvem nas diferentes sequências contribuem para credibilizar o clima geral em que a acção decorre, e ainda a verdade intrínseca dos locais de rodagem. Já andei por aqueles sítios e garanto que durante o visionamento me vieram imagens e situações vividas que identifiquei com os sons ouvidos em fundo. Sim, um filme sem uma boa banda sonora, sem uma eficaz montagem de som e sem uma boa mistura não funciona ou não alcança a mesma eficácia, o mesmo impacto. E isso não falha em LA CAJA (A CAIXA).

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Date published: 2 de June de 2022

Director(s): Lorenzo Vigas

Actor(s): Elián Gonzalez, Hatzín Navarrete, Hernán Mendoza

Genre: Drama, 2021, 90 min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Excelente presença de Hatzín Navarrete e Hernán Mendoza, o primeiro no papel de um órfão que vai buscar os restos mortais do seu pai, morto em circunstâncias simultaneamente dramáticas e misteriosas, e o segundo no de “pai” adoptado pelo jovem, que será depois “adoptado” pelo mais velho, para o melhor e o pior, no contexto de uma vida carregada de provações e situações pouco recomendáveis. Local de rodagem, o deserto mexicano no Estado de Chihuahua.

Em 2021, no LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival – recebeu o Grande Prémio do Júri João Bénard da Costa e uma Menção Especial para o Melhor Argumento.

CONTRA: Nas derradeiras sequências do filme, a ficção podia beneficiar de uma menor ambiguidade no desenlace das contradições geradas pela ruptura da relação que sempre pareceu improvável, mas que a partir de um certo momento surge quase insustentável, entre os falsos ou menos claros percursos existenciais de um pseudo pai e de um pseudo filho.

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